Buscar
Reportagem

Belo Monte: Diretoria do Ibama admite necessidade de rever vazão do rio Xingu

Para órgão, volume de água operado hoje pela hidrelétrica não garante manutenção de ecossistemas e modos de vida

Reportagem
27 de agosto de 2025
06:00
Joédson Alves/Agência Brasil

A Diretoria de Licenciamento Ambiental do Ibama quer que a Norte Energia, concessionária que opera a usina hidrelétrica de Belo Monte, apresente uma nova proposta para a partilha da água em um trecho do rio Xingu. Por envolver a segurança energética do país, a sugestão foi feita à presidência do Ibama, que ainda não se manifestou se vai encaminhá-la, ou não, para a empresa.

É a primeira vez no processo de renovação da licença de operação da usina que a diretoria admite a necessidade de rever o atual hidrograma – esquema que estipula os volumes de água (as vazões) a serem liberados mensalmente pela usina para a Volta Grande do Xingu. A Volta é um, trecho de cerca de 130 quilômetros do rio após a cidade de Altamira, local de biodiversidade e riqueza cultural únicas no país.

Ao longo dos últimos anos, vários documentos produzidos pela área técnica do Ibama mostram que o esquema atualmente em vigor vem afetando negativamente a reprodução de peixes, a vegetação que antes era inundada pelas águas do rio, além da alimentação e das fontes de renda dos moradores da Volta Grande. Por isso, analistas do órgão já haviam recomendado uma revisão das vazões praticadas, ponto acatado agora em agosto pela diretoria de licenciamento.

Por que isso importa?

  • A vazão do rio Xingu hoje é considerada insuficiente por moradores, que denunciam há anos impactos no seu modo de vida e no ecossistema da região;
  • O controle da vazão do Xingu é uma das condições que estão atreladas à análise da licença de operação, vencida em 2021 e que precisa ser renovada.

Belo Monte: moradores denunciam que controle da vazão do Xingu não tem sido respeitado 

O processo de licenciamento ambiental de Belo Monte condicionou a licença de operação do empreendimento a uma série de medidas, entre elas está o controle das vazões na Volta Grande de forma a reduzir impactos na qualidade da água, na fauna, flora, pesca, navegação e modos de vida da população local. Mas povos indígenas e ribeirinhos vêm denunciando que essa condicionante não está sendo respeitada.

O hidrograma foi definido pela empresa junto ao governo para atender essa medida e está em vigor desde 2019, ano de conclusão da instalação de todas as turbinas da hidrelétrica. Hoje, ele é um dos pontos mais sensíveis e críticos do processo de renovação da licença de operação de Belo Monte, vencida desde 2021. Como a Norte Energia solicitou a renovação dentro do prazo estipulado por lei, a usina pode continuar operando até a decisão final do Ibama, mesmo com a licença vencida.

Ao barrar o fluxo do rio, um dos maiores da Amazônia, a hidrelétrica passou a desviar em média entre 70% e 80% das águas que, antes, alimentavam o Xingu no trecho da Volta Grande. O desvio se explica pelo modelo à fio d’água da usina, que não possui um reservatório de acumulação. Outras hidrelétricas do mesmo porte no Brasil, como Itaipu e Tucuruí, possuem imensos reservatórios para regular a quantidade de água que passa pelas turbinas. Já Belo Monte depende do fluxo natural do rio.

Para essa engenharia funcionar, foi preciso barrar o Xingu logo antes da Volta Grande e desviar a água do rio para alimentar a casa de força principal da hidrelétrica, que conta com 18 turbinas e 11 mil megawatts (MW) de potência instalada – para comparação: Itaipu, a maior usina do país, tem 14 mil MW de capacidade.

Assim, a geração de energia por Belo Monte implica na redução do volume do Xingu ao longo da Volta Grande com impactos graves para os ecossistemas e para a vida das populações locais, profundamente ligados ao pulso do rio.

Diretoria do Ibama reconhece que usina não garante equilíbrio da vida no rio

Em seu mais recente posicionamento, a diretoria de licenciamento do Ibama reconhece isso e afirma que, depois de quase uma década de operação da hidrelétrica e a realização de vários estudos, ainda não foi possível determinar um esquema de vazões que assegure “a manutenção dos ecossistemas naturais, os modos de vida das comunidades residentes e a compatibilização com a geração de energia”.

