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Projeto de lei pró-Trump sobre terrorismo usa PCC e CV para facilitar intervenção dos EUA

PL 1283/2025, relatado por Nikolas Ferreira, importa classificação de crime organizado e abre brecha a ataque americano

Reportagem
30 de setembro de 2025
17:00
Presidente Donald Trump segura camisa do Brasil
Alan Santos/PR

Líderes do Centrão e do bolsonarismo no Congresso têm articulado uma ‘pauta-bomba’ que facilitaria “intervenções estrangeiras” no campo da segurança no Brasil, nas palavras de especialistas ouvidos pela Agência Pública. A articulação já conseguiu aprovar a urgência do projeto de lei (PL), permitindo a votação do PL 1283/2025 a qualquer momento.

Desde o último dia 10 de setembro, a proposta, que cita nomeadamente o “governo Trump” como modelo a ser seguido, é relatada pelo deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) – dos principais líderes bolsonaristas e entusiasta do governo Trump

Por que isso importa?

  • Classificação de organizações criminosas como terroristas vem sendo utilizada pelo governo Trump para justificar intervenções militares na América do Sul, como Colômbia e Venezuela.
  • Especialistas apontam que não faltam leis para enfrentar o narcotráfico, mas recursos humanos e de inteligência.

De autoria de um dos líderes do União Brasil no Congresso, o deputado Danilo Forte (União-CE), a proposta é que “milícias, facções, organizações paramilitares, grupos criminosos ou esquadrões”, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), sejam enquadrados no crime de “terrorismo”. A iniciativa também diminui o papel da Polícia e da Justiça federais na investigação e julgamento deste tipo de crime, empoderando polícias civis e tribunais estaduais.

A articulação do projeto de lei antiterrorismo está em andamento desde maio, quando o presidente dos Estados Unidos enviou representantes para discutir o “combate ao terrorismo e ao tráfico de drogas” com o governo Lula na mesma época em que a urgência da proposta foi aprovada na Câmara dos Deputados, com apoio do Centrão. 

O requerimento que deu origem à urgência contou com assinaturas dos líderes de PP, União Brasil, PL, Republicanos, MDB e PSD na Casa à época – os deputados Doutor Luizinho (PP-RJ), Pedro Lucas (União-MA), Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), Gilberto Abramo (Republicanos-MG), Isnaldo Bulhões Jr. (MDB-AL) e Antônio Brito (PSD-BA), respectivamente.

Dias após a aprovação da urgência, Danilo Forte, autor da proposta, rejeitou qualquer vínculo com interesses dos Estados Unidos ou risco à soberania nacional. À Pública, o deputado Danilo Forte disse: “não estou preocupado com o que vão dizer, não me importo com Trump e nem sei onde ele mora. A proposta é para responder à sociedade do meu estado”. Procurado para rebater as críticas de especialistas sobre a facilitação de uma intervenção norte-americana, o deputado não respondeu até o momento.

A proposta avançou na Câmara enquanto o governo norte-americano enviava caças e navios de guerra para a América do Sul e o Caribe, sob o pretexto de “combater o terrorismo” do narcotráfico. Até o dia 17 de setembro, o governo Trump afirmou ter abatido ao menos três embarcações e matado “onze narcoterroristas”.

Riscos são reais e EUA já podem ter começado “intimidação”

À Pública, especialistas apontaram uma série de riscos ligados ao projeto. Para o ex-ministro da Justiça no governo Dilma Rousseff (PT) Eugênio Aragão, a proposta sugere uma “falsa compreensão do que seja terrorismo, permitindo intervenções estrangeiras” na segurança interna do país.

“Por hora, não vejo o projeto como uma ameaça à soberania nacional porque ainda não houve qualquer ameaça direta contra nosso território, mas é algo para nos deixar ‘de orelhas em pé’ e atentos”, afirmou o ex-ministro da Justiça. “Vejo isso como um movimento de fora para dentro do Brasil, estimulado por atores internos e externos”, destacou.

Já para o ex-presidente da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia e juiz do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) Marcelo Semer, o projeto “não ajuda no combate às organizações”. “O que está nos faltando não são leis, mas investigação, inteligência policial”, disse, destacando ainda a sintonia da proposta com a ofensiva do governo Trump, que classifica “mais [como] intimidação política do que propriamente combate criminoso”.

“Não sejamos ingênuos: tratar todos como terroristas vai facilitar, e muito, a posição dos Estados Unidos, que se arroga como a polícia universal para fazer atos como esses espetáculos de intimidação que ocorrem hoje, na proximidade da Venezuela”, completou Semer.

De Nikolas para Flávio Bolsonaro, proposta já é aguardada no Senado

A Pública apurou que a oposição ao governo Lula no Senado já se prepara para analisar a proposta rapidamente após sua aprovação na Câmara. Além disso, não há uma articulação coordenada do governo para barrar a votação na Câmara.

