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Área do tamanho de Pernambuco correria risco com fim da moratória da soja na Amazônia

Estudo estima que 10 milhões de hectares desmatados serviriam para avanço da soja se STF decidir pelo fim da moratória

Reportagem
7 de novembro de 2025
11:00
Avião lança agrotóxicos sobre plantação de soja no Cerrado
Marizilda Cruppe/Greenpeace

O Supremo Tribunal Federal (STF) dará a palavra final sobre a manutenção de um acordo comercial criado há quase 20 anos para evitar o desmatamento ligado ao agronegócio na maior floresta tropical do mundo, a chamada moratória da soja. A decisão poderá resguardar – ou colocar em risco – uma área do tamanho do estado de Pernambuco, que pode ser liberada para o avanço da soja na Amazônia, segundo estudo consultado pela Agência Pública.

Até 5 de novembro, a moratória da soja estava com os dias contados, pois teve seu fim decretado por um órgão do governo a partir de janeiro de 2026. Porém, o STF definiu que decidirá sobre a manutenção do acordo, entre os dias 14 e 25 de novembro. A determinação da Corte veio pouco depois de uma decisão do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), em 30 de setembro. O Cade havia julgado um caso proposto pela bancada ruralista no Congresso e concluiu que a moratória da soja seria “um acordo anticompetitivo” no setor, por isso, o Cade decretou o término da moratória.

Por que isso importa?

  • Ainda que exista preocupação com uma possível formação de cartel no setor agrícola, tornar legal o cultivo de soja em mais áreas da Amazônia pode estimular o desmatamento no bioma, revertendo o histórico recente de queda.

Segundo relatório da ONG Mighty Earth, que monitora as cadeias produtivas de commodities em âmbito global com dados oficiais e imagens de satélite, “todas as áreas desmatadas na Amazônia após julho de 2008, aproximadamente 10 milhões de hectares, seriam liberadas para a expansão da soja”. Ou seja, uma área equivalente a uma Coreia do Sul inteira poderia ser liberada para o avanço do grão. Além disso, haveria um ‘efeito dominó’, com risco de aumento dos conflitos por terras e do desmatamento na Amazônia.

O material também prevê impactos diretos e indiretos sobre as indústrias da agropecuária, do cacau, do café, da extração legal de madeira, projetos agroflorestais e de créditos de carbono. “Consequentemente, estas atividades seriam forçadas a avançar para áreas de floresta, indiretamente contribuindo com o desmatamento, largamente imprevisto até o momento”, aponta o relatório.

O STF avalia a constitucionalidade da Lei estadual Nº 12.709/2024, sancionada pelo governo Mauro Mendes (União-MT) em outubro de 2024, que altera o entendimento da moratória da soja e corta benefícios fiscais a quem adere ao acordo. A ação foi movida pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), do Partido Socialismo e Liberdade (Psol), do Partido Verde (PV) e da Rede Sustentabilidade, questionando a legalidade da norma do governo Mauro Mendes.

O relator do caso no STF, ministro Flávio Dino, decidiu “suspender as ações em curso nas instâncias ordinárias jurisdicionais e administrativas (incluso o Cade)” que tratem do tema e disse que a moratória “fortaleceu a credibilidade do Brasil no cumprimento de compromissos internacionais de proteção ambiental, reforçando o papel do país como fornecedor de produtos agropecuários sustentáveis no mercado global”.

O Cade entende que a moratória serviria como “um acordo anticompetitivo entre concorrentes”, algo “que prejudica a exportação de soja”. Perguntado se a decisão de encerrar o acordo considerou impactos negativos quanto à conservação do meio ambiente e dos povos da floresta, o órgão respondeu que “não comenta casos em andamento” e que o processo que originou sua decisão está liberado para consulta.

Vale lembrar que o fim da moratória da soja deriva da bancada ruralista do Congresso. A investigação do Cade teve início após o recebimento de uma representação da Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados, numa manobra envolvendo o deputado bolsonarista Evair de Melo (PP-BA), coordenador da Frente Parlamentar Invasão Zero no Espírito Santo, como já mostrado pela Pública.

