Em meio à falta de consenso parlamentar sobre regulações de redes sociais, deputados e senadores de partidos conservadores apresentaram nos últimos anos dezenas de projetos de lei para alterar duas das principais legislações sobre a internet do Brasil, na tentativa de protagonizar os rumos regulatórios das plataformas digitais brasileiras.
Atualmente tramitam na Câmara e no Senado ao menos 73 projetos de lei com propostas de alteração do Marco Civil da Internet (MCI) e da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), segundo análise do Núcleo — a maioria apresentada por parlamentares ligados a partidos alinhados à direita política, que no Brasil passaram a ser denominados como “Centrão”. O levantamento faz parte do projeto A Mão Invisível das Big Techs, uma coalizão de 18 organizações de 13 países liderada pela Agência Pública e o Centro Latinoamericano de Investigación Periodistica (CLIP).
Esses projetos miram dois pilares centrais da regulação digital brasileira: o Marco Civil da Internet, de 2014, e a Lei Geral de Proteção de Dados, de 2018.
O Marco Civil da Internet, ou MCI, estabelece princípios como liberdade de expressão, neutralidade da rede e privacidade, além de definir direitos e deveres de usuários e provedores. Já a LGPD, sancionada em 2018, rege o uso de dados pessoais (inclusive para além da internet), exigindo bases legais claras para sua coleta, garantindo direitos aos titulares e impondo sanções em caso de descumprimento.
Apesar de complementares, as duas leis têm sido alvo de propostas com motivações distintas. Dos 73 projetos em tramitação, a maior parte — 75% deles, ou 55 propostas — visa modificar o MCI.
Para entender melhor o que cada um quer mudar, a reportagem classificou todos os projetos em nove categorias temáticas: 1. comercialização, 2. consentimento, 3. governança, 4. infância, 5. monetização, 6. representatividade, 7.sanção, 8. segurança e 9. transparência.
Essa organização foi feita com base na leitura manual dos resumos das propostas — documentos redigidos pelos próprios parlamentares.
O que significa cada categoria
- Comercialização: trata da regulamentação da oferta e venda de serviços digitais, como planos de internet, incluindo limites de franquia, velocidade de conexão e bloqueios.
- Consentimento: foca na exigência de autorização expressa dos usuários, especialmente crianças e adolescentes, para uso e compartilhamento de seus dados pessoais.
- Governança: envolve propostas que regulam a estrutura e os princípios de funcionamento da internet no Brasil, incluindo regras para identificação de usuários, atuação de provedores, e prestação de contas das plataformas.
- Infância: abrange medidas específicas para proteger crianças e adolescentes de conteúdos nocivos na internet, como pornografia e exploração sexual.
- Monetização: regulamenta a obtenção de receita por meio de redes sociais e plataformas digitais por influenciadores, ou agentes públicos e políticos.
- Sanção: refere-se à punição de condutas abusivas ou ilegais na internet, como a disseminação de fake news, discurso de ódio ou conteúdos ilícitos.
- Segurança: inclui propostas para ampliar a segurança na internet por meio de identificação obrigatória de usuários e autenticação biométrica.
- Transparência: propõe a obrigatoriedade de comunicação clara e em tempo real sobre o uso de serviços digitais, como o consumo de dados em planos de internet.
Entre os projetos que propõem mudanças no Marco Civil, os principais temas são segurança (15 propostas), governança (12) e comercialização (10).
O Partido Liberal, do ex-presidente Jair Bolsonaro, lidera nas propostas sobre segurança, como o PL 3.516/2023, do deputado Domingos Sálvio (PL-MG).
Outros 18 projetos propõem mudanças na Lei Geral de Proteção de Dados. A maioria também parte de partidos do Centrão, com destaque para o MDB, que lidera com cinco propostas. PT, Republicanos, União Brasil e Podemos aparecem em seguida, com duas cada.
A principal categoria é transparência, com quatro propostas, seguida por segurança e governança, com três cada.
Redes sociais
Cerca de 16% dos 73 projetos mencionam “redes sociais” em seus resumos, uma consequência de o Congresso ainda não ter aprovado uma regulação para o setor.
Em paralelo, um novo levantamento da GloboNews mostra que ao menos 6 dos 20 partidos brasileiros consideram urgente regulamentar as redes sociais.
A maioria dos 12 projetos parte de partidos de direita: cinco do PL, dois do MDB, e os demais de União Brasil, Republicanos, PT, PSDB e Avante. Onze propõem mudanças no MCI e um na LGPD.
Entre as propostas mais polêmicas está o PL 295/2025, do senador Carlos Viana (Podemos-MG), que proíbe a monetização de conteúdos digitais produzidos por agentes políticos em função de seus mandatos.
Outro exemplo é o PL 1.329/2024, do deputado Alberto Fraga (PL-DF), que veta decisões judiciais que suspendam perfis em redes sociais sob alegações ligadas à liberdade de expressão. O texto, que aguarda parecer na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), é semelhante à MP 1.068/2021, assinada por Jair Bolsonaro.
A medida provisória, depois considerada inconstitucional pelo STF, proibia a remoção ou suspensão de conteúdos e perfis “exceto por justa causa” e impedia que plataformas adotassem critérios de moderação que configurassem censura política, ideológica, científica, artística ou religiosa.
Regulando tecnologia no Brasil
Apesar dos 73 projetos em tramitação — e de muitos outros já rejeitados ou arquivados — o Congresso Nacional não dá sinais de avançar em uma atualização consistente do marco regulatório sobre internet e plataformas digitais.
A última grande lei aprovada nesse campo foi a própria LGPD, em 2018.
O avanço mais recente é o PL 2.338/2023, que cria um marco regulatório para a inteligência artificial. O texto já passou no Senado e agora tramita na Câmara.
Entre os projetos que pretendem alterar o Marco Civil da Internet ou a LGPD, somente dois mencionam diretamente a IA, segundo a análise do Núcleo. Ambos os textos ainda estão em fases iniciais de tramitação. São eles:
- O PL 3.488/2024, que criminaliza a criação de deepfakes de teor sexual, inclusive com uso de IA generativa;
- O PL 2.775/2024, que trata do uso de dados pessoais no treinamento de sistemas de IA, propondo regras mais rígidas de consentimento e transparência.
A Mão Invisível das Big Techs é uma investigação transnacional e colaborativa liderada pela Agência Pública e o Centro Latinoamericano de Investigación Periodística (CLIP), em conjunto com Crikey (Austrália), Cuestión Pública (Colômbia), Daily Maverick (África do Sul), El Diario AR (Argentina), El Surti (Paraguai), Factum (El Salvador), ICL (Brasil), Investigative Journalism Foundation – IJF (Canadá), LaBot (Chile), LightHouse Reports (Internacional), N+Focus (México), Núcleo (Brasil), Primicias (Equador), Tech Policy Press (EUA) e Tempo (Indonésia). O projeto tem o apoio da Repórteres Sem Fronteiras e da equipe jurídica El Veinte, e identidade visual da La Fábrica Memética.