Enquanto a crise humanitária na Terra Indígena Yanomami se aprofundava sem a devida assistência do Estado, o governo Jair Bolsonaro destinou R$ 215,8 mil a uma iniciativa desenvolvida no território para enfrentar uma suposta prática de “infanticídio indígena”. As informações foram obtidas pela Agência Pública via Lei de Acesso à Informação (LAI). Essa é uma pauta ligada a organizações evangélicas que contribui para disseminar o racismo em relação aos povos indígenas, conforme denunciam lideranças e especialistas.
O valor foi direcionado pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) ao projeto Ulu, de acolhimento a crianças Yanomami que teriam sido rejeitadas por suas comunidades, realizado por missionários indígenas e não indígenas em uma aldeia Sanumá – um dos grupos Yanomami – na região de Auaris, perto da fronteira com a Venezuela.
Embora o dinheiro tenha sido cedido pela Funai, foi o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), comandado de janeiro de 2019 a abril de 2022 pela hoje senadora Damares Alves (Republicanos-DF), que atuou para viabilizar o apoio à iniciativa, segundo informações enviadas à reportagem pela atual gestão da pasta, que voltou a se chamar Ministério dos Direitos Humanos (MDH). Damares deixou o cargo para concorrer às eleições.
Enquanto agiu para favorecer o projeto ligado a missionários, o ministério de Damares se eximiu de suas responsabilidades no enfrentamento à crise humanitária entre os Yanomami, de acordo com relatório publicado pelo MDH no fim de janeiro. O documento aponta que, ao receber pedidos e recomendações de entidades como a Organização das Nações Unidas (ONU), Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e Ministério Público Federal sobre a situação, o MMFDH redirecionou casos de sua competência a outros órgãos ou simplesmente os arquivou. Por outro lado, quando o tema era “combate ao infanticídio” entre os Yanomami, diz o texto, a atenção era outra e o tema aparecia de modo “recorrente nas justificativas de viagem”.
Em 20 de janeiro, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) decretou emergência em saúde pública devido ao cenário de desassistência à população Yanomami, agravado pela invasão de cerca de 20 mil garimpeiros ilegais no território, segundo entidades indígenas. Desde então, têm surgido indícios de que a gestão Bolsonaro não agiu de maneira adequada para enfrentar a situação, embora tenha sido alertada sobre o assunto em diversas ocasiões.
Novos documentos analisados pela Pública revelam que a Funai também não tomou as medidas necessárias ao receber solicitações de intervenção em relação à crise Yanomami entre 2018 – último ano do governo Michel Temer – e 2022. Durante esses cinco anos, quando questionado, o órgão respondeu que sua atuação estava limitada por fatores como baixo orçamento e falta de pessoal e promoveu apenas ações pontuais que não atacaram as raízes do garimpo ilegal na terra indígena.
O médico Paulo Cesar Basta, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que trabalha com saúde nas comunidades Yanomami há 20 anos, destaca que as altas taxas de mortalidade infantil observadas no território não estão ligadas à prática de infanticídio, mas são decorrentes, sobretudo, de doenças evitáveis, como desnutrição, diarreia, malária e pneumonia.
Em dezembro de 2022, a Pública mostrou que crianças Yanomami morrem 13 vezes mais por causas evitáveis do que a média nacional. “Coisas que podem ser resolvidas com ações simples, como mais médicos, insumos e estrutura de saúde”, afirma Basta. “Taxativamente, a alta taxa de mortalidade infantil no território Yanomami não pode ser atribuída, de modo nenhum, ao infanticídio”.
Os R$ 215,8 mil destinados ao Ulu pela Funai entre setembro e outubro de 2022 tinham como finalidade a construção de uma casa para acolher crianças Yanomami que seriam “portadoras de deficiência física e neurológica” e estariam “em situação de risco e vulnerabilidade social”, de acordo com proposta apresentada ao órgão pela Ypassali Associação Sanumá, entidade que representa os Sanumá e é responsável pelo projeto.
