No final de julho, assim que a Operação Escudo chegou à Vila Baiana, bairro de Guarujá, Octavia* caminhava pela rua Argentina, por volta das 17 horas, quando encontrou uma moradora sendo abordada pela polícia em frente à creche Agripina Alves de Barros, onde sua filha estuda.
“Ela [a moradora] foi até a porta da creche, falou que vinha buscar a menina e ok, a professora entregou a criança pra ela no portão. Foi nisso que os policiais pediram o celular da mãe e mandaram ela desbloqueá-lo. Ela desbloqueou, eles olharam, e na hora já falaram ‘mãos no alto’, aquela coisa toda apavorante mesmo. Então eles ligaram para a mãe dela, entregaram a criança pra mulher [a avó] e já algemaram a moça na frente da filha, na frente da mãe, na frente da gente”, contou.
O relato de Octavia coincide com o depoimento de um morador que consta no relatório do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), divulgado durante a audiência pública sobre a Operação Escudo, no dia 1º de setembro. A pessoa entrevistada pelo CNDH também relatou que presenciou a mãe de uma criança de 1 ano e 6 meses ser algemada e ter o celular tomado por policiais, ao fotografar viaturas na rua da creche quando estava chegando para buscar a criança.
Segundo a reportagem apurou, a tensão tem sido uma constante entre funcionários e famílias atendidas por escolas municipais de Guarujá e Santos desde o final de julho, quando a Operação Impacto chegou à Baixada Santista. Atualmente, a região também passa por uma continuação da Operação Escudo nas cidades de Santos e São Vicente, que foi renovada no dia 8 de setembro, após a morte do sargento aposentado Gerson Antunes Lima, executado no feriado da Independência.
Até agora, ao menos 30 pessoas foram mortas em ações policiais. Há denúncias de execução, tortura e apagamento de provas de violência policial.
Uma creche à beira de um confronto permanente
Moradora da Vila Baiana há 20 anos, Octavia já presenciou diversas situações de abuso policial e de intimidação aos moradores do bairro da cidade de Guarujá. “Eles dizem, são situações que não estão na estatística, então é como se não acontecessem. Mas elas aconteceram, porque a gente viu”, reflete.
Ela conta que, em diversas ocasiões, pais e funcionários buscaram sensibilizar a prefeitura sobre os riscos de a creche continuar no local, devido às operações policiais. Há alguns meses, viralizou nas redes sociais um vídeo em que pessoas ligadas ao tráfico exaltavam suas armas em um local próximo à creche.
Em 2020, diante dos deslizamentos de terra nos morros da cidade, pais e funcionários fizeram um abaixo-assinado pedindo a mudança. No entanto, a prefeitura nunca atendeu aos pedidos, e a creche está no mesmo local há 53 anos.
“A polícia, quando vem procurar alguma coisa, vai direto para a rua próxima da creche, então aquela rua fica sem saída. Quem está de carro lá dentro não pode sair”, reclama Octavia.
O relato do morador da Vila Baiana que prestou depoimento ao CNDH também diz que “as viaturas, com frequência, estacionam na calçada de uma creche da comunidade. Esse movimento de viaturas impede a saída de funcionários da creche e impossibilita os pais de irem buscar seus filhos. O movimento dos policiais nas proximidades da creche afeta também as crianças”.
A secretária adjunta de Defesa e Convivência Social de Guarujá, Valéria Amorim, disse à reportagem que eles não adotam, como medida, a interrupção das aulas e que há cuidados que define como protocolos de segurança:
“Quando acontece no horário da aula, ninguém sai, ninguém entra. Fica todo mundo ali. Se aconteceu de manhã e a gente acha melhor que a escola não funcione à tarde, mas essa dinâmica é sempre discutida com a Polícia Militar. Às vezes, a gente entende que parar a rotina do bairro é muito pior, porque as pessoas ficam mais ainda em situação de alerta”, comenta.
A respeito do pedido da comunidade para a mudança da creche, a prefeitura de Guarujá informou, via assessoria, que a localização da creche se dá por motivos estratégicos, por estar em um entorno com diversos serviços para a comunidade. Questionada sobre como busca contornar os impactos das operações policiais na cidade, a prefeitura respondeu que “mantém uma série de serviços de cunho assistencial e educativo, além de políticas públicas de combate às drogas e violência nas escolas”.
Já sobre o caso da mãe que foi presa ao buscar a criança na escola, a Secretaria de Segurança Pública afirmou que não encontrou registros da ocorrência, apesar de diversos moradores terem confirmado o incidente à reportagem.
Leia a resposta completa aqui.
“Quer dizer que nossos filhos são escudos agora?”