O líder da oposição no Senado, senador Rogério Marinho (PL-RN), disse à Pública que a articulação do projeto ficará com o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), na condição de presidente da comissão de Segurança Pública. “Quem toca essa pauta é o senador Flávio, pela comissão, mas nós somos favoráveis à proposta, sim”, disse.

Por outro lado, perguntados sobre estratégias do governo Lula para barrar o projeto ainda na Câmara, deputados da base do governo disseram, na condição de anonimato, que “não há orientação alguma, por enquanto”. “Considerando os acontecimentos recentes, como na ‘PEC da Blindagem’, é possível, sim, que a oposição aprove, até para passar um recado, uma demonstração de força”, disse um dos parlamentares governistas.

Em agosto, durante o motim bolsonarista que invadiu e ocupou a Mesa Diretora da Câmara, a oposição tentou, inclusive, votar o projeto no Plenário da Casa. Na ocasião, coube a dois deputados da base do governo Lula, Alencar Santana (PT-SP) e Pastor Henrique Vieira (Psol-RJ), liderarem os esforços para barrar a votação no dia 12 de agosto, como mostra o portal da Câmara.

PCC está na mira dos EUA ao menos desde 2021

Representantes de ministérios da Defesa de todos os países ao sul do Panamá, com exceção da Venezuela, se reuniram em Buenos Aires, na Argentina, para a Conferência de Defesa Sul-Americana entre 20 e 21 de agosto. Na prática, o evento organizado pelo Comando Militar Sul dos Estados Unidos (SouthCom) serve para o governo norte-americano alinhar doutrinas militares unificadas para o continente. 

Coube ao comandante do SouthCom, almirante Alvin Halsey, passar o recado sobre o objetivo dos Estados Unidos em relação ao “terrorismo” no continente. “O crescente escopo, escala e força do crime organizado transnacional em toda a região é uma das nossas principais preocupações”, disse o almirante Alvin Holsey.

Dois dias antes, o PL 1283/2025 tinha sido aprovado na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara, sob relatoria do deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), condenado a 16 anos de prisão por envolvimento na trama golpista do 8 de janeiro. 

Ramagem foi um dos articuladores do PL 1283/2025, como mostrou a Pública, usando os termos “Estados Unidos” e “cooperação internacional” com frequência em seus pareceres e substitutivos. À certa altura, o parlamentar diz que a lei norte-americana “traz uma definição mais ampla” que “permite classificar como terroristas grupos ligados ao tráfico internacional”.

O presidente Donald Trump aumentou críticas e represálias contra Venezuela e Colômbia após o evento do SouthCom, acusando os dois países de “falhar no combate às drogas”. A partir dali, enviou caças e navios de guerra para a costa dos dois países, atacando embarcações venezuelanas e matando supostos “narcoterroristas”.

Com a classificação de grupos como PCC e CV como “terroristas”, especialistas temem novos movimentos do governo Trump, mas direcionados ao Brasil, uma vez que as organizações estão na mira das autoridades norte-americanas há anos. 

Em sua mais recente edição, o relatório anual do Escritório de Assuntos Internacionais de Narcóticos e Aplicação da Lei dos Estados Unidos ressalta que o PCC é considerado uma “organização criminosa transnacional” pelo governo norte-americano desde 2021. O material aponta que o grupo está “presente em países de todo o Hemisfério Ocidental”, com “controle sobre algumas das rotas de tráfico mais lucrativas do mundo”.

Ainda sem estratégia no Congresso, governo Lula se opõe a projeto

Já em meio à atual ofensiva militar dos Estados Unidos nas imediações do Brasil, o presidente Lula afirmou que terrorismo e crime organizado são problemas distintos e “não devem servir de desculpa para intervenções à margem do direito internacional”. O governo brasileiro teria repassado este mesmo recado a emissários dos Estados Unidos ainda em maio, de acordo com a agência internacional Reuters.

O presidente brasileiro reforçou sua mensagem durante seu discurso na abertura da 80ª Assembleia Geral das Nações Unidas em Nova York (EUA), na última terça (23). “É preocupante a equiparação entre a criminalidade e o terrorismo”, afirmou Lula, que também declarou: “usar força letal em situações que não constituem conflitos armados equivale a executar pessoas sem julgamento”.

A rejeição à ideia de enquadrar CV, PCC e outros grupos no crime de terrorismo fica ainda mais evidente a partir de documentos oficiais consultados pela Pública. Respostas a Requerimentos de Informação Parlamentar mostram que os ministérios da Justiça e Segurança Pública e das Relações Exteriores têm argumentado contra o uso do conceito sobre estas organizações criminosas ao longo dos últimos meses.

Edição:
Marina Ramos/Agência Câmara
Ricardo Stuckert / PR

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