Em uma ação judicial no início deste ano, que também abordou a quantidade de água para a Volta Grande, a Norte Energia afirmou que a definição do atual hidrograma teve como fundamento central o equilíbrio entre o uso dos recursos hidroenergéticos do Xingu e a manutenção da qualidade ambiental, considerando o caráter estratégico da hidrelétrica para o país. Na ocasião, a empresa lembrou que o esquema de vazões já foi escrutinado pelo menos 14 vezes ao longo do processo de licenciamento ambiental, tendo contado com o aval de vários órgãos públicos em diferentes etapas e gestões da administração pública.

A Pública também pediu mais respostas à empresa, que ainda não retornou à reportagem.

“Hoje em dia quem manda no ciclo é a Norte Energia. O rio Xingu está sendo escravizado pelo desenvolvimento, um desenvolvimento que não serve para mim, que sou pescadora, beiradeira, mãe e liderança aqui na Volta Grande”, disse a pescadora Sara Rodrigues Lima à reportagem em fevereiro deste ano, quando a Pública esteve na região e mostrou os impactos da operação da hidrelétrica para a reprodução de várias espécies de peixes. 

Antes da hidrelétrica, a vazão do Xingu em fevereiro, por exemplo, atingia em média 13,5 mil metros cúbicos. Pelo hidrograma em vigor, a vazão para o mesmo mês é de apenas 1,6 mil m³ — isto é como cortar a vazão por oito. Análises técnicas do Ibama mostram que o atual esquema de vazões provoca uma redução de 70% da área inundada pelo Xingu na estação de cheia na comparação com o cenário pré-hidrelétrica.

Essa redução não é nada desprezível para várias espécies de animais e plantas que, ao longo de milhares de anos, evoluíram para se adaptar aos ciclos naturais de cheia e de seca do rio.

Para mostrar esses impactos, indígenas e ribeirinhos criaram um monitoramento próprio, o Monitoramento Ambiental Territorial Independente (MATI), que conta com apoio de Instituto Socioambiental, Universidade Federal do Pará, Universidade de São Paulo e Instituto de Pesquisas da Amazônia.

Réguas do Monitoramento Ambiental Territorial Independente na piracema do Odilo, na Volta Grande do Xingu, que, antes da usina de Belo Monte, sempre alagava em fevereiro, mas agora está totalmente seca
Réguas do Monitoramento Ambiental Territorial Independente na piracema do Odilo, na Volta Grande do Xingu, que, antes da usina, sempre alagava em fevereiro, mas que estava totalmente seca.

“A gente percebeu que tinha algum problema, que os peixes não estavam se reproduzindo. Foi quando surgiu a ideia de monitorar as piracemas, que são os locais de reprodução de vários peixes”, explicou Josiel Juruna, coordenador do MATI, em entrevista para o podcast Xingu em Disputa, lançado nesta quarta-feira, 27 de agosto, pela Pública.

O podcast, disponível aqui, explica em detalhes as consequências que Belo Monte trouxe para o rio e para os habitantes e mostra o trabalho do MATI.

Além de levantar dados diariamente sobre os impactos da hidrelétrica, o MATI também já sugeriu ao Ibama um novo hidrograma, chamado Hidrograma Piracema, planejado para ser mais próximo ao ciclo natural de cheia e seca do Xingu a fim de garantir o alagamento de áreas de reprodução de peixes e da floresta aluvial.

Em suas análises técnicas, o Ibama afirma ter identificado “alterações significativas na estrutura da comunidade de peixes, na abundância e nos padrões reprodutivos das espécies”.

Já a Norte Energia afirma que apesar do declínio da atividade pesqueira, seus monitoramentos, desenvolvidos junto com a Universidade Federal do Pará, demonstram que a maioria das espécies manteve a proporção de peixes maduros e que alterações no padrão de reprodução de algumas espécies já eram previstas no Estudo de Impacto Ambiental da hidrelétrica, aprovado anos atrás pelo Ibama.

