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PL tenta proibir transporte de animais vivos e evitar tortura em mercado de R$ 2 bilhões

Projeto propõe fim da exportação de bois vivos em 5 anos e regula transporte e bem-estar animal antes de data-limite

Reportagem
13 de agosto de 2025
15:08
Exportação de gado vivo no Porto de Santos (SP)
Codesp/reprodução

Carcaças de bois tomaram rios do estado do Pará e impregnam comunidades pesqueiras da região com um forte odor podre. Cerca de 5 mil bovinos foram parar na água após um navio afundar no porto de Vila do Conde (PA), deixando, além do rastro de morte, manchas por aproximadamente 4 km no mar Atlântico após o derramamento de 700 toneladas de óleo diesel. O ano era 2015 e o episódio ainda é um dos exemplos mais concretos dos impactos pouco discutidos oferecidos pela exportação de animais vivos, um mercado de mais de R$ 2 bilhões anuais.

Amontoados em baias metálicas, milhares de bois viajam por até 30 dias pelos Oceanos Atlântico e o Índico, confinados, apertados entre fezes e urina. Não é incomum que alguns não resistam: morrem cozidos por dentro, vítimas de estresse térmico; outros, afetados pela concentração de amônia nos espaços, chegam ao destino sem enxergar. Parte dos corpos é jogada ao mar ou triturada na própria embarcação. Essa é a realidade de pelo menos 400 mil animais transportados por ano do Brasil para países no Oriente Médio e norte da África — em 2024 cerca de 1 milhão de animais foram exportados, um recorde.

Um destino que pode ser proibido recorrente, caso o projeto de lei 2.627/2025, proposto pela deputada Duda Salabert (PDT-MG) seja aprovado pelo Congresso Nacional. A proposta quer proibir a exportação de animais vivos dentro de cinco anos após a aprovação da lei, estabelecendo cotas anuais de redução até que a meta seja batida, além de normas que garantam o mínimo de bem-estar animal durante o período de adaptação. Além disso, estabelece limite de tempo de funcionamento das embarcações de transporte e que ele seja feito com o acompanhamento de equipes veterinárias a bordo, bem como fiscalização contínua pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA).

Salabert argumenta que a transição para um modelo baseado na exportação de carnes, ao invés do animal vivo, pode agregar maior valor ao setor, gerar mais empregos e fortalecer os setores sem comprometer a balança comercial. “Experiências internacionais indicam que a restrição da exportação de animais vivos não prejudicou a economia dos países exportadores, mas impulsionou o crescimento da exportação de carne refrigerada e congelada”, justifica a deputada no texto do projeto de sua autoria.

“As denúncias se repetem: navios velhos e adaptados, transporte insalubre, alimentação insuficiente e risco elevado de transmissão de zoonoses. […] A exportação de animais vivos representa menos de 5% do valor da carne exportada, mas o argumento de prejuízo econômico é usado para travar avanços, quando, na verdade, o prejuízo é deixar que parte da cadeia econômica de processamento de carne seja feita fora do Brasil”, afirmou a deputada à Agência Pública. 

De acordo com o Beef Report 2024 da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (ABIEC), a exportação de gado vivo somou R$ 2,4 bilhões em 2023, menos da metade da exportação de couro (R$ 5,6 bilhões) ou de carne, mercado vezes maior, que representou R$ 49,9 bilhões na balança comercial há dois anos. 

A carne está entre os produtos sujeitos ao tarifaço de 50% imposto pelo governo Trump às vendas feitas aos Estados Unidos desde o início de agosto. A exportação do animal vivo, no entanto, representa um lucro que varia entre 20% e 25% em relação ao comercializado em território nacional, motivo pelo qual o mercado encontra espaço para se manter.