Por LAI, a Funai comunicou que o valor foi executado, mas que a casa de acolhimento não chegou a ser construída. Os recursos foram disponibilizados pela sede em Brasília à Coordenação Regional de Roraima para a compra de ferramentas, material de construção e elétrico, combustível, pagamento de diárias de servidores e colaboradores e locação de aeronaves para transporte de pessoal à aldeia Olomai, onde a casa seria construída, acessível apenas por avião. A reportagem perguntou à Funai e à Ypassali Associação Sanumá por que as obras não foram realizadas e qual destino foi dado ao dinheiro, mas não recebeu resposta até o fechamento deste texto.
Pastora evangélica, Damares elegeu o combate ao “infanticídio indígena” como uma de suas bandeiras, junto do ativismo antiaborto. Ela trabalha pelo avanço do Projeto de Lei da Câmara (PLC) 119/2015, em trâmite no Senado, que propõe alterar o Estatuto do Índio a fim de aumentar a atuação de órgãos do Estado contra o suposto infanticídio em comunidades indígenas, entre outros pontos. A matéria, apoiada pela Frente Parlamentar Evangélica, havia sido arquivada ao fim da última legislatura, mas a senadora solicitou seu desarquivamento logo que tomou posse. O pedido foi atendido no fim de março, e o PLC voltou a tramitar na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Casa – a próxima etapa é a designação de um relator.
O retorno do projeto à pauta do Senado soou um alerta entre entidades indígenas e pesquisadores. Para eles, além de difundir o preconceito em relação aos povos originários, o projeto pode facilitar a atuação de missionários evangélicos nas comunidades. Maurício Terena, coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), classificou o desarquivamento do PLC como “extremamente equivocado”. Ele diz que a bandeira do combate ao “infanticídio indígena” contribui “cada vez mais para que os povos indígenas sofram com racismo e também com a rejeição da sociedade, porque alimenta estereótipos que foram construídos durante a constituição territorial do país”. Para Terena, “olhar para a causa indígena sob uma perspectiva cristã é perpetuar a violência colonial que aconteceu contra os povos indígenas”.
No início de março, Damares se candidatou a uma das vagas da comissão temporária do Senado que acompanha a crise Yanomami, mas ficou de fora. Mesmo assim, ela tem acompanhado as audiências públicas e encontros do colegiado. Em fevereiro, o PSOL protocolou uma representação contra ela no Conselho de Ética do Senado pedindo sua cassação por suposta relação com a crise humanitária no território indígena. O documento diz que, enquanto ministra, Damares teria utilizado a máquina pública para promover uma política “etnocida e racista” contra os povos originários, sobretudo os Yanomami. Ela nega.
Articulação do lobby missionário
Um levantamento realizado pela atual gestão do MDH em documentos internos indica que, em setembro de 2019, Mateus Sanumá, presidente da Ypassali Associação Sanumá, enviou uma carta diretamente a Damares solicitando recursos e ajuda na construção de uma “casa de proteção” do projeto Ulu. A partir daí, o MMFDH realizou uma série de reuniões com outros órgãos sobre o assunto e mandou pedidos à própria Funai e à Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde para que dessem suporte à iniciativa, o que efetivamente aconteceu por meio da Funai apenas quando o governo Bolsonaro estava prestes a terminar.
Os documentos obtidos pela reportagem mostram que a ideia do ministério de Damares era tornar o Ulu “um projeto piloto” a ser replicado em outros territórios. Uma análise da própria Funai em novembro do ano passado, entretanto, recomendou que alguns pontos do projeto fossem revistos. A nova administração do órgão informou à reportagem que fará uma reavaliação da questão junto aos Sanumá de Olomai “sem que haja interferência de qualquer entidade religiosa”. Comunicou ainda: “o Estado é laico e uma de nossas prerrogativas constitucionais é o respeito às organizações próprias dos povos indígenas, de seus costumes e tradições”.
