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Numa das cidades mais poluídas do país, proposta de transição energética gera dúvidas sobre futuro

Reportagem
19 de março de 2025
12:47

Vamos imaginar a seguinte situação: um bairro inteiro no qual a população precise usar máscaras com filtros de alta capacidade, ou, então, que todo mundo tenha que se mudar para o mais distante que consiga, para não ter mais que respirar o ar do seu entorno. Essa situação não é muito distante do que já acontece na zona rural de São Luís, no Maranhão. A queima de carvão pelas empresas do Distrito Industrial (Disal) tem levado as pessoas que vivem no entorno a sofrer com doenças respiratórias, desde asma até câncer de pulmão, apontam pesquisa e profissionais de saúde. E novos empreendimentos podem agravar ainda mais esse quadro.

Nos últimos anos, a capital maranhense vem sendo apontada como uma das cidades mais poluídas do Brasil. Segundo uma análise realizada pela organização Movimento em Defesa da Ilha, que reúne moradores, pesquisadores e ativistas, em 2023, os dados de qualidade do ar da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Sema) ficaram 903 vezes acima dos índices de emergência por emissão de dióxido de enxofre e/ou ozônio. A análise levou em consideração os parâmetros estabelecidos pela Resolução 491/2018 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). 

“Isso não significa que a qualidade do ar ficou ruim 903 dias no ano, mas sim que, em diferentes momentos e locais, os níveis de poluição ultrapassaram o limite seguro várias vezes”, explica o advogado e ativista ambiental do movimento, Guilherme Zagallo, que fez o tratamento dos dados do relatório.

Por que isso importa?

  • Os indicadores da qualidade do ar em São Luís têm piorado ano após ano e, em muitas situações, ficando piores que os de grandes cidades brasileiras, como São Paulo.
  • Segundo profissionais de saúde e pesquisadores, poluição estaria levando a doenças e até mesmo mortes na população.

A superintendente de Planejamento e Monitoramento da Sema, Hinayara Rodrigues, rebate os resultados e afirma que, para que haja uma alteração na qualidade do ar, é necessário que a média das medições em um período de 24 horas seja superior ao limite estabelecido. “Portanto, é impossível que esse valor ultrapasse o limite mais de 900 vezes em um único momento. Não se pode considerar apenas um pico isolado ao longo do dia como um indicativo de alteração na qualidade do ar”, avalia. No último ano, depois da divulgação dos dados de poluição do ar, a superintendente confirma que não houve nenhuma intervenção por parte da Sema exigindo das indústrias no Maranhão alguma mudança nos seus padrões de emissão de poluentes. 

Segundo a tabela de referência do Conama, são consideradas “péssimas” as marcas que superam 800 microgramas de resíduos de dióxido de enxofre por metro quadrado (m³) de ar no período de 24 horas. Esses valores significam, para o órgão, que “toda a população pode apresentar sérios riscos de manifestações de doenças respiratórias e cardiovasculares; e o aumento de mortes prematuras em grupos de pessoas sensíveis”. Em situações consideradas “de emergência”, ou seja, as que ultrapassam a concentração de 2.100 microgramas por m³, se recorrentes, podemos chegar próximo ao cenário que descrevemos no início da reportagem. 

Como as medições de dióxido de enxofre são realizados a cada 24 horas, “significa que todo dia, ao longo de 2023, alguma estação de monitoramento de qualidade do ar estava no nível de emergência, ou seja, mais de 2.100 microgramas por m³, para um padrão que o máximo permitido é de 125”, conclui Zagallo.

Projeto de gás natural pode colocar mais poluentes no ar

A solução que tem sido apresentada para o problema da qualidade do ar na zona rural de São Luís é uma proposta de transição energética, isto é, produzir energia a partir de outros combustíveis que não sejam o carvão. Entretanto, o projeto de construção de um terminal de regaseificação pela empresa LC Terminais Portuários pode ampliar os problemas da região.

