Israel bombardeou o Irã na sexta-feira, 13 de junho. O ataque ocorreu no mesmo dia em que as tropas israelenses completavam 616 dias de guerra ininterrupta contra a Faixa de Gaza. Essas duas ações foram intercaladas por bombardeios israelenses contra o sul do Líbano, a Síria e o Iêmen nos últimos meses.
Note que no espaço de um parágrafo, cinco países foram citados – Israel, Líbano, Síria, Iêmen e Irã – além de um território, Gaza, que muita gente sequer sabe dizer que status possui. Não é à toa que é difícil entender o que acontece; a situação é mesmo complicada.
Como o conflito começou
A guerra no Oriente Médio acontece por causa de Israel. O país foi criado em 1948, mas a população israelense – embora não tivesse ainda esse gentílico nacional – já habitava esse mesmo espaço geográfico muito antes. Os registros estão na Bíblia ou na Torah. O próprio Muro das Lamentações é uma evidência concreta que os israelitas antigos deixaram de sua existência nessa mesma terra.
Da mesma maneira, os árabes viviam lado a lado com os israelitas. Não havia um Estado nacional para um povo e outro. Toda a zona passou a ser chamada Palestina e a denominação “palestinos” dizia respeito a ambos povos. No século XIII, árabes e israelitas passaram a viver dentro das fronteiras do que se tornou o gigantesco Império Turco Otomano, que abrangia partes da Europa, da Ásia e da África. Quando esse império ruiu, após o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a zona passou a ser controlada então pelos britânicos, que só se retiraram depois do fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Por que isso importa?
- Desde 2023, o Ministério da Saúde de Gaza estima que mais de 50 mil palestinos morreram. Do lado israelense, mais de 1,2 mil morreram no ataque inicial do Hamas. Já o governo do Irã divulgou que a quantidade de mortos passou de 220 devido aos bombardeios israelenses.
O fim da Segunda Guerra levou à saída de potências coloniais europeias que controlavam a região e, com isso, foram formados os Estados nacionais que conhecemos hoje no Oriente Médio – o Líbano, em 1943, e a Síria, em 1945, se libertaram do domínio colonial francês, por exemplo, ao longo desse processo.
No caso de Israel, o país foi criado pelas Nações Unidas em 1948. O Holocausto, ocorrido poucos anos antes, foi um argumento dramático para selar esse reconhecimento, mas o projeto sionista – o projeto de criação de um Estado israelense – existia muito antes disso; havia nascido, como teoria contemporânea, pelas mãos de um judeu austro-húngaro chamado Theodor Herzl (1860-1904), que já falava na remoção forçada dos árabes que viviam na região, como forma de viabilizar o espaço geográfico em que seria criado o Estado de Israel.
O nascimento de Israel, como país, foi motivo de celebração para os sionistas, incluindo os judeus que, naquele momento histórico, estavam marcados pelo pânico e pelo trauma do risco existencial vivido na Segunda Guerra. Só que, esse mesmo fato representou também o “nakba”, palavra que significa “catástrofe” ou “desastre” para todos os árabes que perderam suas terras e suas posses no processo de criação desse novo Estado de Israel.
No fim dos anos 1940, já havia milícias judaicas se confrontando com milícias árabes nessas mesmas terras, numa disputa que evoluiria para a primeira guerra de Israel como Estado-nação, em 1948. Em seguida, vieram em diversas outras guerras com países vizinhos – a mais importante delas em 1967 –, ao longo das quais os israelenses foram redesenhando à força seu próprio mapa, incorporando novos territórios e colonizando ilegalmente terras que deveriam fazer parte de um Estado Palestino jamais criado.
A Faixa de Gaza seria, junto com a Cisjordânia, parte desse Estado Palestino todo retalhado pelo expansionismo israelense. O problema é que Gaza vive sob um bloqueio tão cerrado de Israel que é impossível constituir uma vida minimamente autônoma nesse território. Israel diz que deixou de ocupar Gaza em 2005, mas o bloqueio naval, aéreo e terrestre que impõe ao território segue configurando ocupação, de acordo com o direito internacional.
A solução de dois Estados – um israelense e outro palestino, com fronteiras demarcadas e reconhecidas internacionalmente – é a única possível para a região, no que diz respeito às soluções pacíficas. Mas radicais dos dois lados trabalham contra isso.
Em 1995, um ultranacionalista judeu chamado Yigal Amir matou a tiros o então primeiro-ministro israelense, Yitzhak Rabin, num atentado que enterrou a mais promissora iniciativa até então para a constituição de dois Estados. Rabin vinha negociando essa saída com Yasser Arafat, membro do Fatah e primeiro presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP).
Se do lado israelense o radicalismo veio na forma do atentado contra Rabin, do lado palestino, os radicais que lutavam contra a solução de dois Estados se agruparam em torno do Hamas, que, em 2007, expulsou o Fatah de Arafat da Faixa de Gaza e assumiu o controle da região, a partir da qual viria a lançar, em 7 de outubro de 2023, o maior ataque contra Israel desde sua fundação.