Em dezembro de 2022, no apagar das luzes do governo Bolsonaro, a Ypassali foi agraciada pelo MMFDH com a Ordem do Mérito Princesa Isabel, entregue a 120 pessoas e organizações “que se destacaram no atendimento e na assistência aos públicos-alvo do MMFDH, em âmbitos nacional ou internacional”, segundo a pasta. Também receberam a honraria o ex-presidente Jair Bolsonaro, a própria Damares, igrejas evangélicas e parlamentares bolsonaristas.
Embora a Ypassali seja formalmente presidida, segundo a Receita Federal, pelo indígena Mateus Sanumá, quem recebeu a homenagem foi o missionário Ademir Santos Silva, ligado à organização evangélica Jovens com Uma Missão (Jocum) e à Missão Evangélica da Amazônia (Meva). Nos documentos analisados pela Pública, Silva é descrito como o “interlocutor” entre o governo e os indígenas responsáveis pelo projeto Ulu. Natural da Bahia, ele trabalha com os Sanumá desde a década de 1990, quando foi levado pela Jocum às comunidades. Conhecido pelo nome indígena “Mimica”, é fluente no idioma tradicional Sanumá e atua como tradutor dos indígenas, como Renato Sanumá, liderança evangélica que coordena o projeto Ulu.
Damares tem relação próxima com a Jocum: junto a dois de seus missionários, o casal Edson e Marcia Suzuki, fundou a ONG Atini, cujo objetivo principal é “erradicar o infanticídio indígena” no Brasil. A Atini descreve o “infanticídio indígena” como as supostas mortes de “centenas de crianças” todos os anos em aldeias do país por terem nascido de relações extra-conjugais, com deficiência física ou mental ou por serem gêmeas, entre outros fatores. A organização diz também que crianças com essas características são abandonadas por suas comunidades. Não há, entretanto, dados que corroborem essas afirmações.
A atuação missionária e a causa aproximaram Damares e Ademir Santos Silva. Em 10 de outubro do ano passado, ele chegou a ser citado pela ex-ministra em um evento de campanha de Jair Bolsonaro em Boa Vista (RR), quando o ex-presidente disputava o segundo turno das eleições com Lula. “Há 15 anos, o Mimica falou para o mundo que em algumas comunidades, as crianças indígenas com deficiência não são bem aceitas. Sofreu junto comigo, mas agora tá trabalhando comigo, porque tem um presidente da República que protege crianças com deficiência”, disse a então recém eleita senadora, segundo reportagem do jornal local Folha BV.
A Pública perguntou a Damares e Silva se eles mantêm relação de amizade. Silva não respondeu aos questionamentos enviados. Já a senadora, em mensagens de áudio, disse que sabia que a Ypassali trabalhava “cuidando de crianças em situação de vulnerabilidade”. De acordo com ela, “crianças Yanomami órfãs, crianças Yanomami com deficiência, com doenças crônicas ou com doenças raras”.
Damares afirmou ainda que conheceu o trabalho de Ademir Santos Silva, o Mimica, “há muitos anos” e disse ser sua “apoiadora”. “Vou fazer o que eu puder fazer pra apoiar Mimica, Mateus, todos que trabalham com crianças Yanomami em situação de vulnerabilidade”, declarou. A senadora negou omissões do ministério, quando estava sob o seu comando, em relação à crise Yanomami, ou que tenha favorecido o projeto Ulu em detrimento de outras iniciativas. “Apoiar uma iniciativa dessa não quer dizer que está deixando as outras para trás”, afirmou.
f“Quero dizer que não só apoiamos uma iniciativa que protege a vida de crianças [como] todas as iniciativas que protegem a vida de crianças que foram apresentadas ao ministério. Todas as crianças, de todos os povos, criança cigana, criança quilombola, criança indígena, criança ribeirinha, as iniciativas que salvavam vidas de crianças, no que estava dentro da atribuição do MMFDH, foram apoiadas”, complementou a senadora. Leia aqui a íntegra das respostas de Damares Alves.
Alegação sobre “infanticídio indígena” não tem comprovação
Em várias ocasiões nos últimos anos, Damares fez falas públicas sobre a suposta prática de infanticídio em aldeias indígenas. Em entrevista concedida em 2019, seu primeiro ano à frente do ministério, disse que “mais de 1.500 crianças são assassinadas por ano nas aldeias do Brasil”. Questionada pela Pública sobre a fonte do número, ela alegou que se tratava apenas de “uma estimativa”.
