Passado um ano do assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips no Vale do Javari, no Amazonas, a liderança indígena Bushe Matís, 36, relata em entrevista à Agência Pública que continuam as ameaças aos indígenas e as invasões ao território indígena por pescadores, caçadores e outros invasores ilegais. A presença do governo federal na cidade de Atalaia do Norte (AM), a “porta de entrada” da terra indígena Vale do Javari, continua a mesma de antes do crime: sem escritório da Polícia Federal, do Ibama e do Incra, assim como não há prédio do Ministério Público Federal nem fórum da Justiça Federal.
Nenhuma das três Forças Armadas — Exército, Marinha e Aeronáutica — instalou qualquer unidade nova nessa extensa área sensível da tríplice fronteira Brasil, Peru e Colômbia.
Os assassinatos, que repercutiram intensamente no Brasil e no mundo, completam hoje um ano. Segundo as investigações, um grupo de pescadores que atuava ilegalmente dentro da terra indígena, tendo à frente Amarildo Oliveira, o Pelado, assassinou Bruno e Dom com o objetivo de interromper ações contra o crime organizado na região. A PF também investiga um possível mandante do assassinato, Ruben Dario Villar, o Colômbia, suspeito de liderar uma organização criminosa, mas o inquérito ainda está em andamento.
Eleito em março deste ano o coordenador da Univaja, a principal organização indígena do Vale do Javari, sediada em Atalaia, Bushe Matís disse que o governo federal que tomou posse em janeiro tem prometido muita coisa, mas ainda não há resultado no dia a dia da região. O governo Lula chegou a enviar uma comitiva à região em fevereiro, capitaneada pela ministra Sonia Guajajara (Povos Indígenas), e a Polícia Federal mandou ancorar uma balsa no porto de Atalaia, mas com o passar dos meses o barco não é mais visto e o clima de insegurança continuou o mesmo, segundo o coordenador da entidade indígena.
Amigo do indigenista Bruno Pereira, nascido numa aldeia na terra indígena Vale do Javari e formado em administração pelo Centro Universitário de Anápolis (GO), Bushe auxiliou nos trabalhos que os Matís e outros indígenas do Javari realizaram em junho de 2022 para a localização dos corpos. O trabalho indígena foi fundamental para a localização de pertences dos então desaparecidos que levaram à confissão de Pelado e de outros investigados.
Os trabalhos de busca e os desdobramentos da investigação sobre o crime foram acompanhados em junho do ano passado pela Agência Pública em Atalaia do Norte (AM) para o especial “Vale do Javari – Terra de conflitos e crime organizado”, que resultou em 28 reportagens até agora.
A seguir, trechos da entrevista concedida por Bushe em Brasília na semana passada.
Passado um ano do crime, na sua avaliação, o que mudou no Vale do Javari?
Na minha avaliação, chegou um barco da Polícia Federal que estava estacionado no porto da cidade. E depois sumiu. Mas a gente esperava que chegasse mais segurança, Polícia Federal, Ibama, Força Nacional. Porque a reunião que tivemos, interministerial, com a presença de Joênia Wapichana [Funai], a Sonia Guajajara, a Procuradoria do Amazonas… Essa era a nossa expectativa, dos indígenas. ‘Ah, então, nós vamos ter segurança. Agora vai ter embarcações, pessoas vão fazer atividades de operação aqui na nossa região.’ Era muito maravilha, assim, a presença que tiveram lá as autoridades.
Em fevereiro?
Em fevereiro. Mas isso era só repercussão mesmo, para mostrar [trabalho], talvez.
Então não mudou quase nada?
Não mudou nada. Não mudou nada. Está do mesmo jeito. Ameaças continuam. E a presença dos pescadores continua. Madeireiro do lado do Peru no rio Javari continua. Pescadores também continuam. Não tem trabalho consistência. A Funai não vai fazer porque falta orçamento, falta recursos humanos, as pessoas para lotar. Hoje está mais ou menos funcionando a proteção do território do Vale do Javari porque graças àquele processo seletivo que a Funai teve [que fazer] nessa pandemia, obrigada pela ADPF 709 do Supremo, então ainda existem os funcionários temporários, indígenas e não indígenas. Uns 60 ou 70, por aí.
O problema é que quando acabar os contratos…
Se não vai renovar, acabou, acabou. Vai vencer agora em novembro. Já são dois anos já, mais do que isso não vai, não [continuar].
Você mencionou as ameaças às lideranças.
Eu diretamente não, eu ainda não [fui ameaçado]. Outras lideranças são ameaçadas através do WhatsApp, né, chantageando, ‘olha, eu conheço sua família, conheço sua filha, você paga o valor tal que a gente fica livre, você tá denunciando as minhas vendas de produtos ilícitos e já sabemos quem está fazendo isso. Não é pra vocês fazerem isso, porque é a nossa sobrevivência, então vocês têm que pagar’. Meu colega liderança dos Kulina estava sendo ameaçado desse jeito, através do WhatsApp, ele estava desesperado.
