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Reportagem

Remoção de conteúdo de plataformas está em 40% dos processos contra techs

Falta de regras claras de responsabilidade das plataformas cria combinação que viabiliza ataques à honra e estelionatos

Reportagem
9 de setembro de 2025
06:00
Paula Villar

O menino E, 13 anos à época, caminhava para encontrar a mãe no centro de Rio Verde, cidade de 225 mil habitantes no estado de Goiás, quando dois homens passaram a correr atrás dele. Tudo se deu no dia 16 de março de 2020. Assustado, ele correu por aproximadamente cinco quadras, até que conseguiu despistar os dois homens e ligou para a mãe após se esconder em uma loja. O caso seria apenas mais um triste episódio de discriminação no Brasil se não fosse o impacto das redes sociais.

O vídeo da perseguição, gravado pelas câmeras de segurança de um estabelecimento comercial, foi vazado por uma página no Facebook com a falsa acusação de que o adolescente estaria praticando roubos na região. “Eu tive que fazer um boletim de ocorrência para suspender o vídeo porque meu filho começou a ser ameaçado pelas redes. Ele ficou desorientado. Muito comentário maldoso. Ele era adolescente”, conta Shirlei Severino de Jesus, mãe do adolescente, em entrevista à coalizão do projeto “A Mão Invisível das Big Techs”, investigação liderada pela Agência Pública e pelo Centro Latino-Americano de Investigação Jornalística (CLIP).

O caso do menino E é uma das 289 ações judiciais analisadas durante o projeto e que envolvem big techs que tramitam no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF). “Todo mundo se sentia no direito de falar coisas agressivas. Eu nem dormia”, desabafa Shirlei, ao mencionar que mandou o filho passar quase um ano com parentes em outro estado devido à repercussão do vídeo na cidade onde viviam.

A exposição fez com que Shirlei Severino de Jesus entrasse na Justiça de Goiás não só contra os responsáveis pela divulgação do vídeo, mas também contra o Facebook – plataforma usada para difundir a falsa acusação. O pedido era que as publicações fossem excluídas e os responsáveis, entre eles a megacorporação americana, fossem condenados a pagar uma indenização de R$ 41,8 mil, a título de danos morais.

Sem regulamentação efetiva das responsabilidades das big techs, o juiz responsável pelo caso entendeu que a empresa do bilionário Mark Zuckerberg não tinha qualquer responsabilidade sobre o caso – que afronta princípios de proteção da infância previstos na legislação brasileira. De quebra, ainda puniu a mãe da criança – considerada pobre pelo próprio magistrado que aceitou sua declaração de falta de recursos para custear o processo – a uma multa equivalente a 10% do valor da causa, ou seja, de R$ 4,1 mil. 

O processo é apenas um das centenas de ações relacionadas às big techs que chegaram às cortes superiores brasileiras nos últimos anos. A falta de regras claras de responsabilidade das plataformas e a onipresença delas no cotidiano dos 212 milhões de brasileiros criaram uma combinação que viabiliza uma miríade de crimes – de ataques à honra a estelionatos. Dificulta investigações criminais e até mesmo respalda casos de concorrência comercial desleal.

O STF é alvo de uma campanha internacional movida pelas redes sociais após tomar decisões que desagradam os interesses bilionários dessas corporações. Os processos foram compilados pela plataforma jurídica Jusbrasil, a pedido da reportagem para que se fizesse um levantamento de todos os processos que envolviam empresas de tecnologia em Cortes Superiores no Brasil, a maneira mais próxima de ter um mapa dos casos mais relevantes nos 27 estados brasileiros. Eles revelam o enorme impacto que as redes sociais ganharam no cotidiano da população brasileira.

O estudo nos processos feito pela reportagem revela que as principais causas de processos envolvendo das big techs são a remoção de conteúdos considerados abusivos e a responsabilização em casos de golpes virtuais. Há ainda casos de concorrência desleal entre concorrentes comerciais que se utilizam dos serviços oferecidos pelas empresas – neste caso, sobretudo do Google Ads, ferramenta de publicidade direcionada atrelada ao buscador Google.

Ao todo, cerca de 40% dos processos envolvem remoção de conteúdo – sejam publicações em redes sociais, em plataformas como o YouTube ou mesmo de anúncio no Google Ads. Os golpes virtuais representam 15,5% do total de causas. Há ainda um fato curioso: uma em cada dez ações dizem respeito a usuários excluídos do jogo virtual FreeFire – nas ações, além da produtora do game, os jogadores também processaram o Google, que disponibiliza o download do aplicativo por meio da Google Play Store.