“Quando começamos a falar sobre o sacrifício de crianças por motivações culturais, lá nos anos 2000, e quando comecei a falar dentro do Congresso Nacional, pessoas que trabalhavam com o tema trouxeram para nós que é impossível a gente dizer com precisão quantas crianças são vítimas do sacrifício”, admitiu, em resposta às perguntas da reportagem.
O número, porém, não está amparado na realidade. Segundo pesquisadores em saúde indígenas ouvidos pela reportagem, não há registros oficiais atualizados disponíveis de quantas crianças indígenas seriam vítimas de infanticídio anualmente no Brasil. O Código Penal, que criminaliza a prática na sociedade como um todo – não apenas entre os povos originários –, a define como “matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após”.
Uma reportagem da Revista Época de janeiro de 2019 cita duas notas técnicas sobre o tema produzidas pela Sesai. A última, de 2016, indicava que os casos de neonaticídio – termo que o documento utilizou em substituição a “infanticídio”, de acordo com a revista – entre os povos indígenas brasileiros foram de 42 em 2014 e de 41 em 2015, muito abaixo das 1.500 mencionadas pela ex-ministra. A Pública pediu à Sesai acesso aos levantamentos, que não são públicos, mas o órgão informou, por meio de sua assessoria de imprensa, não ter conseguido localizá-los.
Apesar disso, a secretaria afirmou à reportagem que “as alegações da senadora Damares Alves não se sustentam quando observados os dados do Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (Siasi)”. Segundo o órgão, crianças indígenas menores de um ano morrem no país principalmente devido a “doenças do sistema respiratório; doenças do período perinatal (entre 22 semanas completas de gestação e uma semana de nascimento); infecções e parasitismos e problemas nutricionais e metabólicos”, chamadas causas evitáveis [Leia aqui a nota na íntegra].
De acordo com a Sesai, entre 2018 e 2022, 3.792 crianças indígenas morreram dessas causas, em razão do baixo acesso à assistência em saúde básica. No mesmo período, ocorreram 207 óbitos por agressão em crianças indígenas menores de um ano. Esses dados, no entanto, “não podem ser usados para basear qualquer suposição como a levantada pela senadora”, conforme a secretaria, por não indicarem “a identidade do agressor”. “Os números incluem crianças mortas por diversas violências, como ataques de garimpeiros, por exemplo”, comunicou.
Tampouco existem dados específicos sobre a Terra Indígena Yanomami que possam justificar a necessidade de uma ação no território para combater o suposto problema. Segundo o médico Paulo Cesar Basta, da Fiocruz, o infanticídio ocorre entre os indígenas, mas “não se pode afirmar que é uma prática corrente, nem que acontece com frequência”, como pregam Damares e as organizações missionárias.
“Não dá para associar as mortes de crianças com uma possível prática de infanticídio por má formação congênita, porque crianças com má formação congênita, entre os nascidos vivos, são uma ocorrência baixíssima nos dados dos nascidos vívos em nível nacional”, explica.
Junior Hekurari Yanomami, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana (Condisi-YY) e uma das lideranças mais atuantes na denúncia e combate à crise de saúde no território, reforça que “desnutrição, malária, falta de assistência de saúde são as principais causas de morte de crianças” entre seu povo. Para ele, crianças e mulheres indígenas foram abandonadas pelo Estado brasileiro nos últimos anos: “[o governo] Bolsonaro tinha conhecimento total dos problemas do território. Garimpeiros violentando mulheres, malária, outros problemas. Ainda estamos bebendo água contaminada pelo garimpo”.
Basta pontua também que as ocorrências de infanticídio entre os Yanomami podem ter ligação com violência sexual. “Lá, no meio da floresta, o Estado está ausente. Não garante direitos humanos. Lá, no meio da floresta, não tem como a mulher ter acesso ao aborto legal.”
