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Crônica

Lô e a cidade

Um passeio pelas composições de Lô Borges desde sua estreia em grande estilo com “Clube da Esquina”

Crônica
8 de novembro de 2025
04:00

A valorização do que é público e a aversão à modernidade desenfreada foram temas recorrentes nas composições de Lô Borges desde sua estreia em grande estilo com “Clube da Esquina”, lançado em 1972. A cidade e os afetos que por ela circulam foram o tema de duas das canções compostas pelo músico nesse disco: a primeira é a balada pop “Paisagem da Janela”, e a outra, a psicodélica “Trem de Doido”, antepenúltima faixa do disco.

Em “Trem de Doido”, nos encontramos no centro sujo de Belo Horizonte em plena ditadura militar. A influência dos Beatles é evidente: a guitarra de Beto Guedes e o baixo, tocado por Toninho Horta, ao percorrer diversas regiões melódicas dá mesmo a sensação de movimento (Lô estaria a caminhar pelo centro na madrugada?). Junto da bateria carregada, cria-se um ambiente musical intenso que, no entanto, contrasta com a suavidade ingênua do canto de Lô.

A letra labiríntica trata dos ratos que povoam a cidade e que não param de perseguir o eu lírico – do mesmo modo que a palavra “trem” assume os mais variados sentidos em Minas Gerais, os “ratos” de “Trem de Doido” são vários, reais e metafóricos. E estão por toda parte, na praça, no mercado e até mesmo dentro das casas, mas a postura que o canto e a letra evocam é sempre a de uma indiferença tranquila, a ausência de medo.

(Medo, no entanto, que os músicos de Clube da Esquina sentiam na pele: acossado pelos censores da ditadura militar, Lô empreendeu longas viagens após a sua estreia musical, só voltando a gravar um disco, “A Via Láctea”, em 1979.)

Já “Paisagem da Janela”, como Lô Borges já disse em entrevistas, possui uma atmosfera da “maior juvenilidade”. Ao contrário de “Trem de Doido”, a cidade que se apresenta tem agora um ar interiorano, consequência da letra e do arranjo: a igreja vista da janela, guitarra e piano marcando alegremente o tempo, e a voz de Lô, sempre cândida, embora trate de cores mórbidas, homens sórdidos e velórios… A cena poderia se passar numa cidadezinha qualquer, mas pode, também, tomar lugar em Belo Horizonte, onde a canção foi composta. O bairro de Santa Tereza, onde residiam os Borges, guarda, apesar de sua proximidade com o centro de BH, muitas características do interior do Estado: como não é cortado por nenhuma grande avenida, o bairro conformou-se não como lugar de passagem, como outros recantos da cidade, mas como local de chegada – constituiu-se, ali, uma vida social diferente, com aposentados tomando café à porta de casa, vizinhos que se chamam pelo nome e violões e pandeiros nas esquinas, características que, em certa medida, se observam ali ainda hoje.

Em BH, residem cerca de dois milhões e quinhentas mil pessoas. Apesar das proporções de cidade grande, a capital mineira é costumeiramente descrita como uma cidade hospitaleira e tranquila, lugar ideal, como já disse Fernando Brant, para “beber cachaça, tomar cerveja, conversar fiado e, conforme manda a secular tradição mineira, conspirar”. Embora essa visão, se levada ao extremo do romântico, possa ser um instrumento a mais para silenciar as disputas em torno dos sentidos da vida urbana (e elas são numerosas, como o movimento a favor da tarifa zero no transporte público e a pressão do capital privado para inviabilizá-lo demonstrou), “Paisagem da Janela” não incorre neste engano. A cadência cordial dos acordes do piano estão lá, a voz de Lô Borges é suave e Nelson Ângelo, o guitarrista, desenha riffs que remetem a algo de juvenil, mas a letra possui um tom de aviso, de repreensão que, de novo, contrasta com a sonoridade. Fala-se da cidade, o sujeito está dentro dela, mas também está sem lugar. O vivido e o imaginado se cruzam novamente:

“Quando eu falava dessas cores mórbidas

Quando eu falava desses homens sórdidos

Quando eu falava desse temporal

você não escutou…”
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