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O Diário Oficial da União circulou no último dia 6 com uma portaria assinada pelo ministro da Defesa, José Múcio Monteiro Filho, pela qual aprovou um documento chamado pomposamente de “Política de Inteligência de Defesa”. Ela tem um cheiro de naftalina dos tempos da ditadura militar nos anos 1970. É redigida de tal forma vaga e imprecisa que pode ser apreciada com alegria pelos bolsonaristas ensandecidos do 8 de Janeiro. Na essência, abre espaço para a atuação das Forças Armadas contra os próprios brasileiros, insistindo na confusão autoatribuída de “Poder Moderador”, uma ficção que inexiste na Constituição de 1988.
O anexo à Portaria nº 4.846/2023 cita 20 supostas “ameaças observadas”. Detectar tais “ameaças”, segundo o texto, é “meta precípua” da inteligência militar. A primeira delas não é, por exemplo, o assombroso avanço do narcotráfico nas regiões de fronteira do Brasil, que só aparece na 11a posição, mas sim uma “ingerência externa sobre temas de interesse nacional”. Termos tão abstratos podem ser encaixados em várias teorias conspiratórias e fake news.
Foi essa a essência das acusações feitas pelo general da reserva Augusto Heleno, homem forte de Jair Bolsonaro, contra a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a líder indígena Sonia Guajajara, hoje ministra dos Povos Indígenas, quando do lançamento de uma campanha internacional que denunciava a destruição da Amazônia durante o governo de Jair Bolsonaro, em 2020. Heleno disse na época que “o site da Apib se associa a diversos outros, que também trabalham 24 horas por dia para manchar a nossa imagem no exterior, em um crime de lesa-pátria”.
Na entrevista que concedeu para seu livro chapa-branca editado pela Fundação Getulio Vargas (FGV), o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas, membro e um dos fiadores do governo Bolsonaro, disse a respeito de sua “visão sobre a Amazônia” que há “formas contemporâneas de imperialismo, movidas pelo grande capital, corporações, organismos internacionais e as ONGs”. Acusou ainda a imprensa brasileira, “guardadas algumas exceções”, de ter dado “cores dramáticas ao que denunciavam [as queimadas na Amazônia], amplificando as matérias advindas do exterior”. Alegou ainda uma suposta “perda da liberdade para agirmos em consonância com nossos interesses”.
Como se pode perceber, ao falar em “ingerência externa” versus “interesse nacional”, a “nova” inteligência militar assinada por José Múcio, ministro da Defesa do governo Lula 3, não tem nada de novo, poderia ter sido escrita hoje pelos bolsonaristas Villas Bôas e Heleno.
O texto da portaria de Múcio sobre a terceira principal “ameaça observada” é igualmente preocupante. Fala em “ações contrárias à Soberania Nacional, inclusive propaganda adversa e desinformação oriunda de outros Estados e/ou grupos antagônicos”. Aqui temos militares se imiscuindo em pilares fundamentais de uma democracia, como as liberdades de expressão e de imprensa. Fica claro que a “inteligência militar” pretende determinar, segundo critérios que desconhecemos, o que é ou não é “desinformação” ou “propaganda adversa”. Tais adjetivações deverão ser usadas para interpretar, por exemplo, a reportagem de um jornal estrangeiro sobre crimes ambientais na Amazônia.
Hoje o papel que o Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal (STF), premido por determinadas circunstâncias, se autoconcedeu sobre os temas da desinformação e das fake news já é bastante controverso e problemático. Mas ao menos, dentro de um processo normal de transparência, decisões judiciais são tornadas públicas e podem ser debatidas, apoiadas ou repudiadas. Em sentido oposto, o setor de inteligência é justamente o império do secretismo.
A terceira “ameaça” citada na portaria de Múcio são “agentes de perturbação da ordem pública, suas estruturas e áreas de atuação capazes de gerar distúrbios, impondo o emprego das Forças Armadas”. É bastante provável que os militares não se referem aos bolsonaristas e à extrema direita que exigiam um golpe de Estado antes e depois das eleições presidenciais de 2022. Estes tiveram o apoio tácito do comando das Forças Armadas, que não moveram um centímetro para retirá-los da frente dos seus quartéis, por exemplo. Mas, ainda que seja referência à extrema direita, devemos discutir se cabe às Forças Armadas, em um regime democrático, novamente empoderar o conceito do “inimigo interno” que a ditadura militar tão alegremente abraçou, com resultados terríveis do ponto de vista dos direitos humanos.