“Inspiração” para o Ulu, Atini é alvo de processos e investigações
Desde sua fundação em 2006, a Atini direciona todos os seus esforços a combater o “infanticídio indígena”, que atribui a questões tradicionais dos povos originários e descreve como uma “prática cultural nociva”. Mas essa associação é duramente contestada por estudiosos do tema, segundo os quais serve para criminalizar as comunidades indígenas.
“O debate coloca [o infanticídio] como se fosse uma prática exclusiva de povos indígenas, como se não acontecesse todos os dias na sociedades não indígenas também. A partir do momento em que se qualifica como sendo uma prática tradicional, cultural, que é imposta pelo coletivo, promove-se uma estigmatização”, aponta a antropóloga Ana Carolina Saviolo Moreira, que estudou a construção política da pauta do “infanticídio indígena” em sua dissertação de mestrado, defendida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 2022.
Ela explica ainda que essa definição “homogeneiza” os povos originários. “Temos mais de 300 povos indígenas no Brasil com diferentes línguas, padrões de cultura e de organização social, mas o debate sobre ‘infanticídio indígena’ coloca [a questão] de forma blocada e homogênea, como se fizesse parte [de toda a] cultura indígena. Isso não ajuda em nenhuma medida, porque as pessoas são leigas, não conhecem essa imensa diversidade”, frisa.
A Atini também tem sido protagonista na discussão do PLC 119/2015 no Congresso Nacional, apresentado em 2007 pelo então deputado federal Henrique Afonso, à época do PT do Acre (na Câmara dos Deputados, a matéria tramitou como PL 1057/2007), e apoiado por parlamentares evangélicos. Representantes da ONG participaram de boa parte das audiências públicas sobre o projeto, que foi debatido por oito anos e aprovado em 2015 na Câmara.
Naquela Casa, o projeto recebeu o apelido de “Lei Muwaji”, nome de uma indígena do povo Suruwahá do Amazonas que teria procurado missionários evangélicos para impedir que a filha nascida com paralisia cerebral fosse sentenciada à morte. O PLC chegou a figurar em uma lista de 35 matérias que o ex-presidente Jair Bolsonaro colocou como prioridade de seu governo no Congresso Nacional em 2021, mas acabou arquivado ao fim da última legislatura e voltou agora à pauta do Senado a pedido de Damares.
Especialistas contestam a utilidade da uma lei com foco em casos de infanticídio cometidos por povos indígenas. “O Código Penal Brasileiro, em seu Art. 123, tipifica e emite sanção (de dois a seis anos de detenção) para o crime de infanticídio – o que contempla toda e qualquer cidadã, indígena ou não, já que a tipificação do crime, no caso brasileiro, incide apenas sobre as mulheres – pois é considerado como efeito do estado puerperal do pós-parto. Qual a necessidade de criar uma especificação para o ‘infanticídio indígena’?”, questionou a antropóloga Marianna Holanda, professora da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora de Bioética e Direitos Humanos, em artigo publicado em 2018 sobre o tema.
Para Ana Carolina Saviolo Moreira, a mobilização da bancada evangélica em torno do PLC carrega outros significados. “A gente entende que foi uma espécie de sequestro da pauta para mobilizar outros tipos de interesse. Quando os parlamentares evangélicos falam: ‘tem indígena matando criança dentro das terras’, [subentende-se que] não se pode então demarcar terras para essas pessoas, porque elas estariam fazendo coisas que são contrárias aos direitos humanos e à nossa Constituição Federal”, indica.
Além disso, a Atini elaborou cartilhas e lançou produções audiovisuais sobre o tema. Um dos vídeos colocou a entidade como alvo de investigações do Ministério Público Federal (MPF) em Rondônia e no Distritro Federal: a ONG mostra supostas cenas de prática de infanticídio em uma comunidade Suruwahá. De acordo com o MPF de Rondônia, o filme produzido pela Jocum usou encenações de crianças e adultos do povo Karitiana para contar uma história falsa como se fosse verdadeira.