Na manhã de 1º de agosto, dia em que a Operação Escudo chegou a Santos, os alunos, familiares e funcionários da escola Professor Mário de Almeida Alcântara viveram momentos de incerteza. Valéria* foi uma das pessoas a abrir os portões do colégio, por volta das 8h30 daquela terça-feira. A escola está localizada no bairro do Valongo, não muito distante do morro São Bento, para onde a polícia foi em busca dos suspeitos que teriam atirado na cabo da PM Najara Gomes e no soldado do 8º Batalhão de Ações Especiais de Polícia (Baep) Pablo Uriel.
“Foi uma manhã terrível. E o clima tem sido assim o mês todo. Não mudou”, desabafa a funcionária.
No mesmo dia, à tarde, pais e alunos de escolas de outra região da cidade também enfrentaram momentos de tensão.
Eram 14h30. Mônica* descia o morro do José Menino para ir ao mercado, quando deparou com viaturas da polícia pelas ruas. Ela escutou de um policial que precisava buscar os filhos nas escolas, bem antes do horário da saída, às 17 horas.
Ao chegar à escola Padre Lucio Floro para buscar o filho de 7 anos, Mônica descobriu que a escola tinha sido ocupada pela polícia e perguntou a um agente o que estava acontecendo.
“Quer dizer que nossos filhos são escudos, agora?”, ela questionou o policial. O agente teria respondido: “A gente tem ordem do Estado, pode entrar onde a gente quiser”. “Aí eu falei: ‘Eu concordo com o senhor, mas desde que a escola esteja vazia. Se um filho da gente morrer, é só mais um na estatística?’”, retrucou Mônica.
Mais tarde, ao buscar os filhos mais velhos na escola José Genésio, a polícia a parou e pediu que a filha mais nova dela abrisse a mochila.
No dia seguinte, quando Mônica estava saindo de uma loja, foi surpreendida pelos policiais que estavam em um aparente confronto com o tráfico local. Mônica não viu os criminosos e ficou de frente para quatro policiais armados na rua estreita.
“Eu fiquei na rua, com um saco de pão nas mãos, sem saber o que fazer. Falei assim para um deles: ‘Eu vou ficar de escudo aqui pra vocês?’”, conta. Segundo ela, um dos agentes deu as costas e disse “corre”.
Mônica conta que, pelo fato de a escola Padre Lucio Floro estar localizada no pé de um morro e presenciar situações constantes de tiroteios, as crianças, nas suas palavras, “já são treinadas”. “Mas nesse dia eles ocuparam toda a rua, fecharam a frente das escolas, cercaram os arredores com viaturas. E lá em cima, na laje da escola, tinham quatro policiais, depois subiram mais dois lá. Ainda ficaram três no auditório, e dois que entraram no refeitório e nas salas para levar as crianças para o refeitório. E com armas em punho. Isso é muito absurdo”, questiona.
“Sobra sempre pro morador, é sempre o morador que é atingido”, relata mãe
José Rodrigues Bueno era um homem baixo, de presença marcante, mas de coração alegre e brincalhão. É o que a historiografia registra a respeito da personalidade que teria originado o bairro de mesmo nome, famoso por estar na divisa entre Santos e São Vicente. Ourives que enriqueceu após investir na produção agrícola, José Menino conquistou terras que, após sua morte, foram leiloadas e vendidas pelo novo proprietário a diversas pessoas, o que provocou o surgimento da área residencial do que hoje é o bairro.
Hoje, o bairro é conhecido pelos turistas pelos voos de asa-delta que acontecem no alto do morro. A região é formada por matas espessas, que, segundo a polícia, traficantes utilizam como rota de fuga. Mas entre o mato e a polícia há casas, creches e unidades de saúde, que ficam no fogo cruzado em situações de conflito.
As escolas localizadas no José Menino estão entre as melhores da rede municipal de Santos, motivo pelo qual Ariadne* mantém as filhas matriculadas. Contudo, ela diz que o sentimento de insegurança na região aumentou com as operações policiais recentes, que ocorrem na hora em que as crianças estão na escola.
“Na escola Padre Lucio Floro a minha criança tem todo tipo de aula, até xadrez ela aprendeu. É uma escola muito boa, com professores que você vê que são muito dedicados. O único problema é que fica numa região em que a polícia está disposta a trocar tiro mesmo quando as crianças estão em aula”, comenta.
No dia 22 de agosto, policiais realizaram uma operação no momento em que os alunos da escola Padre Lucio Floro estavam no refeitório, no intervalo. Ariadne conta que, no dia, a filha mais velha, estudante da escola Irmão José Genésio, apareceu na rua sozinha e demonstrando muito nervosismo, apesar de as crianças já terem o hábito de voltar sozinhas das aulas. A filha mais nova ainda estava na escola Padre Lucio Floro.
“Ela estava muito nervosa, me perguntando se eu não tinha visto o que tinha acontecido. Fomos buscar minha filha mais nova e fiquei nervosa ao vê-las abaladas”, relata.