De acordo com o Centro para Estudos Internacionais e Estratégicos (CSIS, em inglês, o 7 de outubro foi o terceiro maior ataque terrorista da história em número de vítimas, com 1.139 mortos. O pior foi 11 de setembro de 2001, contra as Torres Gêmeas, nos Estados Unidos, com 2.996 mortos. Só que os EUA têm mais de 333 milhões de habitantes, enquanto Israel tem 9,5 milhões. Dá para imaginar a escala de um atentado como o de 7 de outubro num país cuja população é 35 vezes menor.
A situação atual
A resposta israelense foi a guerra que já passa de 600 dias e deixou mais de 50 mil mortos em Gaza, onde ainda estão escondidos mais de 50 reféns israelenses capturados pelo Hamas no 7 de outubro.
A extensão e a profundidade da destruição produzida por Israel em Gaza fizeram com que a África do Sul tenha apresentado à Corte Internacional de Justiça, em Haia, uma acusação de crime de genocídio – que diz respeito à intenção de destruir total ou parcialmente um grupo humano. Ao mesmo tempo, o Tribunal Penal Internacional emitiu uma ordem de prisão contra o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, por ele usar a fome como uma arma de guerra contra os palestinos de Gaza.
Do outro lado, o ataque contra Israel não é movido apenas pelo Hamas e não diz respeito apenas à dinâmica da causa palestina. Nos países vizinhos, grupos armados como o Hezbollah, no Líbano, e, mais distantes, os Houtis, no Iêmen, também se contrapõem a Israel, que já não demora para realizar pesados bombardeios em resposta.
Dentro de Israel, há pluralidade de visões. Judeus socialistas, que migraram da Europa, optaram por fazer de Tel Aviv a capital. Eles eram partidários de uma cidade que tivesse menos camadas de significados religiosos e de disputas simbólicas que Jerusalém. Mas os judeus mais religiosos e fervorosos prevaleceram, sobretudo depois da ocupação de Jerusalém Oriental após a Guerra dos Seis Dias, em 1967. A cidade sagrada foi proclamada capital de Israel, desrespeitando o compromisso de neutralidade e de administração compartilhada que havia sido assumido com a comunidade internacional.
Essas divisões internas são visíveis ainda hoje, em várias camadas. Tel Aviv, por exemplo, presencia há meses marchas multitudinárias que pedem todos os dias, mas especialmente aos sábados – ao cair da noite, no fim do shabat – a libertação dos reféns do 7 de outubro e a saída de Netanyahu do poder. Uma grande parte da população israelense odeia o primeiro-ministro e demonstra isso com faixas, cartazes e megafone nas ruas. De acordo com uma pesquisa publicada em 29 de março pelo Canal 12 de Israel, 70% da população simplesmente não confia em Netanyahu. Outra pesquisa, feita pelo mesmo canal, em 24 de maio, mostra que metade da população acredita que Netanyahu está interessado em prolongar indefinidamente o conflito com os palestinos para se manter no poder e evitar os tribunais.

As marchas de rua contra o governo israelense só pararam depois do reinício dos ataques ao Irã, porque, com a aplicação da lei marcial, todas as reuniões públicas e protestos estão temporariamente proibidos no país, por razões de segurança. ‘Bibi’, como Netanyahu também é chamado, lidera uma coalizão instável, que se apoia nos elementos mais radicais do Knesset, o Parlamento israelense. Se sair do poder, ele será confrontado pela continuidade de processos judiciais por fraude e suborno em assuntos internos, que podem levá-lo à prisão.
Netanyahu é líder de um governo radical cercado de grupos radicais nas fronteiras, como no Líbano, na Síria, e, mais distante, no Iêmen e no Irã, sem contar a Faixa de Gaza. Embora grupos como o Hamas, a Jihad Islâmica e o Hezbollah tenham sido fundados de maneira independente, é fato que, desde a Revolução de 1979, que levou os aiatolás xiitas ao poder, o Irã inspira e auspicia esses grupos, que são declaradamente contrários à existência do Estado de Israel.
O bombardeio realizado no dia 13 de junho contra alvos iranianos não pode ser compreendido, portanto, sem entender a história que trouxe a situação até este ponto e as contradições das sociedades e dos atores envolvidos, incluindo a própria sociedade israelense.
O maior temor israelense é com o fato de o Irã ter um programa nuclear, que pode ser convertido num programa com fins militares. Mas Israel também tem um programa nuclear militar, o que pouco se diz. Por causa disso, os dois países se enxergam mutuamente como ameaças existenciais, e, como nos filmes de faroeste, a questão era quem sacaria a arma primeiro. Israel decidiu puxar a pistola, enquanto, por diversas vezes, em várias instâncias, os EUA e as potências europeias – inclusive com tentativa de participação do Brasil, em 2010 – vinham tentando negociar garantias nucleares com o Irã.
