É urgente que as Forças Armadas mudem sua forma de ver os indígenas e promovam uma inclusão que respeite suas culturas. Essa foi a grande demanda levada por lideranças de diversos povos ao Superior Tribunal Militar (STM), em encontro que ocorreu na terça-feira (8) da semana passada. Várias lideranças estiveram em Brasília na semana passada para o Acampamento Terra Livre (ATL) e se encontraram com autoridades para pressionar pela garantia de seus direitos.
No encontro, os representantes dos povos defenderam, por exemplo, que as escolas militares respeitem as manifestações da cultura indígena e promovam disciplinas com professores indígenas, além de pleitear que as Forças Armadas incluam os povos originários não apenas como soldados, mas como oficiais que possam alcançar posições de liderança. Para Beto Marubo, da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), a reunião representou a primeira aproximação entre os povos e as organizações militares, já que até então as Forças Armadas não haviam demonstrado “nenhuma abertura” para ouvir as suas demandas.
Um dos pedidos das lideranças foi por cotas que possibilitem o acesso dos indígenas ao serviço militar. “Hoje nós temos doutores aqui na mesa, nós temos médicos, nós temos vários tipos de profissionais. Então, também na área militar, a gente precisa ter major, capitão, precisamos ter vários tipos de indígenas”, afirmou Sérgio dos Santos Silva, do povo Galibi-Marworno, do estado do Amapá.

Entretanto, as lideranças temem que a inclusão seja acompanhada da repressão cultural. “Como é ser um militar sendo indígena? Será que a gente tem que esquecer o nosso ser indígena?”, questionou Maria Leonice Tupari, co-fundadora da Articulação Nacional das Mulheres Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga). Cristo Guajajara, representante da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), ressaltou que uma eventual entrada dos indígenas às Forças Armadas não deve ser permeada pela pressão “para que [os povos] deixem a [sua] cultura de lado e sejam implementados simplesmente o militarismo ou a estrutura organizacional”.
Em entrevista à Agência Pública, Beto Marubo afirmou que um primeiro passo é que os militares desconstruam o pensamento “arcaico” de que “os indígenas são uma ameaça à segurança nacional e as terras indígenas são um retrocesso”. “Nós temos aí o aumento gradativo e consecutivo do crime organizado em grande parte das terras indígenas. Isso sim é um perigo de segurança nacional”, explicou ele, que defende que os conhecimentos indígenas auxiliem na proteção das fronteiras brasileiras.
“Imagina só, o Vale do Javari, a segunda maior terra indígena do país. Quem é que conhece esse território com a palma da mão? Não são os generais. Não são os sub-oficiais da Força Aérea, do Exército, da Marinha. (…) É um conhecimento de séculos, de milênios, sendo desperdiçado simplesmente por uma mentalidade burra de que os indígenas são indolentes, são preguiçosos, uma ameaça à segurança nacional”, finalizou.
Histórico de violência
Apesar das demandas dos povos terem dado o tom da reunião, o histórico violento das interações entre indígenas e militares também foi abordado. “A energia desse lugar não é acolhedora”, disse Jaqueline Kuña Aranduhá, do povo Guarani Kaiowá, logo no início de sua fala. “Você olha na parede e vê as condecorações dos que invadiram o nosso território, mas é um espaço que é importante a gente pisar e sentir, e sentar na mesa para dialogar”, explicou.
Maria Leonice Tupari lembrou da Ditadura Militar de 1964 e da “dizimação dos povos indígenas no passado”. “A gente relembra os nossos ancestrais que foram mortos nesse período”, disse, ao apontar que se preocupa com como a educação militar afeta os jovens.
Já Joziléia Kaingang, que também é co-fundadora da Anmiga, lembrou da atuação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), um órgão público criado em 1910 para proteger os indígenas, mas que ficou marcado por violar seus direitos: “Dentro dessa instituição, que representava o governo brasileiro dentro dos nossos territórios, nós tínhamos como principais algozes, infelizmente, os militares”. O SPI foi extinto em 1967 e substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
As propostas da ministra-presidente
O encontro com as lideranças indígenas foi organizado pela ministra Maria Elizabeth Rocha, primeira mulher presidente do STM, que tomou posse em março deste ano. Sua gestão tem buscado posicionar politicamente o tribunal como um parceiro na construção de políticas públicas, em diálogo com os outros poderes.
“O Poder Judiciário não é só para dizer o direito no caso concreto, é para realizar a justiça de uma forma ampla, mesmo que fuja da sua jurisdição, mesmo que fuja da sua competência. E acho que, como numa Justiça Militar, onde os militares têm uma interface tão grande com as comunidades indígenas, nós podemos colaborar”, explicou a presidente.
Após ouvir os relatos dos convidados, Maria Elizabeth Rocha propôs que o STM promova uma reunião entre as lideranças e o alto escalão das Forças Armadas, para que as demandas dos indígenas sejam conhecidas. Também afirmou que organizará outro encontro, dessa vez das lideranças com magistrados civis de diversos estados, para que os indígenas tenham mais acesso a quem toma as decisões. Esses encontros devem ocorrer ainda este ano, de acordo com a juíza auxiliar, Amini Haddad, entrevistada pela Pública.
“Nós estamos nos desdobrando com relação especificamente à pauta das representações das comunidades étnicas do Brasil. Fazendo levantamentos com relação às realidades sociais em que eles se inserem, levantamentos com relação às áreas de fronteira, às situações específicas com relação àquilo que precisa ser aprimorado dentro da educação. O letramento antidiscriminatório precisa envolver a perspectiva dessas comunidades”, explicou a juíza.