Megaprojetos, avanço da soja e interesses comuns de traders e da bancada do agro

Imagens de satélite mostram que uma área preservada de mais de 3 mil hectares, equivalente ao município de Diadema (SP), foi incendiada desde setembro de 2024 dentro da fazenda Massapé, um latifúndio voltado para atividades agrícolas e de mineração na zona rural de Altamira (PA). Alvo de embargos do governo federal por crimes ambientais, a fazenda destina ao menos 440 hectares para o cultivo de soja, escoando a produção pela BR-163 – uma das principais vias de transporte do agronegócio no Centro-Oeste e Norte do país.

Com a moratória da soja, podia-se dizer que qualquer grão de soja produzido ali teria dificuldades para chegar a mercados estrangeiros como a União Europeia. O acordo comercial firmado em 2008 proíbe as maiores revendedoras de soja do mundo de comprarem e venderem grãos produzidos em áreas desmatadas, legal ou ilegalmente, na Amazônia. É essa a realidade que pode mudar a depender da decisão do STF.

O relatório da Mighty Earth aponta que a ascensão do bolsonarismo e a “crescente influência da bancada ruralista” já geravam iniciativas contrárias à moratória dentro dos estados da Amazônia Legal antes da decisão do Cade. O material destaca a aprovação de leis estaduais em Mato Grosso e Rondônia contra incentivos fiscais a quem adere à moratória da soja, e projetos semelhantes no Maranhão e em Tocantins. “Tais medidas legislativas foram celebradas por parte do agronegócio como vitórias da ‘soberania’, mas ameaçam quase duas décadas de esforços contra o desmatamento ligado à indústria da soja na Amazônia”, avaliou a ONG Mighty Earth.

Com base em dados da Universidade de Maryland (EUA) e da plataforma brasileira MapBiomas, a ONG Mighty Earth aponta que a média anual do avanço da soja na região foi de 42 mil hectares entre 2021 e 2023, quase o dobro da média dos doze anos anteriores, de 24 mil hectares.

Pesquisadores destacam o papel das empresas que se comprometeram com a moratória da soja, mas para torná-la mais frágil. “As principais traders [revendedoras] de soja – Cargill, Bunge, ADM, Louis-Dreyfus e Amaggi – apoiam e investem diretamente em infraestrutura e logística, por meio de portos, rodovias, ferrovias, silos, seja por meio de operações pontuais, joint ventures ou interesses em concessões públicas”, diz o relatório, que destaca ainda que os interesses das grandes traders “regularmente se alinham com interesses da bancada ruralista, pela ‘integração econômica’ da Amazônia e a ‘soberania brasileira’ na legislação – especialmente o Código Florestal, em detrimento de acordos privados supranacionais”.

Atualmente, há uma série de projetos de infraestrutura e logísticos anunciados ou em diferentes fases de desenvolvimento na Amazônia Legal, como a Ferrogrão e a Ferrovia de Integração Centro-Oeste (Fico), ampliação da rodovia BR-163 entre Mato Grosso e Pará, além da criação da hidrovia Araguaia-Tocantins. Para os pesquisadores, porém, aportes do tipo resultam em “aumento no desmatamento, ameaça à biodiversidade e enfraquecimento de comunidades tradicionais, povos e territórios indígenas”.

O ‘fogo amigo’ dentro do governo

O fim da moratória da soja serviu de ‘fogo amigo’ dentro do governo, considerando-se o fato do Cade ser ligado ao MJSP. Pastas direta e indiretamente impactadas têm demonstrado insatisfação com a medida há meses. O Ministério do Meio Ambiente (MMA) já se posicionou abertamente contra a interrupção do acordo, uma decisão que, como reportou a Pública, pegou o Ministério dos Povos Indígenas desprevenido.

Para o MMA, a moratória da soja “possui quase 20 anos de vigência com resultados inegáveis para a proteção ambiental”. Segundo nota da pasta divulgada em agosto, entre 2006 e 2023, a área voltada para a soja na Amazônia “cresceu 427%, sem provocar novos desmatamentos”. “A experiência da moratória da soja demonstrou que é possível expandir a produção agrícola de forma competitiva, com ganhos de produtividade, respeito à legislação e proteção dos direitos humanos”, concluiu.

Edição:
Mighty Earth/reprodução

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