Quando Israel atacou o Irã na sexta-feira 13 de junho, Netanyahu estava em seu momento de maior isolamento internacional desde o início do conflito com o Hamas, em 2023. A constatação de que a fome vinha sendo usada como arma de guerra contra os palestinos fez com que aliados tolerantes, como França, Reino Unido, Espanha e Alemanha, começassem a fazer críticas públicas a Israel. Os espanhóis falaram em embargo na venda de armas, os britânicos travaram um acordo de livre comércio, os franceses puxaram o debate sobre a solução de dois Estados na ONU e os EUA, mesmo com Donald Trump, vinham levando ‘Bibi’ em banho-maria.
Antes de atacar o Irã, Netanyahu havia estado duas vezes em Washington, onde tentou, sem sucesso, obter apoio irrestrito da Casa Branca para um ataque ao Irã. Trump não só se mostrou evasivo como, na sequência, engatou uma viagem ao Golfo Pérsico para conversar com os países árabes da região, à revelia de Israel. Ele também retomou as conversas atômicas com o Irã, demonstrando que ainda tinha verba para gastar antes de comprar a tese israelense de que um ataque imediato era a única solução.
Do ponto de vista do direito internacional, nenhuma ação de força deveria ser tomada contra o Irã sem anuência do Conselho de Segurança da ONU, mas pelo menos dois dos cinco membros permanentes, Rússia e China, bloqueariam qualquer ação nesse sentido. Além do mais, num plano mais amplo, os Brics – que têm encontro marcado para o início de julho, no Rio de Janeiro – também devem se manifestar contra as ações israelenses, seja pela pressão de russos e chineses, seja pela aderência brasileira à tese de fazer contrapeso às potências.
Dentro de Israel, a pressão internacional é pouco sentida. Anos de ações à revelia do direito internacional tornaram a sociedade impermeável às posições da ONU e de outras instâncias. “Não dá para ignorar que a população israelense teme o projeto nuclear iraniano, e os considera um alvo absolutamente legítimo, porque o Irã arma, financia e treina grupos como o Hamas, o Hezbollah e a Jihad Islâmica, e comanda alguns deles”, diz João Koatz Miragaya, mestre em história pela Universidade de Tel Aviv, que mora no norte de Israel, de onde apresenta, em português, o podcast Do Lado Esquerdo do Muro.
Miragaya é um bom exemplo da diversidade política que existe entre os judeus e em Israel. Ele considera que “Netanyahu usou um objetivo legítimo aos olhos da sociedade para benefício próprio, e pode virar o jogo agora, sobretudo se conseguir destruir o reator nuclear de Natanz”, no Irã. Miragaya concluiu a conversa dizendo uma frase reveladora: “Como de praxe, o ataque é popular desde que dê certo. Se der errado, vira impopular.” A frase é boa porque mostra uma característica da atual retórica israelense, segundo a qual Netanyahu é o responsável por tudo de mau e cruel que Israel faz nas guerras, mesmo quando o resultado dessas ações coincide com o que a sociedade quer – tenha ela a coragem de dizer abertamente ou não.
De outro lado, há leituras como a de André Lajst, mestre em Ciências Sociais e Políticas, e presidente, no Brasil, de uma organização sionista chamada Stand With Us. Lajst está à direita de Miragaya no espectro político israelense e considera que o ataque ao Irã “é uma ação que pode mudar para sempre a dinâmica no Oriente Médio porque escancara uma necessidade de muitos países da região, que é de não conviver com um Irã nuclear”.
Ele diz que o Irã “trabalha há 46 anos (desde a Revolução de 1979, que levou os aiatolás ao poder) para expandir sua influência através de grupos terroristas na região. O regime é contra a existência de Israel em qualquer quilômetro quadrado da região. É contra a existência de dois Estados, é contra o sionismo”.
Mas outro pesquisador do tema, Bruno Huberman, professor de Relações Internacionais da PUC de São Paulo e autor do livro “Colonização Neoliberal de Jerusalém” e da newsletter “Palestina em Transe” considera que uma das saídas possíveis é que o Irã tenha armas atômicas, tanto quanto Israel tem: “o equilíbrio atômico asseguraria a estabilidade regional.” Huberman reconhece que “isso é uma coisa muito infeliz, mas, do ponto de vista realista, dá para entender a necessidade iraniana”, levando em conta a ideia de que uma Israel nuclear também é percebida como uma ameaça existencial pelo Irã.
A outra saída, ele diz, seria negociar a extinção mútua dos programas atômicos de Israel e do Irã, e promover finalmente a solução de dois Estados na Palestina.
Para Huberman, o Irã e os grupos armados apoiados pelo regime na região “ainda almejam que todo território se torne o Estado palestino”, o que implica na extinção do Estado de Israel. Porém, ele chama a atenção para o elemento de realismo que vem pautando algumas ações dos aiatolás nos últimos anos. O Irã e os atores que orbitam ao seu redor talvez aceitassem, como tática, uma solução de dois Estados, assim como o movimento sionista também aceitou a Partilha da Palestina em 1947. “Sempre devemos desconfiar de declarações políticas, mas elas ainda valem algo na política”, conclui.