É importante entender que a listagem das “ameaças observadas” contida na portaria não fica parada no papel como uma mera reflexão. Ela servirá para moldar e direcionar o serviço de inteligência. “Identificá-las” é uma prioridade, diz o texto da portaria, assim como “aperfeiçoar o fluxo de produção de conhecimento sobre riscos, ameaças que dificultem ou impeçam a aplicação do Poder Nacional”, como está escrito no campo das “diretrizes no âmbito do sistema de inteligência de Defesa”.
O conceito do “Poder Nacional” foi definido pela Escola Superior de Guerra (ESG) – criada em 1949, sob inspiração do National War College dos EUA, com o objetivo grandiloquente de “formar elites pensadoras para encontrar soluções relativas aos problemas gerais do país” –, como “a capacidade que tem o conjunto de Homens e Meios que constituem a Nação para alcançar e manter os Objetivos Nacionais, em conformidade com a Vontade Nacional”, conforme está no volume 1 do Manual Básico da ESG de 2009.
E aqui o pulo do gato: tal “Vontade Nacional” é “entendida [pela ESG] como a interpretação pelas Elites dos anseios da sociedade nacional”. As Elites, com “e” maiúsculo, certamente incluem os militares, pois não. Tais conceitos extremamente complicados são repassados durante a formação educacional de todos os militares brasileiros. É uma tentação inequívoca de ditar os rumos do poder civil, o que novamente foge às atribuições constitucionais das Forças Armadas. Tal distorção está presente no golpe militar de 1964 e na quase tentativa de golpe de 2023, uma vontade de recuperar um “Poder Moderador” que só apareceu na Constituição de 1824, há quase 200 anos.
A máquina militar – formada pelos três “Centros de Inteligência” do Exército, da Marinha e da Aeronáutica – tomará medidas para colocar em prática a “nova” política assinada por José Múcio. Mas o que são e como funcionam esses setores? Recentemente a Agência Pública revelou que o Exército também detém o programa capaz de vigiar os passos de um cidadão nas ruas.
Não se sabe de forma independente nem mesmo o tamanho dessa máquina. Estima-se que a força de trabalho seja dez vezes maior que a da Abin, hoje com cerca de 600 oficiais de inteligência. Em maio passado, portanto já no atual governo, a Pública solicitou esses números aos Comandos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, mas jamais teve sua dúvida respondida. A Pública também solicitou tão somente o currículo dos três oficiais responsáveis pelos três centros. Também nunca houve resposta.
A nova política de inteligência substitui a primeira do gênero, lançada em junho de 2016 no contexto da remilitarização do governo federal a partir da chegada de Michel Temer à Presidência logo após o processo de impeachment que derrubou Dilma Rousseff. Estiveram à frente desse processo os generais Sérgio Etchegoyen, que comandou o GSI, órgão de inteligência no Palácio do Planalto, Joaquim Silva e Luna, que se tornou o primeiro militar a ocupar o cargo de ministro da Defesa desde a criação da pasta, em 1999, e especialmente o então comandante do Exército Eduardo Villas Bôas.
Como normalmente ocorre com tudo que se relaciona ao campo da inteligência, os meios de comunicação tradicionais não deram atenção à portaria de Múcio. No Brasil, há muito tempo a inteligência de Estado só é assunto público quando estoura algum escândalo, como esse último que envolve o uso, pela Abin, de um programa capaz de monitorar os passos de uma pessoa na rua. Conforme escrevi aqui na semana passada, a comissão do Congresso Nacional responsável por controlar as atividades de inteligência, nos últimos anos sob comando da direita e da extrema direita, reiteradamente tem voltado as costas para o assunto, omitindo-se no seu papel previsto na Lei 9.883, de 1999.
A rigor, não surpreende que Múcio tenha assinado tal portaria. Ele é um político criado na Arena, o partido de sustentação da ditadura militar, e depois ajudou a fundar seus sucedâneos, o PDS e o PFL, embrião do União Brasil. Hoje está no PTB, um baluarte do bolsonarismo. Toda a carreira política de Múcio foi na direita. Que um político com esse passado esteja à frente de uma pasta fundamental num governo considerado de esquerda (assim como foi ministro de Relações Institucionais no governo Lula 2) é uma daquelas ocorrências da política brasileira que só uma tese de doutorado poderia esclarecer. Boa sorte a quem tentar.
A nova política do governo Lula 3 entrou em vigor sem nenhuma discussão prévia ou esclarecimentos à sociedade civil. Nós, os civis que pagamos os salários, as pensões, os coquetéis e as compras milionárias das Forças Armadas, somos apenas informados pelo Diário Oficial a respeito de decisões previamente acertadas entre os próprios militares.