A proposta prevê a instalação de um navio atracado na ilha da Boa Razão, a 1 km da costa, na baía de São Marcos, cujo acesso se dá pela ilha de Tauá Mirim. O local, contudo, integra a zona rural e, de acordo com a Lei 3.253/92, que regulamenta o zoneamento e usos do solo de São Luís, atividades portuárias são restritas às zonas industriais. Mesmo assim, no Estudo de Impactos Ambientais/Relatório de Impactos Ambientais (EIA/Rima) o empreendimento apresenta certidão de uso do solo que autoriza sua construção na área.

Além disso, o gás natural segue sendo um combustível fóssil, que emite poluentes gasosos, como o benzeno. Segundo o médico especialista em saúde da família e comunidade Rogério Logrado, os riscos associados à inalação do benzeno, por exemplo, estão diretamente ligados ao desenvolvimento de cânceres, como a leucemia. “O benzeno é uma substância muito tóxica para a medula, traz o risco do câncer. No caso específico de crianças, de leucemia aguda”, explica.

Ele detalha que o que pode ocorrer é uma piora da poluição que já existe na cidade, com “exacerbação de doenças crônicas, como a asma”, diz.

Procurada, a LC Terminais Portuários afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, ter “pleno conhecimento do quadro de poluição do ar no distrito industrial de São Luís e da necessidade urgente de sua redução. Nosso projeto busca atender a essa demanda, contribuindo significativamente para a melhoria da qualidade do ar na região”. Quando questionada sobre a localização da plataforma, a assessoria defendeu que a realização de análise aprofundada se baseou em aspectos técnicos, sociais, ambientais e econômicos e que “entre as opções analisadas, a localização selecionada foi considerada a mais adequada para atender a esses critérios, equilibrando os interesses do desenvolvimento econômico e social com a preservação ambiental”.

Rede que monitora poluição é pequena, critica ex-gestor

Em 2018, a Secretaria de Estado da Indústria e Comércio (Seinc) instalou a Rede de Monitoramento da Qualidade do Ar em São Luís. A rede é uma condicionante para a instalação e permanência de indústrias no Distrito Industrial, prevista na Lei Estadual 12.301/2024, além de ser uma exigência do Conama que os dados sejam disponibilizados ao público. 

Apesar disso, a rede esteve fora do ar durante 170 dias em 2024, tendo retornado sua divulgação em 29 de novembro de 2024, após exigências do Ministério Público. A justificativa para o “apagão de dados” da rede foi a necessidade de uma auditoria nas estações. Segundo a Sema, os resultados dessa auditoria já estão prontos, mas aguardam “agenda institucional” para sua divulgação. Os dados foram solicitados ao gabinete da secretaria, mas até agora não houve resposta.

As estações foram colocadas nas áreas do Anjo da Guarda, Vila Maranhão, Pedrinhas, Vila Sarney, Santa Bárbara e Coqueiro – esta última desativada em fevereiro de 2025. Atualmente, segundo a Sema, São Luís conta com 16 estações. Segundo a superintendente Hinayara Rodrigues, “para o tamanho da ilha é um quantitativo muito bom”. 

Já o ex-secretário de Indústria e Comércio do estado Simplício Araújo, gestor que foi responsável pela contratação e instalação das primeiras seis estações – as únicas públicas até o momento –, a rede ainda é insuficiente para um controle confiável da qualidade do ar na ilha. Para ele, seriam necessárias de 50 a 100 estações para que a cidade tivesse um monitoramento efetivo.

Os dados mais alarmantes são justamente das seis estações públicas. Por exemplo, em 2023 uma dessas unidades de monitoramento chegou a identificar em 24 horas uma média de 9.392 microgramas de dióxido de enxofre – a média máxima permitida por lei são 40 microgramas por ano, podendo ser possível alcançar um pico de 125 microgramas no período de 24 horas. A título de comparação, a cidade de São Paulo, no mesmo ano, identificou 12 microgramas do poluente, segundo relatório produzido pelo governo de São Paulo.