Fraudes virtuais

Empresas como Google e Meta figuram em dezenas de ações relacionadas a golpes virtuais, modalidade criminosa em franca expansão no Brasil. O Google tem o monopólio nos serviços e busca online no Brasil, enquanto a Meta controla as redes sociais Facebook e Instagram e, além disso, o aplicativo de mensagens WhatsApp – presente em ao menos 98% dos celulares no país, segundo estimativas de consultorias especializadas.

As plataformas têm sido usadas para uma ampla gama de golpes virtuais. Desde a venda de falsos produtos ou investimentos financeiros com base em perfis hackeados nas redes sociais até o anúncio de falsas oportunidades de negócios nas buscas do Google.

É o caso de Silvano dos Santos Fonseca, um processo público, que perdeu aproximadamente R$ 74 mil após ser enganado por um site fraudulento de leilões de automóveis que aparecia com destaque em buscas relacionadas no Google, graças ao pagamento de anúncios no Google Ads.

A juíza da 1ª Vara Cível de Sertãozinho, cidade no interior do estado de São Paulo, escreveu que “é incontroverso que o autor foi vítima de golpe, cada vez mais difundido no país, onde é simulado um leilão, visando atrair consumidores com anúncios de automóveis com preços abaixo do mercado, com o objetivo de convencê-los a fazer depósito de valores. O veículo, porém, nunca é entregue”.

Apesar disso, a magistrada entendeu que o Google, que lucrou com o anúncio que viabilizou o golpe, não tinha nenhuma responsabilidade no caso. Fonseca recorreu, mas a interpretação foi mantida tanto pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, quanto pelo STJ.

Disputa de gigantes

Mas não são só casos de pessoas comuns que envolvem diretamente as big techs. Disputas comerciais, protagonizadas até mesmo por empresas bilionárias, também resvalam nas plataformas.

A PagSeguro – gigante do setor de pagamentos digitais de propriedade da família Frias, que também controla o jornal Folha de S. Paulo e o portal Uol – processou o Google e as concorrentes e GetNet e Mercado Pago, da varejista Mercado Livre, por violação de sua marca.

Segundo a ação, a GetNet e o Mercado Pago patrocinaram anúncios no Google Adds em buscas sobre a PagSeguro -aparecendo à frente da própria marca nas buscas sobre ela.

Na ação, a PagSeguro destacou a responsabilidade do Google no caso: afirmou que a big tech “corrobora e estimula a prática do ato ilícito das correqueridas, pois permite e/ou disponibiliza a terceiros a aquisição da palavra-chave ‘PagSeguro’ na plataforma de AdWords, lucrando desarrazoadamente” e afirma ainda que a plataforma acaba “ensejando uma certa autofagia empresarial e criando quase que uma obrigatoriedade de contratação do anúncio, inclusive para veiculação da própria marca, sob pena de, se não o fizer, o concorrente o fará”.

O juiz titular da 2ª Vara Empresarial de São Paulo acatou as alegações da PagSeguro e proibiu o Google e as empresas concorrentes de fazerem novos anúncios relacionados às marcas da PagSeguro. Em longa decisão, o magistrado desconstruiu a tese sustentada pelo buscador de que não tem responsabilidade sobre o conteúdo dos anúncios que veicula.

“Evidentemente, por se tratar de atividade empresarial lucrativa, não parece haver incentivos, ao menos até o momento e no plano regulatório, para que a Google apresente layout mais destacado, a ponto de alertar, até mesmo o consumidor mais distraído, de que se trata de resultado de busca direcionado, voltado à estratégia de marketing de concorrente do produto que imaginava estar buscando na Internet de forma orgânica e livre”, escreve ele em um trecho da sentença.


Big Tech

A Mão Invisível das Big Techs é uma investigação transnacional e colaborativa liderada pela Agência Pública e o Centro Latinoamericano de Investigación Periodística (CLIP), em conjunto com Crikey (Austrália), Cuestión Pública (Colômbia), Daily Maverick (África do Sul), El Diario AR (Argentina), El Surti (Paraguai), Factum (El Salvador), ICL (Brasil), Investigative Journalism Foundation – IJF (Canadá), LaBot (Chile), LightHouse Reports (Internacional), N+Focus (México), Núcleo (Brasil), Primicias (Equador), Tech Policy Press (EUA) e Tempo (Indonésia). O projeto tem o apoio da Repórteres Sem Fronteiras e da equipe jurídica El Veinte, e identidade visual da La Fábrica Memética.

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