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Lobby de empresas de petróleo desafia tratado que tenta frear poluição por plástico

Petroquímicas aumentam presença nas negociações, que recomeçam nesta semana

Reportagem
5 de agosto de 2025
08:00

A partir desta terça-feira, 5 de agosto, representantes de mais de 170 países se reúnem em Genebra, na Suíça, com uma missão: entregar ao mundo o primeiro tratado global, com força de lei, contra a poluição por plásticos. O evento se chama Comitê Intergovernamental de Negociação sobre Plásticos (INC, na sigla em inglês).

Mas apesar das evidências do problema – há décadas a produção de plásticos cresce sem que a capacidade de reciclagem acompanhe, fazendo dos materiais os resíduos mais abundantes nos oceanos – não será nada fácil chegar a um acordo.

Em novembro do ano passado, no que era para ter sido a última rodada de negociações, os diplomatas não conseguiram chegar a um consenso nem sobre o objetivo do tratado. Concordaram que o acordo deve: “proteger a saúde humana e o meio ambiente, incluindo o ambiente marinho, da poluição plástica”. Mas ficou em aberto se o tratado vai abordar todo o “ciclo de vida dos plásticos” – da produção ao descarte.

Agora, os negociadores precisam resolver este e vários outros pontos em aberto até o dia 14 de agosto. Isso vai ocorrer em meio à pressão da indústria petroquímica, representada por um número crescente de lobistas nas negociações, e a reivindicações de organizações da sociedade civil, que pedem mais participação e transparência no processo.

Por que isso importa?

  • A poluição por plásticos impacta diversos ambientes e formas de vida, desde animais marinhos que comem o material à contaminação de fontes de água usadas por humanos;
  • Os microplásticos, gerados a partir da degradação do plástico, são uma ameaça para a saúde humana ainda pouco conhecida, e já foram encontrados até mesmo no leite materno.

Países produtores de petróleo, como Arábia Saudita, Catar, Kuwait e Rússia, vêm se opondo à ideia de que o tratado envolva a produção de plásticos desde as primeiras etapas. Já do lado do setor privado, grandes petroquímicas e associações do setor têm se posicionado para que o acordo foque em medidas para incentivar a economia circular, com mais reciclagem e reuso, mas sem envolver restrições à produção e tipos de produtos.

Mas, para dezenas de países, ainda que seja fundamental fomentar a economia circular, é preciso fazer mais. Há propostas para o estabelecimento de restrições a produtos de uso único e de uma meta global de redução da produção, defendidas também pela comunidade científica e por organizações da sociedade civil.

Representantes de diversos países participam da rodada de negociações do tratado global para combater a poluição por plástico. O processo enfrenta resistência de grandes produtores e do lobby de petroleiras.
Evento na Suíça pode definir primeiro tratado global, com força de lei, sobre a produção de plástico. Imagem do encontro em 2024, na Coreia.

Plástico: apenas minoria é reciclada

O mundo produz hoje mais de 430 milhões de toneladas de plástico, das quais dois terços são produtos de vida curta, que rapidamente se transformam em lixo, permanecendo no ambiente e indo parar até em órgãos humanos. Segundo a OCDE, apenas 9% do plástico produzido é reciclado no mundo – e ainda há muitas barreiras que travam o aumento desse percentual.

Plástico é o nome genérico de diferentes tipos de resinas, feitas a partir de petróleo e substâncias químicas também provenientes da indústria petrolífera. Praticamente todos os plásticos – 99% – são produzidos a partir de combustíveis fósseis. E, conforme a transição energética avança, o futuro dessa indústria passa por continuar fazendo plástico: a estimativa da Agência Internacional de Energia (EIA) é que, até 2050, produtos petroquímicos (como plásticos e fertilizantes) respondam por quase metade da demanda por petróleo até 2050.

Lobby em peso

Desde que as negociações para o tratado começaram, em novembro de 2022, sete petrolíferas e petroquímicas (Dow, ExxonMobil, BASF, Chevron Phillips, Shell, Sabic e Ineos) expandiram sua capacidade de produção de plástico em 1,4 milhão de toneladas, segundo uma análise recente do Greenpeace.

“Essas sete empresas estão entre as lobistas corporativas mais importantes no processo do tratado e enviaram um total de 70 representantes desde o início das negociações”, diz o Greenpeace.

As gigantes Dow e a ExxonMobil, ambas americanas e duas das maiores produtoras globais de resinas para plásticos de uso único, foram as mais bem representadas, com 21 e 14 representantes, respectivamente.

O lobby é do jogo, e faz parte de negociações desse tipo, até porque todos os setores da sociedade podem e devem se manifestar sobre assuntos de seus interesses. Mas no caso do tratado dos plásticos, organizações vêm denunciando o grande número de lobistas e diferenças no nível de participação.

Alguns cientistas também relataram terem sido assediados e intimidados por representantes das indústrias fóssil e química. Questionado sobre o assunto pela reportagem, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Unep), que supervisiona as negociações, disse ter recebido três reclamações formais ao longo dos últimos três anos.

Na última sessão de negociação do tratado, em novembro, mais de 220 lobistas da indústria fóssil e química estiveram presentes, um recorde, conforme levantamento do Centro para Direito Ambiental Internacional (CIEL). Se tomados em conjunto, eles representariam a maior delegação, com mais representantes até do que a União Europeia, que contou com 191 delegados na última rodada.

O CIEL identificou, ainda, que pelo menos 17 lobistas da indústria faziam parte de delegações nacionais, de países como Irã, Egito, Cazaquistão, China, Malásia, Peru, República Dominicana e Finlândia.

“Desde que as negociações começaram, nós vemos um número crescente de países se manifestando por ambição [no acordo], incluindo cortes na produção de plástico. Essas medidas ameaçam a lucratividade da indústria dos plásticos, por isso eles têm aparecido com força para tentar evitar que essas medidas sejam incluídas no tratado”, disse à Pública Rachel Radvany, analista do CIEL.

Segundo Radvany, integrantes da organização chegaram a receber alertas de que alguém estaria tentando acessar seus computadores durante as negociações, além de terem flagrado lobistas tirando fotos das telas de pessoas das organizações da sociedade civil.

“Eles estão por todos os lados, e temos sempre que tomar cuidado com computadores e celulares expostos”, contou à reportagem o engenheiro químico Rafael Eudes, do comitê gestor da Aliança Resíduo Brasil.

De acordo com Eudes, que acompanhou todas as rodadas de negociação, a delegação brasileira tem sido pressionada por representantes da indústria química, que consideram que medidas ambiciosas podem gerar perdas econômicas e de empregos.

Manifestantes pedem a redução da produção de plástico durante protesto na Coreia do Sul, um dos países que participam das negociações do tratado internacional contra a poluição plástica.
Protesto a favor de limites na produção de plástico durante rodada de negociações na Coreia, em 2024

Cientistas querem ser ouvidos

Em fevereiro, um grupo de dezenas de cientistas de vários países chamado Coalizão de Cientistas para um Tratado Efetivo sobre Plásticos chegou a enviar uma carta às instâncias da ONU responsáveis pela negociação pedindo que sejam tomadas medidas para garantir a participação deles como observadores nas negociações e denunciando que, nas últimas sessões, foram “excluídos de grande dos procedimentos e houve poucas oportunidades para intervenções nas plenárias”.

Como não foi estabelecido um comitê científico formal para aconselhar as negociações do tratado sobre plásticos, a coalizão de cientistas vêm tentando preencher essa lacuna.

“[A coalizão] tem trabalhado de forma voluntária e livre de conflitos de interesse para fornecer as melhores informações científicas disponíveis e subsidiar o posicionamento dos países. Esse processo de suporte e de tradução do conhecimento científico é especialmente relevante para delegações menores”, explica a bióloga Natalia Grilli, que integra a coalizão.

Os órgãos da ONU responderam a essa e outras cartas enviadas por organizações da sociedade civil, que também pediam mais garantia de participação e transparência das negociações, reconhecendo a possibilidade de readequar espaços de reunião para receber mais observadores e oferecer tempo de fala nas plenárias.

Em uma carta anterior, mais de cem organizações também pediram que seja estabelecida uma política para prevenir o conflito de interesse durante as negociações do tratado, similar ao que aconteceu na Convenção da Organização Mundial da Saúde para o Controle do Tabaco, um dos maiores tratados da ONU.

“Aqueles que criaram e se beneficiam do problema não devem ser vistos como parceiros confiáveis para desenvolver soluções”, afirmou Radvany. “Acreditamos que deve haver uma política de conflito de interesses aplicada às negociações, onde o acesso de representantes da indústria do plástico seja limitado, semelhante ao tratado do tabaco, em que a indústria do tabaco não tem permissão para participar”, completou.

À Pública, o Unep afirmou que políticas de conflito de interesse precisariam ser definidas e acordadas pelo comitê intergovernamental que conduz as tratativas.

Segundo o relatório do Greenpeace, muitos lobistas chegam aos locais de reunião dias antes das negociações formais começarem para realizar jantares e encontros privados que “influenciam relacionamentos e narrativas”. “Essas táticas ecoam as usadas nas convenções climáticas, nas quais o lobby nos bastidores muitas vezes molda os resultados antes mesmo das negociações começarem”, afirma a ONG.

Trabalhadoras fazem a triagem manual de resíduos em uma cooperativa de reciclagem, onde toneladas de plástico são separadas diariamente. Mesmo com esse esforço, o volume produzido segue crescendo no mundo todo.
Reciclagem de plástico ainda é insuficiente para resolver o problema da poluição causada pelo excesso do uso do material

Lobbies diferentes, mesmas táticas

Para a analista do CIEL, as mesmas técnicas usadas pela indústria do tabaco e pela de combustíveis fósseis vêm sendo aplicadas nas negociações sobre poluição plástica para diminuir a ambição do acordo e preservar os interesses industriais.

“As duas principais estratégias incluem enfatizar como a sociedade depende desses produtos (por exemplo com o termo “plásticos essenciais”) e lançar dúvidas sobre as evidências dos danos desses produtos (por exemplo, financiando estudos que minimizam os impactos negativos dos plásticos)”, explica Radvany. “Também há ênfase nas supostas soluções propostas pela indústria, que só servem para que os poluidores continuem seus negócios”.

A organização InfluenceMap analisou mais de 300 conteúdos corporativos sobre o tratado dos plásticos e descobriu que empresas como ExxonMobil, Dow, BASF, Sabic e as associações da indústria advogaram para enfraquecer a ambição do acordo, defendendo principalmente que os governos priorizassem medidas de reciclagem. Segundo a organização, representantes dessas empresas e associações também atuaram contra a inclusão de medidas para limitar a poluição e endereçar o uso de substâncias químicas tóxicas.

“Embora tenha havido apelos por limites ou proibições de produção, é reconfortante ouvir líderes compartilharem sua crença de que tais medidas podem privar o mundo — especialmente o mundo em desenvolvimento — dos benefícios incalculáveis que os plásticos oferecem em termos de saúde, segurança alimentar, meio ambiente, transição energética e muito mais”, afirma a ExxonMobil em seu site, por exemplo.

Duas associações brasileiras enviaram representantes para a negociação em novembro, a Abiplast, que representa a indústria do plástico, e a Abiquim, da indústria química. Esta última lançou no final do ano passado a campanha “Vamos falar sobre plástico” para incentivar o descarte adequado e melhores práticas de reciclagem e reutilização. André Passos, presidente-executivo da associação, disse que a campanha é necessária em meio aos debates sobre uso e reciclagem, nos quais às vezes o plástico “acaba saindo como vilão”.

“A economia circular é o pilar central para o sucesso do Acordo Global do Plástico”, diz uma publicação da campanha. “Restrições e regulações rígidas da produção de plástico podem gerar impactos socioeconômicos negativos na economia de muitos países, especialmente daqueles em desenvolvimento”.

Ninguém disputa a necessidade de incentivar a economia circular, com muito mais reuso de produtos e reciclagem. O problema é que, até hoje e apesar de promessas das empresas do setor, os índices de reciclagem não aumentam de forma substantiva a fim de dar conta da quantidade de lixo plástico produzido.

Segundo o Fórum Econômico Mundial, mais de 40 anos depois do lançamento do símbolo universal da reciclagem, só 14% das embalagens plásticas são coletadas para serem recicladas. A taxa de reciclagem de plásticos no geral é ainda mais baixa e “muito menor” do que as taxas globais para papel (58%) e ferro e aço (70-90%), segundo o fórum.

No ano passado, documentos de uma empresa de relações públicas obtidos pelo setor de investigação do Greenpeace no Reino Unido mostraram que cinco integrantes da “Alliance to End Plastic Waste” (aliança para acabar com o lixo plástico, em tradução livre), fundada por empresas como ExxonMobil, Dow, Shell e TotalEnergies, produziram em cinco anos mil vezes mais plástico primário do que o material que eles recuperaram do meio ambiente.

São exemplos sintomáticos da complexidade de se chegar a um tratado global, acordado por consenso, sobre um tema difícil que nunca antes tinha sido debatido no âmbito internacional.

No geral, os países já concordaram em melhorar o design de produtos plásticos para incentivar a economia circular e em tomar medidas para que o descarte seja feito de forma mais sustentável. Mas o consenso basicamente parou por aí.

Diminuir a quantidade de produtos plásticos de uso único (como copos descartáveis), controlar o uso de substâncias químicas tóxicas e implementar uma meta global de redução da produção são alguns dos pontos mais espinhosos, que terão que ser enfrentados nos próximos dias.

Há ainda um ponto defendido pelo Brasil e outros países sobre a necessidade de definir quem vai colocar na mesa os recursos financeiros necessários para que todos os países, especialmente as pequenas ilhas e os países em desenvolvimento, possam tomar medidas para melhorar os processos de descarte dos resíduo e incentivar a reciclagem, inclusive estabelecendo legislação específica.

“Estou aqui em Genebra e ouvi de um representante de Fiji que o país tem mais de 300 ilhas, das quais mais de 100 são populadas, e apenas um aterro sanitário para todo o país”, contou a bióloga Natalia Grilli.

Edição:
UNEP / Duncan Moore
UNEP
Edmar Chaperman/Funasa

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