Questionada, Rodrigues defende que há uma leitura equivocada dos indicadores e que a diferença desses números para os divulgados pelas próprias empresas poluidoras decorre de uma possível falha no sistema de monitoramento realizado pela rede pública, que utiliza estações de baixo custo que poderiam gerar imprecisões. Segundo a representante da Sema, as empresas mantêm um automonitoramento constante e, a partir deles, a secretaria considera que não há alterações nem motivos para a população ficar alarmada.

A professora, engenheira ambiental e doutora em engenharia hidráulica e saneamento Natália Pelinson explica que, para garantir o acompanhamento preciso da poluição do ar, os métodos mais confiáveis incluem o monitoramento contínuo e em tempo real; o uso de estações de medição certificadas, seguindo padrões internacionais e com calibração frequente dos equipamentos; análises laboratoriais periódicas; modelagem matemática da dispersão de poluentes; e a integração de dados públicos e privados, criando um banco de informações acessível para a população e pesquisadores. Para a professora, “apesar de haver diversos programas de monitoramento ambiental, as bases de dados são de difícil acesso. Muitas vezes, percebemos falhas e inconsistências nos bancos de dados ambientais disponibilizados por órgãos nacionais ou estaduais, e isso dificulta a credibilidade dos modos de monitoramento”. 

Poluição estaria aumentando mortes por câncer, indica pesquisa

Para a professora Márita Ribeiro, do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), pesquisadora de saúde e território, há, sim, motivos para preocupação. Ela reforça que o corpo humano é um dos principais bioindicadores da poluição.

Em suas investigações, ela tem monitorado a distribuição espacial das doenças respiratórias de forma crescente em São Luís, com indícios de que a qualidade do ar não está dentro dos padrões indicados pelo Conama como aceitáveis, principalmente nas áreas de proximidade do Distrito Industrial. Ela identificou que, no centro, as consequências aparecem ligadas às fontes móveis de poluentes, que são os automóveis; já na região do Itaqui-Bacanga, a poluição é consequência das atividades industriais, que é uma fonte fixa de poluição.

Ao olhar para todo o município, o médico Rogério Logrado considera que a situação já está em nível alarmante, devido à recorrência de síndromes respiratórias que têm sido identificadas nas emergências hospitalares. O médico explica que as partículas tóxicas que contaminam e poluem o ar têm caráter cumulativo e, portanto, não existe quantidade segura de contato. 

O pneumologista Alcimar Pinheiro chega a recomendar o uso constante de máscaras respiratórias, de nível industrial, como as elastoméricas, mencionadas anteriormente. As partículas iniciam um processo de alojamento “na árvore respiratória e promovem um processo inflamatório crônico das vias respiratórias. Esse processo inflamatório crônico pode resultar em várias modalidades de doença”, explica.

“Não sei se tem a ver com a poluição, mas aqui nós temos um número muito grande de duas questões: as mulheres, a maioria, eu diria que 60% a 70% das sofrem com problema de endometriose e algumas com miomas. E o aumento de problemas respiratórios, de um tempo para cá, a gente viu a questão de sinusite e problemas respiratórios, como aquela gripe, aquela tosse que não vai mais embora, atacando pessoas, não importa a idade”, destaca Franclin Freitas, morador da comunidade do Jacamim.

A preocupação de Freitas tem respaldo na pesquisa da professora Márita Ribeiro, que identificou tumores benignos e malignos aparecendo de forma recorrente na população de São Luís, que chegam a ser a terceira causa de mortes na capital, de acordo com dados do DataSUS. Os miomas uterinos são exemplos dessas chamadas neoplasias, que, segundo a ginecologista e obstetra Jade Mendonça, também podem estar associados a essa contaminação pelos resíduos industriais, chegando a causar infertilidade.

“A nossa luta é exatamente que o Estado brasileiro se debruce para estudar as condições de vida e decida o que é mais caro: comprar gás de algum outro canto ou manter um contingente de pessoas dependente do Estado, doente, sem perspectiva de vida, porque é isso que vai acontecer”, defende Alberto Cantanhede, pescador artesanal.

Edição:
Fabrício Serrão e Layla Viana
Sylmara Durans
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Porto do Itaqui / Divulgação
Sylmara Durans
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