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Dados obtidos via LAI mostram avanço da pecuária na Resex Jaci-Paraná mesmo com acordo entre governo de RO e MP

Reportagem
18 de janeiro de 2023
06:00
Este artigo tem mais de 1 ano

Há anos a Reserva Extrativista (Resex) Jaci-Paraná, em Rondônia, sofre com invasões, grilagem de terras e expulsão de moradores tradicionais. A área, que deveria ajudar a manter a floresta em pé, é hoje a unidade de conservação mais desmatada da Amazônia, abrigando atualmente mais de 185 mil cabeças de gado.

A fiscalização quase inexistente e o avanço da pecuária – tanto em número de cabeças de gado como de fazendas registradas – ocorrem apesar da existência de um acordo firmado entre o governo de Rondônia e o Ministério Público do estado (MPRO) para combater a pecuária ilegal através do compartilhamento de dados relativos à presença de gado na Resex, como mostram informações obtidos pela Agência Pública através da Lei de Acesso à Informação (LAI). A criação de gado é proibida por lei nesse tipo de unidade de conservação.

Desde a homologação do acordo em março de 2021, apenas dois autos de infração foram lavrados na Resex pela Secretaria de Desenvolvimento Ambiental (Sedam), ambos em setembro de 2022 por desmatamento. 

O baixo número de autos de infração lavrados na Resex Jaci-Paraná, localizada nos municípios de Porto Velho, Buritis e Nova Mamoré, contrasta com o alto desmatamento registrado no local. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o desmatamento da Jaci-Paraná entre agosto de 2021 e julho de 2022 foi de 75 quilômetros quadrados, colocando a área na sexta posição entre as unidades de conservação mais desmatadas da Amazônia nesse período. 

A maioria dos extrativistas abandonou suas moradias por causa das invasões. Atualmente apenas dois moradores tradicionais permanecem morando na área protegida.

Diante da omissão estatal, a pecuária avança na Resex Jaci-Paraná. Em abril e maio de 2021, havia 159.749 cabeças de gado na reserva, de acordo com dados oficiais da Agência de Defesa Sanitária Agrosilvopastoril de Rondônia (Idaron). Dados mais recentes, de setembro de 2022, mostram a presença de 188.707 cabeças de gado, um aumento de quase 30 mil (ou 18%) no rebanho em cerca de 18 meses. 

Ainda de acordo com dados obtidos da Idaron, 203 novos estabelecimentos agropecuários foram registrados na Jaci-Paraná desde 2021, sendo 96 destes entre janeiro e setembro de 2022. Ao todo, existem 1.171 desses estabelecimentos na Resex com registro na Idaron. A autarquia é responsável pela vigilância e defesa sanitária animal em Rondônia e possui dados sobre todos os produtores e propriedades rurais, inclusive os que criam gado em fazendas localizadas em áreas protegidas, como a Resex Jaci-Paraná.

Bois em fazenda ilegal na Resex Jacy-Paraná, à beira do rio de mesmo nome
Bois em fazenda ilegal na Resex Jaci-Paraná, à beira do rio de mesmo nome

A origem do acordo e seus termos

O acordo surgiu de uma ação civil pública ajuizada pelo MPRO contra a Idaron em julho de 2019. Na ação, o MP requereu que a agência suspendesse a prestação de serviços públicos a pecuaristas estabelecidos ilegalmente na Resex Jaci-Paraná. O MP afirma que a Idaron está ciente da situação ilegal desses pecuaristas e que a prestação de serviços, como a emissão de Guias de Trânsito Animal (GTAs) para a entrada de gado na Resex, fomenta a continuidade da pecuária em uma unidade de conservação onde a atividade é proibida.

GTAs são documentos sanitários obrigatórios emitidos pela Idaron para a movimentação de rebanhos. Eles contêm diversos dados sobre a movimentação do gado, como origem, destino, quantidade, idade, sexo e finalidade da movimentação.

Em sua defesa, a Idaron afirma que o objetivo de sua atuação é a defesa sanitária agropecuária e que a suspensão desse serviço colocaria em risco o controle sanitário do rebanho bovino e a saúde da população em Rondônia. 

No âmbito desse processo, o MPRO, a Idaron e a Sedam firmaram um acordo, homologado pelo Tribunal de Justiça de Rondônia em março de 2021. Pelos termos do acordo, a agência reconhece “que é seu dever colaborar com a Sedam na proteção das unidades de conservação estaduais, mediante o compartilhamento de informações relativas à ocupação indevida desses espaços territoriais especialmente protegidos”. Para tal, a Idaron se comprometeu a compartilhar com a secretaria “dados alusivos ao seu cadastro de produtores e propriedades rurais, bem como todas as informações disponíveis em relação ao transporte e localização de semoventes no interior de unidades de conservação estaduais”. 

Os dados compartilhados pela agência incluem, portanto, nomes dos produtores, endereço e localização das fazendas, bem como destino e origem do gado que entra e sai de fazendas localizadas na Resex. 

O acordo homologado não proíbe a Idaron de prestar serviços a pecuaristas estabelecidos ilegalmente na reserva, como o cadastro de novos estabelecimentos agropecuários. 

Pelos termos do acordo, cabe à Sedam a gestão e fiscalização da Resex Jaci-Paraná, “sendo responsável pela adoção das medidas administrativas cabíveis visando à preservação dos recursos naturais nela existentes”. 