Em Ação Civil Pública, o MPF de Rondônia pediu indenização por danos morais e coletivos ao povo Karitiana e disse que o material “incita ódio contra indígenas”. A ação ressaltou ainda que o “infanticídio indígena” não é realizado pelos Karitiana e que “são raros os registros de povos indígenas na Amazônia que adotam tal prática”.
A experiência da Atini foi a inspiração para o projeto Ulu, disse Renato Sanumá, a liderança evangélica à frente do projeto, durante uma pregação na igreja Batista da Mooca, em São Paulo, em junho de 2021, ao lado de Ademir Santos Silva. “Não somente esse projeto nasceu no meu coração. Foi algo que aconteceu com a Márcia e com o Suzuki há muito tempo atrás, quando eles deram um primeiro pontapé para um projeto como esse. Eu vi que eles salvaram uma criança pequena e eles trabalharam muito, lutaram muito por aquela criança. Assim como Suzuki fez, também tenho seguido os passos de Deus, levando o exemplo desses missionários”, declarou. A Atini explicitou essa ligação em um post no Facebook em junho de 2021, em que afirma que o “pastor Renato Sanumá”, ao assistir “ao filme da Atini”, “se investiu de coragem e propagou esta voz e esta força nas matas Yanomamis”.
Ministério de Damares articulou com Sesai e Funai apoio para projeto
Dias após a carta de Mateus Sanumá chegar a Damares em setembro de 2019, o pedido da Ypassali Associação Sanumá foi encaminhado por “ordem da ministra” para “conhecimento e providências urgentes” a Sandra Terena, então secretária Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do MMFDH. Também ligada à Atini, Terena dirigiu um dos filmes produzidos pela organização sobre o “infanticício indígena”. Entre os roteiristas estão ela e seu marido, o blogueiro bolsonarista Oswaldo Eustáquio, que pediu asilo no Paraguai para evitar a prisão, determinada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes sob alegação de participação e incitação de atos antidemocráticos.
Começaram aí as tentativas de articulação do ministério com Funai, Sesai e outros órgãos para viabilizar recursos para a construção da casa de acolhimento do projeto Ulu, conforme mostram documentos enviados à reportagem pela atual gestão da pasta e pela Funai, via Lei de Acesso à Informação. Foram pouco mais de três anos até que a Funai efetivamente disponibilizasse os valores.
Uma nota técnica publicada no sistema interno da Funai, em 2022, à qual a reportagem teve acesso, informa que a casa acolheria “22 crianças Sanumás na faixa etária de 0 a 6 anos em situação de risco extremo na aldeia de Olomai; sendo 4 crianças com limitações físicas e 4 com dificuldade locomotora”. Um dos objetivos do Ulu, segundo a nota, seria “promover atendimento e acompanhamento multiprofissional de saúde a crianças e adolescentes Sanumás portadoras de deficiência física e deficiência neurológica”.
Dentro da própria Funai, porém, houve resistência ao projeto. Uma análise produzida em novembro de 2022 por servidoras da Coordenação de Acompanhamento de Saúde Indígena (Coasi) da Funai, então subordinada ao comando de Dias, aponta que é atribuição da Sesai e do Sistema Único de Saúde (SUS), e não da autarquia, executar atividades de atenção à saúde indígena ou contratar equipes para essa finalidade, e recomendam que o órgão “atue no estrito escopo de suas atribuições”.
O texto afirma também que não há estatísticas demonstrando maior incidência de casos de infanticídio, homicídio ou maus tratos entre os povos indígenas do que na sociedade no geral e que o projeto Ulu poderia “reforçar a associação dos Yanomami a denúncias de práticas de infanticídio”. Sugere ainda que a Funai tente compreender as noções de “deficiência” e “abandono parental” sob a perspectiva tradicional dos Yanomami, diferente dos conceitos dos não-indígenas.
As ressalvas feitas pelas servidoras da Coasi, porém, não chegaram a tempo. Algumas semanas antes haviam sido assinados dois pedidos de liberação de verba à Coordenação Regional de Roraima para a construção da casa de apoio do projeto Ulu.