Um despacho assinado nesta quinta-feira (2) pelo presidente substituto do Ibama, Jair Schmitt, promoveu o mais firme ataque à “boiada” que passou no órgão ambiental nos últimos quatro anos de governo de Jair Bolsonaro. A medida ataca principalmente o risco de prescrição de milhares de processos sancionadores abertos nos últimos anos contra infratores ambientais que acarretaram multas estimadas em bilhões de reais.
Em junho passado, a Agência Pública revelou que apenas um dos despachos assinados pelo então presidente do órgão, Eduardo Bim, nomeado no primeiro ano do governo Bolsonaro, poderia fazer com que a União deixasse de recolher cerca de R$ 3,6 bilhões em multas por infrações ambientais. O decreto citado pela Pública, de número 11996516/2022, é um dos documentos que agora foi revogado.
Schmitt, um experiente servidor público de carreira e quadro técnico do Ibama, tornou sem efeito dois despachos assinados por Bim, determinou a revisão de entendimentos de outros despachos e autorizou a criação de um grupo de trabalho destinado a revisar toda as decisões administrativas tomadas em processos sancionadores com base num despacho de Bim de 2022. Também serão revisadas “outras decisões proferidas, no período de 2019 a 2022, pelas autoridades julgadoras definidas para atuar no âmbito do processo sancionador ambiental, tomadas em desconformidade com preceitos legais, orientações jurídicas e teses históricas que informavam o processo de apuração de infrações ambientais do Ibama”.
Por fim, Schmitt determinou que o Centro Nacional de Processo Sancionador Ambiental do Ibama realize a estimativa do impacto da aplicação dos despachos que agora foram cancelados, um “levantamento de processos que possam ter sido excluídos do Sistema Integrado de Cadastro, Arrecadação e Fiscalização (Sicafi) entre 2019 e 2022” e “quais os impactos da aplicação do entendimento” de dois despachos, de 2021 e 2022, “no acervo de multas do Ibama, com a indicação dos valores envolvidos e do percentual do impacto; qual o quantitativo de multas ambientais e o montante de recursos afetados pela incidência da prescrição, em decorrência desse entendimento, de 2019 até o presente momento”.
Suely Araújo, ex-presidente do Ibama e especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima (OC), uma coalizão com mais de 80 organizações não governamentais, comemorou o despacho do presidente substituto do Ibama como “decisão acertada e robusta”.
Durante o governo Bolsonaro, disse Araújo, houve toda uma série de despachos e entendimentos jurídicos da área ambiental que, na prática, lançou um descrédito sobre todo o sistema de autuações. Os fazendeiros autuados ficavam mais preocupados com os embargos, que poderiam prejudicar o crédito bancário, do que com o pagamento das multas. Em 1º de janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva já havia anulado o processo de “conciliação ambiental” criado pelo ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.
“Eles [governo Bolsonaro] geraram o caos, desconstruíram, por exemplo, toda a fase de instrução e julgamento. Ter corrigido tudo isso junto, ao mesmo tempo, foi uma decisão muito acertada. Se tem uma coisa de correção de ‘boiada’ dentro do Ibama, esse ato foi o mais importante. Isso vai ter inúmeras repercussões. O despacho dá todas as ordens necessárias para se corrigir o que foi feito de errado”, disse Araújo.
Em petição protocolada no Supremo Tribunal Federal em outubro passado no bojo da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 755, o Laboratório Observatório do Clima informou ao ministro Luiz Fux que as alterações realizadas pelo Ibama na sua administração “impactaram de maneira grave a efetividade, a eficiência e a eficácia do processo sancionador ambiental, repercutindo negativamente na capacidade coercitiva e dissuasória dos órgãos ambientais a ponto de esvaziar o núcleo essencial do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, assegurado pelo art. 225 da Constituição Federal”.
“A inegável ineficácia do processo sancionador nos dois anos imediatamente seguintes à edição do decreto nº 9.760/2019 já acarretou danos graves e irreversíveis à proteção ambiental no Brasil, ao reduzir a capacidade coercitiva e dissuasória do órgão ambiental brasileiro. Veja-se que a quantidade de multas pagas nos processos administrativos sancionadores reduziu de uma média de 688/ano entre 2014 e 2018 para 74 e 13 multas pagas em 2019 e 2020, respectivamente, sendo que, em 2020, pela primeira vez na série histórica, o número de desembargos foi superior ao de embargos”, informou a petição do OC.
Além de Suely Araújo, subscreveram a peça os advogados Nauê Bernardo Pinheiro de Azevedo, Paulo Eduardo Busse Ferreira Filho, Vivian M. Ferreira, Fernando Nabais da Furriela e Luciana Betiol.