Os dados obtidos pela reportagem relativos aos autos de infração foram fornecidos por duas coordenações da Sedam: a Coordenação de Proteção Ambiental (Copam) e a Coordenação de Unidades de Conservação (CUC). 

Os dois autos de infração lavrados na Resex Jaci-Paraná constam no banco de dados de autos de infração da Copam. Em sua resposta ao pedido de informação feito pela reportagem, a Copam explicou que apenas em 2022 o banco de dados passou a incluir informações sobre a unidade de conservação onde ocorreu a infração. Dessa forma, é possível que a Copam tenha lavrado outros autos de infração na Resex desde a homologação do acordo.

Por sua vez, a CUC, responsável pela gestão das unidades de conservação estaduais, informou que não foram realizados autos de infração na Resex entre 2020 e 2022. 

Paulo Bonavigo, presidente da Ecoporé, organização não governamental que há 34 anos trabalha com preservação ambiental em Rondônia, reconhece que retirar o gado da Resex não é uma tarefa fácil. Ele foi chefe da CUC entre 2011 e 2013 e esteve envolvido em várias tentativas nesse sentido.

“É uma tarefa complexa. Existem grandes pecuaristas dentro da Resex e há interesses políticos por trás. Órgãos dos três níveis de governo precisam estar envolvidos”, afirma. “O poder público tem que cumprir o seu papel: tirar o gado, punir os responsáveis e obrigá-los a recuperar as áreas degradadas.” 

Contatada pela reportagem, a Idaron informou que a Sedam possui acesso aos seus dados desde 11 de maio de 2020. A Idaron também afirmou que passou a emitir GTAs apenas para saída da Resex. O MPRO informou que os atos executórios do acordo cabem ao Estado de Rodônia, que a responsabilidade de tirar a população animal de dentro da Resex é do Estado e que acompanha e cobra cada etapa do processo.

A Sedam não respondeu aos questionamentos da reportagem até o momento.

Imagem aérea da Resex Jacy-Paraná, cortada ao meio por um rio sinuoso
Legislação proíbe pecuária nesse tipo de unidade de conservação

A trajetória de destruição da Resex Jaci-Paraná

Pela lei, reservas extrativistas são definidas como unidades de conservação de uso sustentável com os objetivos de proteger os meios de vida e a cultura das populações extrativistas tradicionais que vivem na reserva e assegurar o uso sustentável dos seus recursos naturais. Os moradores de reservas extrativistas vivem do extrativismo e, complementarmente, da agricultura de subsistência e da criação de animais de pequeno porte.

No entanto, a realidade da Resex Jaci-Paraná é outra. Ela é a unidade de conservação mais desmatada da Amazônia Legal nos últimos dez anos. De acordo com dados do Inpe, o desmatamento na Resex foi de 943 quilômetros quadrados entre 2013 e 2022, ficando atrás apenas da Área de Proteção Ambiental do Xingu, no Pará. Onde havia floresta hoje existe pasto para gado. Em 2021, segundo a plataforma MapBiomas, 68,9% do total da área da Resex estava coberto por pastagens. 

Imagem aérea de área queimada e desmatada na Resex Jacy-Paraná
Reserva Jaci-Paraná é a UC mais desmatada da Amazônia

Em 2021, como mostrou a Pública, houve uma tentativa de legalizar a grilagem de terras na Resex e no Parque Estadual Guajará-Mirim através de uma lei estadual, estimulando novas invasões. Em abril daquele ano, a Assembleia Legislativa de Rondônia aprovou uma lei que reduzia a área da Resex para 22,4 mil hectares, o equivalente a 11,8% de sua área inicial. A mesma lei reduziu em 23,3% a área do Parque Estadual Guajará-Mirim, que, localizado ao sul da Resex, também sofre com invasões e aumento do desmatamento. Segundo dados do Inpe, entre agosto de 2021 e julho de 2022 o desmatamento do Parque Guajará-Mirim atingiu 84,8 quilômetros quadrados, quase o triplo do registrado no período anterior.

Apesar de o Tribunal de Justiça de Rondônia ter revogado a lei por a julgar inconstitucional em novembro de 2021, o futuro da Jaci-Paraná segue em risco. O destino da Resex interessa também a outras áreas protegidas da região, como a Terra Indígena (TI) Karipuna. Vizinha à Jaci-Paraná, a TI Karipuna registrou o maior desmatamento de sua história. De acordo com o Inpe, 17,4 quilômetros quadrados foram desmatados em 2022, um aumento de 147% em relação ao período anterior. Invasores utilizam a Resex para entrar na TI. Em maio e outubro deste ano, operações da Polícia Federal e do Ibama destruíram pontes que dão acesso ao território indígena a partir da reserva.

Paulo Bonavigo destaca que o futuro da Resex Jaci-Paraná também importa pela mensagem que passa para a sociedade: “Retomar e reflorestar a Resex passa a mensagem de que não se deve invadir área protegida. A Resex pode se tornar um exemplo de uma área protegida que foi invadida e depois reflorestada. Por outro lado, se as invasões forem regularizadas, a mensagem transmitida é de que o crime compensa”.

Marcela Bonfim/Agência Pública
Christian Braga/Greenpeace
Christian Braga/Greenpeace

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