As ameaças são encaminhadas às autoridades?
Sim, são encaminhadas.
E como elas respondem?
Aí eu não sei. Se tivesse ação, eu poderia saber, mas não sei. Acho que a gente é… Tipo a Procuradoria federal, ou Ministério Público. Indígena tem um problema sério, elabora uma reivindicação, uma cobrança, denúncia, encaminha para o Ministério Público Federal e não acontece nada. Não tem resposta, não tem nada.
Mesmo depois de tudo o que aconteceu?
Mesmo depois de tudo o que aconteceu. Não acontece nada. É assim que funciona. A gente encaminha, a gente informa, mas os caras dizem ‘não, Justiça leva tempo’. Mas ninguém quer levar tempo, ninguém quer esperar o tempo. Tem que agir. A gente quer ação, nós queremos ver [consequência].
Que tipo de coisa vocês gostariam de ver, o que poderia ser feito?
Para agir, nós temos que ter a balsa instalada na boca do rio Quixito, onde tem mais acesso dos invasores. Tanto no Quixito quanto no Ituí.
No rio Curuçá também?
[Sim], na boca do rio Curuçá. E a Funai, Polícia Federal, Ibama, em parceria com Força Nacional, fazer um trabalho consistência nessa navegação do rio. Pelo menos estar presente, que a gente vai sentir que estamos sendo protegidos. A presença do Exército, Ibama, Polícia Federal, Força Nacional. Então eles têm que fazer. Se tiver a presença dessas autoridades, pessoas que trabalham na defesa, na segurança pública, a gente sente [sentiria] que estamos sendo ouvidos, as pessoas estão presentes aqui. E outra coisa que eu sempre reclamo: a gente vê treinamento, capacitação, recrutamento do Exército Brasileiro. Mas para quê? Vai ter guerra, quando que vai ter guerra? Se não tem guerra, estamos pagando, a gente paga imposto, por que não cuida do território, patrimônio do Brasil? A gente considera que é terra indígena, mas não é terra indígena, a gente usufrui, mas a terra é do Brasil, é da União. Eu acho que a presença do Exército seria muito bom. Cuidando, ali na frente de proteção [da Funai] na base do Ituí, na base Curuçá, Jandiatuba, ali no limite da terra indígena, estar presente. Deveria, né.
Há informação de que a Polícia Federal tinha instalado uma balsa no rio Itaquaí. Ela ficou quanto tempo lá parada?
Acho que ficou no máximo um mês.
Para onde ela foi?
Voltou para Tabatinga.
Então não tem delegacia da Polícia Federal, não tem prédio do Ibama, do MPF. Então nada foi instalado depois dos crimes?
Não tem. Nada foi instalado. Nenhum equipamento nem nada.
Então a situação hoje fica de novo nas mãos dos indígenas. Como é o projeto que vocês têm?
O projeto de equipe de vigilância da Univaja trabalha mais com o monitoramento. Mesmo que a gente tenha construído postos de vigilância em postos estratégicos, a nossa presença mais é estar ali no treinamento de parentes indígenas para que futuramente possam utilizar tecnologia de GPS, drone, mapeamento, saber elaborar um documento bem elaborado, informação técnica. A gente sempre vai fazendo o papel do Estado. Mas não vai substituir. O Estado tem que fazer o papel dele. Mas o nosso é passageiro. Sabe que tá tendo investimento, tá tendo financiamento, mas todo projeto acaba, tem início, meio e fim. Quando a gente acaba, e aí como é que fica? O nosso é só momento, nós estamos protegendo porque o Estado não faz, vamos fazer, vamos cuidar do nosso território porque é nosso. Vai esperar por quem? Alguém vem de fora para cuidar do nosso território? Não. Já que a gente tem o recurso, então bora cuidar, monitoramento, picada, limpeza do limite da terra indígena.
Como é esse trabalho de limpeza?
A gente junta um grupo de mais ou menos 23 pessoas, vai num determinado local, instala o acampamento e a gente começa a fazer a picada, [identifica] onde era a antiga picada, onde estão os marcos [da demarcação da terra indígena], daí limpa o local do marco. Faz uma limpeza bem bacana, coloca placas.
Para esse trabalho vocês também não estão recebendo ajuda do governo?
Não, de nenhum governo. Nem prefeitura, Estado, Funai, de ninguém. É tudo recurso próprio [do projeto da Univaja]. Já concluímos mais ou menos 40% do trabalho. A gente vem trabalhando.
Por que é importante esse trabalho?