Uma batalha de anos pelas águas do rio Xingu

Não é a primeira vez que o Ibama pede mudanças no hidrograma. Antes do vencimento da licença de operação, ainda em 2020, a presidência do órgão concordou com a área técnica do órgão de que era necessário estabelecer um esquema de vazões provisório para diminuir os impactos na região.

A empresa contestou a determinação judicialmente até que, no início de 2021, durante a gestão Bolsonaro, a Norte Energia e o Ibama firmaram um Termo de Compromisso Ambiental que restabeleceu o hidrograma atual e determinou novas medidas de compensação para a Volta Grande. Esse termo venceu no início de 2024 sem que todas as medidas estipuladas tivessem sido concluídas pela empresa.

Ao longo dos últimos anos, várias vistorias do Ibama na região reportaram alterações nos processos de erosão do rio e morte de parte da vegetação. Além disso, registraram dificuldades na navegação devido à falta de volume de água e “desestruturação do modo de vida pesqueiro”, o que vem causando não só a perda de renda e problemas para a alimentação (o peixe era a proteína base da dieta local), mas também danos à transmissão dos saberes tradicionais dos povos indígenas e ribeirinhos.

Após uma dessas vistorias, no final de 2023, um relatório de técnicos do Ibama chegou a recomendar que a Norte Energia ajustasse o hidrograma para a região da Volta Grande, com “água suficiente para que a ictiofauna [peixes] se reproduza nos meses de dezembro, janeiro, fevereiro e março”.

A recomendação, no entanto, não subiu de nível na hierarquia do órgão. Em comunicado à empresa, a Diretoria de Licenciamento Ambiental do Ibama disse que a questão do hidrograma ainda estava “sob avaliação institucional” e orientou a Norte Energia a aguardar novas orientações. Desde então, o órgão só havia se manifestado em situações pontuais sobre a vazão.

Agora, um ano depois, a diretoria sugeriu à presidência do Ibama que seja estipulado um prazo para que a empresa apresente uma nova proposta de hidrograma. Essa nova proposta deveria considerar não só as recomendações do próprio Ibama, mas também os apontamentos do MATI e, ainda, aspectos ambientais e da segurança energética do país.

A segurança energética é um dos pontos de preocupação do Ministério de Minas e Energia (MME) e do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) nas discussões sobre o hidrograma. Segundo esses órgãos, a geração de Belo Monte contribui para atender a demanda por energia elétrica no país principalmente nos meses de cheia (justamente os meses da reprodução dos peixes), o que permite poupar reservatórios das regiões Sudeste e Centro-Oeste.

Por envolver questões energéticas, que vão além do licenciamento ambiental, a diretoria do Ibama sugeriu que seja criado um painel com representantes do MME, ONS, além da Agência Nacional de Águas (ANA) e do Ministério de Meio Ambiente e Mudança do Clima para discutir a questão do hidrograma.

Enquanto isso, técnicos do órgão ainda estão analisando as outras medidas condicionantes no processo de renovação da licença. Na última análise, realizada em 2022, o Ibama apontou que das 47 medidas condicionantes, apenas 13 haviam sido integralmente cumpridas até então.

A Pública entrou em contato com o Ibama sobre dúvidas do processo, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.

Edição:
Bruno Fonseca e Matheus Pigozzi/Agência Pública
Jennifer Bandeira/ISA
Bruno Fonseca e Matheus Pigozzi/Agência Pública

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Se você chegou até aqui é porque realmente valoriza nosso jornalismo. Conheça e apoie o Programa dos Aliados, onde se reúnem os leitores mais fiéis da Pública, fundamentais para a gente continuar existindo e fazendo o jornalismo valente que você conhece. Se preferir, envie um pix de qualquer valor para contato@apublica.org.

Vale a pena ouvir

EP 4 O futuro não é garantido

Povos tradicionais ainda enfrentam impactos de Belo Monte - e para quê? No último episódio, vamos atrás dessa resposta

0:00

Leia de graça, retribua com uma doação

Na Pública, somos livres para investigar e denunciar o que outros não ousam, porque não somos bancados por anunciantes ou acionistas ricos.

É por isso que seu apoio é essencial. Com ele, podemos continuar enfrentando poderosos e defendendo os direitos humanos. Escolha como contribuir e seja parte dessa mudança.

Junte-se agora a essa luta!

Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes