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Da Igreja Universal a pai de santo: gari vence na justiça processo por racismo religioso

Exposto ao grau máximo de insalubridade, trabalhador ainda enfrentou discriminação religiosa no Distrito Federal

Reportagem
4 de setembro de 2025
04:00
Genilson Santos de Araújo, 40 anos, gari em Brasília (DF)
Paulo Pepe/Agência Pública

Era 9 de novembro de 2023. Faltavam poucas horas para Genilson Santos de Araújo, 40 anos, encerrar o aviso prévio e deixar para trás quatro anos de trabalho como gari em Brasília (DF). Ele relembra a sensação de invisibilidade nas ruas e o silêncio diante de olhares enviesados e piadas sussurradas de quem via apenas aquilo que é diferente do outro. O preconceito, ele diz, ressoava nas ondas da “rádio-peão” da empresa Valor Ambiental. Mas naquela manhã de novembro, um supervisor lançou uma sentença à Genilson em meio ao pátio da empresa: “você sabe que a religião de macumba é errada. Se Jesus voltar hoje, você vai pro inferno direto”, teria dito o homem. Genilson, sem responder, resolveu que era preciso varrer o racismo religioso da frente e foi à Justiça.

Na periferia de São Sebastião, na região norte do Distrito Federal, a rotina de Genilson era uma só dia após dia durante quatro anos num lixão improvisado, um depósito vivo de contaminação conhecido como “papa-lixo”. Ali, ele recolhia sacos, muitos deles rasgados, em meio às ruas de terra batida. Genilson conta ter visto de restos e ossos de animais; fezes humanas a comida em decomposição. Um cheiro que, segundo ele, impregna pele e pulmões.

Ao buscar seus direitos na justiça do trabalho, a perícia judicial não hesitou ao destacar no laudo, obtido pela Agência Pública: “risco máximo, insalubridade em grau de 40%” na coleta de lixo urbano.

O adicional de insalubridade que deveria constar na folha de pagamento do gari nunca apareceu. Segundo o processo, a Valor Ambiental negou o fato, sustentando que a coleta do material cabia a outra equipe. No entanto, fotos, testemunhas e laudos indicaram o contrário.

A reportagem tentou contato com a empresa Valor Ambiental, mas não houve retorno até a publicação.

Racismo Religioso

Enquanto gari, Genilson precisou lidar com mais um problema além da insalubridade do trabalho: o preconceito religioso. Seus adereços de Umbanda (guias ou colares) chamavam atenção — e provocavam comentários entre os colegas da empresa. Um deles perguntou se Genilson mantinha “caveiras e galinhas mortas” em casa, insinuando rituais malignos.

Jivago Costa, colega de turno e testemunha do preconceito, relatou à Justiça que Genilson tentou alertar os supervisores e diretores, mas que nada mudou. O silêncio institucional permitiu que a intolerância religiosa se mantivesse. No processo, há trechos como o destacado a seguir, em que há relatos da discriminação.

“Me sentia isolado, muitas vezes era designado pelos meus superiores a trabalhar em lugares distantes de banheiros públicos ou de onde pudesse me alimentar com dignidade”, lembra Genilson. No processo trabalhista, a empresa alegou que a demissão ocorreu por “baixa performance” do trabalhador e por conta de uma “reestruturação”. A defesa de Genilson nega e afirma que os documentos tinham inconsistências e não comprovam a alegação. Essa justificativa para a demissão surgiria após o seu desligamento — argumento que não se sustenta, segundo seu advogado Hugo Leonardo de Rodrigues e Sousa.

O histórico trabalhista de Genilson não registrava mau desempenho. O relator do recurso, desembargador Pedro Luís Vicentin Foltran, destacou que a omissão da empresa diante de atos de racismo religioso configura “violação à dignidade do trabalhador” e impõe responsabilização civil. “É nesse contexto de racismo estrutural e de apagamento das tradições negras que devemos olhar de perto o caso em tela. A violência verbal também é violência”, argumenta o magistrado.

O Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região reconheceu, em segunda instância, que Genilson foi vítima de racismo religioso, condenando a empresa Valor Ambiental a pagar seis salários e R$ 15 mil por danos morais — três vezes mais que a primeira instância. Para o advogado Hugo, a decisão é um avanço não só para casos de perseguição religiosa, mas para toda prática discriminatória.

O Instituto de Estudos da Religião (ISER) alerta que casos como o de Genilson não são isolados. A intolerância religiosa no trabalho continua, muitas vezes camuflada em olhares, comentários ou ausência de ação institucional. Segundo os pesquisadores do ISER consultados pela reportagem, a Constituição Federal garante a liberdade de crença.

Reportagem da Pública mostrou que dados divulgados pelo Ministério dos Direitos Humanos em 2024, o Disque 100, recebeu 2.472 denúncias de intolerância religiosa — um aumento de 76,8% em relação a 2023.

Medo do inferno

A história de Genilson não começa — nem termina — no pátio da empresa Valor Ambiental. O fio condutor atravessa púlpitos, terreiros e tribunais. “A minha mãe foi para Igreja Evangélica e ouviu o pastor falando que Jesus estava voltando e que quem não o aceitasse iria para o inferno. Ela levou essa doutrina para dentro de casa e isso gerou medo. Fiquei tão assustado que passei a participar dos cultos da Igreja Universal, aos 15 anos. O medo me fez ficar lá dentro”, lembra. Aos 16, Genilson já pregava. Aos 17, tornou-se pastor auxiliar. “Na Igreja Universal, a vida de um obreiro (que seria o menor na hierarquia) e do pastor auxiliar é marcada pela devoção extrema ao pastor. O que ele fala é lei, como num quartel general”, explica.

De acordo com pastores consultado pela reportagem, o caminho até o púlpito começa como obreiro, passa pelo Instituto Bíblico Universal (IBURD) e só então o título de pastor auxiliar pode ser concedido. E o cotidiano vai muito além dos cultos. “Existem metas a serem cumpridas, principalmente, quando um pastor vai assumir uma igreja e sai da função de auxiliar para pastor titular. Nessa posição, ele tem que atingir uma boa coleta de “votos”, ou seja, dinheiro doado por fiéis. Na minha época, não sei se ainda permanece, uma vez por ano era feita a “Fogueira Santa” onde a Igreja Universal arrecadava muito porque os fiéis vendiam casa, carro e doavam boa parte do dinheiro. A intenção era receber tudo em dobro e o pastor que arrecadava mais recebia uma promoção”.

Gazofilácio: cofre do tesouro

Genilson diz que, no culto, quando o pastor “expulsa um demônio”, o público prende a respiração. O “demônio”, explica ele, é uma rotulação equivocada de Exu — entidade da religião afro-brasileira, ligada aos desejos mais terrenos: dinheiro, amor e prosperidade. “Exu é vida. Não é o demônio,” explicou em entrevista de 2022 à Pública, o babalorixá  Sidnei Nogueira, que também é professor e doutor em Semiótica pela USP (Universidade de São Paulo).

Segundo Genilson, “o pastor precisa do Exu e da Pomba Gira dentro da igreja. Eles abrem caminhos”, diz. O clímax do ritual, garante, só acontece depois do gazofilácio (caixa de ofertas) ficar cheio, o demônio é libertado e o pastor sai em alta. “A própria entidade ‘entrega’ o roteiro, por meio da incorporação de um fiel. O pastor só confirma: diz que a vida da pessoa está travada, que o marido largou a mulher… ou que o negócio vai mal e pronto.”

Foi o que aconteceu com Genilson, ele conta. Da Universal ele foi para a Igreja Mundial e em seguida ajudou a fundar um ministério próprio. Pregava sobre prosperidade, mas dentro da casa dele as dívidas se acumulavam, além de várias outras dificuldades. “Eu pregava algo que não vivia”, confessa. Mas ele conta que a reviravolta veio dentro da própria Igreja. Durante um culto, ele conta que teria sentido o corpo tremer. O suor frio escorria, a voz mudava sem controle. Genilson conta que um Exu teria falado por ele, descrevendo a vida íntima de um fiel que, em prantos, confirmou cada palavra. “Não sabia, mas o Exu que me acompanhava trazia revelações, falava o que deveria pregar e sempre pensei que essa voz que me intuía era a do Espírito Santo”, lembra. Ele conta que os fieis ficaram chocados durante o culto e perceberam a mudança de semblante, comportamento e voz do pastor.

Uma semana depois, Genilson pisou pela primeira vez em um terreiro de Umbanda à convite de um amigo. As velas tremeluziam, os pontos cantados ecoavam em sinergia com cheiro das ervas queimadas. Um homem presente no local, que havia recebido uma entidade, um caboclo, enumerou as dívidas, vergonhas e dores do então evangélico Genilson conta que nunca havia visto o médium antes, que lhe prometeu ajuda. “Três meses depois, fechei a igreja evangélica que fundei. Quatro meses depois, consegui emprego. Um ano mais tarde, comprei meu primeiro carro. De pastor neopentecostal a pai de santo foi uma travessia improvável na minha vida!”, afirma.

Hoje, Genilson mantém uma casa de culto simples que também é seu refúgio. “Minha vida mudou de dentro pra fora. Muito do que eu pregava como pastor não fazia sentido. Só percebi depois.” Do púlpito ao terreiro, das ruas repletas de lixo ao tribunal, Genilson diz que a Justiça devolveu parte da dignidade que lhe foi negada: “estou de alma lavada!”.

Edição:
Paulo Pepe/Agência Pública
Reprodução Laudo Pericial
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Reprodução Laudo Pericial
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Paulo Pepe/Agência Pública
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