Propostas enfrentam resistência da bancada ruralista

O Brasil segue os requisitos mínimos previstos na Convenção Internacional de Segurança Marítima no que diz respeito à exportação de animais vivos. Países como Austrália e Irlanda restringem tempo de funcionamento, histórico e bandeira das embarcações que fazem esse tipo de transporte e servem de inspiração para propostas legislativas brasileiras. Além do PL 2.627/25, outros sete já foram propostos no Congresso Nacional para proibir ou desestimular esse tipo de exportação, sem no entanto, encontrar condições de tramitação para que ganhem força de lei. 

“É um problema intrínseco da exportação de animais vivos, porque o sucesso, o êxito econômico dessa operação depende de colocar muitos animais dentro de um navio e levar para outro lado do mundo”, afirma o diretor de Relações Governamentais e Políticas Públicas da ONG Mercy For Animal (MFA, do inglês “Piedade para os animais”), George Sturaro, que afirma que o projeto em questão encontra mais chances de receber atenção por propor a redução gradual da atividade, em vez de apenas proibi-la. “Se reduz o número de animais [por embarcação], se melhora as condições [para o gado], a atividade não é mais economicamente rentável”.

O confinamento contínuo favorece infecções respiratórias e oculares, provocadas pela alta concentração de amônia no ar em espaços sem ventilação adequada. “São raros os navios que possuem um veterinário. Às vezes, [quando há] é um veterinário para 20 mil animais, então se o animal desenvolve uma doença, se lesiona, dependendo da gravidade, esse animal vai morrer. E esses animais que morrem são jogados ao mar”, diz Sturaro. 

Em 2018, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já havia manifestado e reconhecido a necessidade da presença de um médico veterinário como responsável técnico em empresas que comercializam animais vivos sempre que houver necessidade de intervenção ou tratamento médico nos animais.

Sturaro explica que projetos semelhantes enfrentam barreiras porque precisam passar pelas Comissões de Agricultura da Câmara e do Senado, dominadas pela bancada ruralista, que costuma votar contra iniciativas vistas como “restritivas ao agronegócio”: “Os parlamentares vinculados aos interesses do agronegócio não vão aceitar como argumento a questão do bem-estar animal, porque não tem atividade pecuária que não envolva algum nível de sofrimento”. 

Além disso, a exportação confere poder de barganha aos pecuaristas e pode ajudar a não diminuir o preço da carne. “Mesmo que ele não vá exportar, ele tem mais poder de barganha para negociar com o frigorífico porque ele pode dizer: ‘olha, se você não comprar meu boi, eu exporto’”, complementa Sturaro.

“A exportação de animais vivos representa menos de 5% do valor da carne exportada, mas o argumento de prejuízo econômico é usado para travar avanços, quando, na verdade, o prejuízo é deixar que parte da cadeia econômica de processamento de carne seja feita fora do Brasil”, complementou Salabert.

Procurado, o Ministério da Agricultura e Pecuária não respondeu sobre como são feitas as fiscalizações sobre as condições das exportações e transporte de animais vivos nem sobre a diferença entre critérios adotados e cenários encontrados quanto ao bem-estar animal. Caso haja manifestação, este espaço será atualizado. 

Senado vai debater assunto em audiência

Uma audiência pública foi convocada na Comissão de Meio Ambiente (CMA) do Senado para o próximo dia 19 de agosto para discutir os impactos socioeconômicos, sanitários e ambientais do transporte de animais vivos para fins de exportação. O encontro, convocado pelo senador Fabiano Contarato (PT-ES), também deve abordar projetos de lei que estão travados nas duas Casas. 

“Não há espaço para nenhuma forma de crueldade nos tempos de hoje. Sou defensor da dignidade animal e acredito que práticas brutais, desnecessárias e economicamente questionáveis, como a exportação de animais vivos para abate no exterior, não podem ser toleradas em um país que se pretende moderno e humanitário”, afirmou em entrevista à Pública. 

Edição:
Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados
Eurico Zimbres/Creative Commons
STJ/reprodução
Rafa Neddermeyer/Agência Brasil
Waldemir Barreto/Agência Senado

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