Porque nós temos que marcar nosso limite e dizer ‘nós estamos aqui, esse aqui é o nosso território. Assim como a gente respeita o limite de vocês, prefere que vocês conheçam nosso território. Aqui está o marco, a placa. Nós estamos abrindo para que vocês possam ter a visibilidade da terra indígena.’ Na tentativa de coibir caçadores, pescadores, madeireiros, até narcotráfico dentro da terra indígena. Que pode ser prejudicial para os povos isolados, doenças. Os povos isolados antes eram em menor quantidade, mas como já passou muito tempo [desde que] a terra foi demarcada, homologada, e já teve desintrusão dos moradores que estavam lá e eram ameaça para os povos isolados, hoje eles dizem assim: ‘Estamos vivendo tranquilo e paz, em silêncio’. Ao mesmo tempo, a população cresce e expande. Então é importante a gente demarcar nossa terra para proteger os isolados, nossa maior preocupação é essa, cuidar dos isolados.
Com o atual governo, sei que vocês têm dialogado, mantido reuniões. O que o governo federal fala a vocês sobre essas necessidades de mudanças e melhorias?
Sempre alegam orçamento. ‘Não tem orçamento, não tem recursos humanos. A gente vai fazer, vamos fazer.’ Mas daí nunca chega à conclusão, nunca chega a [algo] concreto.
Em relação ao governo Bolsonaro, o que mudou?
Para nossa região, não mudou nada. Muda só as palavras. Só os argumentos, mudou isso. Bolsonaro era contra o indígena, falava ‘eu não demarco nenhum centímetro de terra de índio, não quero saber disso, para que cuidar do território, vamos fazer garimpo chegar ao território, tem que explorar a terra’, isso era o argumento dele. Agora o novo governo, apesar de o indígena ter votado, né, fala assim ‘agora vamos fazer, vamos criar, como se diz, ministério dos povos indígenas’. E aí, pode criar, mas vai ter orçamento para isso, estrutura para isso? E o que que vai levar isso para a nossa comunidade, em local, na base? Quem está na cidade vai estruturar, vai ter bom dinheiro, vai ter bom recurso, vai ter bom salário, mas quem está no campo? Nunca vai melhorar. É do mesmo jeito, governo entra e sai e a gente continua na mesma, sem educação de qualidade, sem saúde de qualidade, nunca chega atendimento de boa, proteção de território não tem, a Funai sempre vai estar sucateada, não tem recurso para fiscalização, monitoramento.
Quando os indígenas te elegeram para a Univaja, o que eles queriam de você, o que você representa para eles?
Há muitos anos que os Marubo estavam à frente da Univaja, então já era o momento de alternância. Então fui um dos primeiros Matís a chegar na coordenação da Univaja. Nessa eleição, os indígenas acreditaram muito em mim, fui 100% votado pelo povo Marubo, 100% pelo povo Matís e 50% pelo povo Kanamari. Então eles acreditam muito que eu possa proteger eles, né, demarcação da terra, que tem que ser protegida, eles precisam do fortalecimento do movimento indígena. Que através do meu conhecimento técnico posso trazer mais benefício para eles, eu posso lutar mais pela saúde, cobrar mais do Estado, construção de pólo-base da Saúde, de escolas. Então eles têm esperança que a gente faça muita coisa lá. E a gente precisa de saneamento básico na aldeia. Não tem na comunidade. Uma caixa d’água, alguma coisa, que funcione com gerador para que anciões tenham água perto. Porque dá muito sacrifício um ancião ir para o igarapé, trazer a água para fazer a comida. […] Precisamos ter energia solar, pelo menos para ter luz à noite, para conversar, trocar uma ideia. ‘Pô, Bushe é formado em administração, ele tem conhecimento técnico, pode articular, já que o governo existe há muitos anos e não está trazendo isso para nós, os próprios indígenas podem trazer isso para nós.’ É uma esperança, e tenho que devolver a confiança que depositaram em mim.
O que as mortes de Bruno e Dom representaram para o Vale do Javari?
Representou que [os invasores disseram] ‘vocês não podem proteger a terra de vocês, vamos matar vocês’. Então isso foi uma ameaça para todos nós. Eles foram indigenistas, lutaram, trabalharam mais até que [muitos] indígenas, protegeram a terra indígena, trabalharam, então para nós indígenas significou que já que um não indígena já morreu no nosso lugar, nós somos ameaçados. Representou uma violência para nós. Para nós [Bruno e Dom foram] um indigenismo que morreu por nós, que lutou por proteção, demarcação, proteção dos índios isolados. Para nós é uma representatividade que lutou em nome dos povos da região e com cuidado, segurança, preocupados com a proteção. Eles viviam coibindo a entrada de invasores, pescadores, garimpeiros, narcotraficantes.
Hoje os indígenas estão com temor, estão pensando que pode ocorrer de novo?
Sim, sim, eles têm temor. No nosso caso, por exemplo, a Univaja vai trabalhar e alguns falam ‘não, isso é papel do Estado, não pode fazer, não, vocês estão correndo risco, estão botando a vida de vocês em perigo.’