Além de conversar com a reportagem, Ariadne prestou um depoimento para a audiência pública organizada pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos em São Paulo, no dia 1º de setembro.
“Encontrei minhas filhas chorando. Tive que passar no morro e esbarrar com fuzil [de policiais] porque era impossível passar na rua da escola e você não dar de cara com fuzil. A gente sabe que quem tá no crime lá em cima, do movimento, é avisado muito antes da polícia chegar. Sobra sempre pro morador, é sempre o morador que é atingido”, relata.
A partir das últimas semanas de agosto, as ações policiais no bairro se tornaram mais violentas, segundo relato dos próprios moradores. Um motoboy muito querido pelos moradores da região foi baleado dentro da associação alugada pelos colegas para trocas de turno. Moradores chegaram a parar o trânsito da divisa de Santos e São Vicente no dia.
Prefeitura confirma ações da polícia
O relatório do CNDH destaca, entre suas recomendações, a necessidade do cuidado à comunidade escolar das regiões em que acontecem as ações policiais. “Apresentar, em 20 dias, protocolos de segurança para evitar operações em áreas sensíveis como escolas e instituições de saúde, preservando o bem-estar da comunidade”, diz a recomendação.
Advogado, professor de direito constitucional e direitos humanos, Willian Fernandes explica que a prioridade da direção da escola deve ser manter a integridade do ambiente escolar – algo que a presença da polícia entre alunos pode pôr em xeque.
“A direção escolar pode e deve adotar as medidas necessárias para manter a salubridade e integridade do ambiente escolar. No exercício dessa função, a direção escolar pode inclusive barrar a entrada da polícia se não houver fundadas razões ou esta entrada estar dentro das hipóteses excepcionais. Ou seja, não há uma autorização compulsória para a entrada da polícia simplesmente por ser um órgão público”, explica Fernandes.
“Esses apontamentos estão sob a ótica estritamente jurídica, pois no aspecto pedagógico há extensa literatura concluindo pelo comedimento da presença de policiais em ambientes escolares internos”, acrescenta.
Questionada pela reportagem sobre a entrada da polícia no dia 1º de agosto, a assessoria de imprensa da prefeitura de Santos informou que a Secretaria da Educação relata que os “policiais pediram permissão da equipe gestora, que também comunicou à secretaria, para entrar na unidade no dia 01/08/2023, com a intenção de ir até o último andar (telhado).”
A nota enviada pela assessora destaca que a “equipe de policiais ficou poucos minutos e não houve nenhuma ocorrência dentro da escola” e solicitou que, no caso de mais informações, fossem buscadas junto às autoridades policiais.
A reportagem questionou também se havia informações sobre se o incidente teria a ver com a Operação Escudo, mas a assessoria da prefeitura de Santos preferiu não responder. Já sobre a troca de tiros que aconteceu no morro José Menino em 22 de agosto, no momento em que os alunos estavam em aula ou em intervalo escolar, a prefeitura respondeu que “foi oferecida formação, em parceria com a Secretaria de Finanças e Gestão, para apoio emocional dos funcionários públicos para minimizar os efeitos emocionais do afastamento social mesmo no período pós-pandemia e também da sensação de insegurança”. Leia a resposta completa da prefeitura aqui.
Procurada, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo não respondeu sobre as incursões no José Menino.
Para Willian Fernandes, se as autoridades policiais receberam a autorização para entrar na escola, precisam explicar o ocorrido. “A operação policial deve ser completa, ou seja, se da operação ocorrer a possibilidade de algum distúrbio social, a polícia deve adotar todas as providências ao seu alcance para eliminar arestas, como, por exemplo, prestando informações aos atores locais de modo a amenizar os eventuais efeitos negativos que de sua ação possa ocorrer”, explica.
No estudo “Tiros no futuro: impactos da guerra às drogas na rede municipal de educação do Rio de Janeiro”, comparou-se um grupo de unidades escolares que são expostos cotidianamente à violência policial e um segundo, que está fora da zona de risco. Ao comparar os resultados do desempenho escolar dos alunos dos dois grupos na Prova Brasil, a pesquisa constatou que alunos expostos à violência do Estado têm desempenho 64% inferior em questões de português e mais de 100% pior de matemática. Ou seja, é como se os alunos perdessem um semestre e meio de conteúdos de português e um ano inteiro de aprendizado de matemática devido às situações que interrompem as aulas, além dos impactos na saúde mental.
“É muito complicado acreditar que o aumento do aparato policial bélico das escolas vai aumentar a segurança, sendo que aqui a gente está falando de operações policiais, né? Não é a polícia que tem que resolver. Temos que falar sobre outra política de segurança pública”, critica a coordenadora da pesquisa, a socióloga Rachel Machado.