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Uma GLO envergonhada

Sem plano claro, governo Lula retira atribuição da PF e passa aos militares na tentativa de conter crise do Rio

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7 de novembro de 2023
18:06
Este artigo tem mais de 1 ano

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Não se passaram nem três dias depois de o presidente Lula anunciar que “enquanto eu for presidente não tem GLO [Garantia da Lei e Ordem]”, e o governo promulgou… uma GLO. 

Segundo o decreto presidencial, 3.700 militares do Exército, Marinha e Aeronáutica vão ter poder de polícia nos aeroportos de Guarulhos e do Galeão, nos portos do Rio de Janeiro, Itaguaí e Santos e nas vias de acesso, além de uma faixa de 2.300 quilômetros nas fronteiras. A GLO vai durar até maio de 2024. 

O decreto foi uma resposta à ação de milicianos no Rio de Janeiro, que incendiaram 35 ônibus, um trem e veículos de passeio em retaliação pela morte de Faustão, Matheus da Silva Rezende, da milícia “Bonde do Z”, a maior da zona oeste do Rio.

Há uma certa diferença, claro, entre as “GLOs” às quais se referia Lula – ocupações de favelas durante meses a fio, nas quais o Exército passa a controlar a segurança pública – e a atual, que limita a atuação dos militares a fronteiras de entrada no país, posição mais fiel à atribuição de “defesa”. E é louvável que Lula tenha decidido tirar de vez os militares das favelas (“Não quero as Forças Armadas na favela brigando com bandido”, disse). Este foi a marca do seu governo antes da Copa e da Olimpíada, aprofundado por Dilma e Temer, como apontei no meu livro Dano Colateral

Afinal, foi por conta dessa ilusão de que os militares são os únicos que conseguem conter situações de crise dentro do nosso território e efetivamente garantir a lei e a ordem que muitos amalucados seguidores de Jair Bolsonaro clamaram por um golpe de Estado em 8 de janeiro deste ano. 

Porém, a contradição entre o que disse o presidente e o que fez apenas 72 horas depois demonstra que nosso ordenamento jurídico não responde às nuances atuais do emprego das Forças Armadas, permitindo apenas a GLO e ponto final. O artigo 142, amarrado pela Constituição de 1988, no qual pesou a mão do general Leônidas Pires, apenas mascarou a “segurança interna” como “lei e ordem”. E discussões sobre sua reforma pelo Congresso estacionaram devido ao inegável fato de que este governo – assim como todos desde a redemocratização – não sabe o que fazer com umas Forças Armadas cuja principal marca continua sendo a mácula do golpismo histórico. Bolsonaro talvez tenha sido o presidente que mais soube usar isso, para seu proveito próprio. 

Por outro lado, a nova GLO demonstra que os militares seguem sendo empregados em situações em que não existe plano algum. A coisa está feia, chamem-se os militares. 

Lula anunciou que haverá “um comitê de acompanhamento integrado” dos ministros da Justiça, Flávio Dino, e da Defesa, José Múcio. Ficou a promessa de que eles apresentarão um plano de modernização de atuação da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Penal, Exército, Aeronáutica e Marinha. Ou seja: os militares voltaram a entrar no foco das discussões sobre segurança pública.  

Para entender se a medida sobre portos e aeroportos é efetiva, conversei com três especialistas em segurança pública do Rio de Janeiro, que foram unânimes em dizer: isso não tem a menor chance de dar certo. 

“É uma GLO envergonhada só nas ‘partes federais’ do Rio. No fim, é uma medida apenas cosmética”, diz Cecília Olliveira, diretora do Instituto Fogo Cruzado e jornalista com vasta experiência em cobertura do crime organizado fluminense. “Mais um plano sem plano”, conclui.  

Para Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), é “estranho” retirar o papel da PF nos portos e aeroportos para colocar as Forças Armadas. “Ainda não está claro o que soldados, sargentos e oficiais poderiam fazer, além de uma figuração cenográfica, em portos e aeroportos. É exatamente nessas áreas que mais se depende de investigação, inteligência e monitoramento de longo prazo, e não de presença de força física.” 

Ela avalia que o problema não é a entrada de armas longas, que não são fabricadas no Brasil, mas que “no Rio de Janeiro já circulam quantidades enormes de fuzis”. Experiências anteriores demonstram que apreensões de armamentos dependem de investigação: escutas, acompanhamentos de remessas financeiras, monitoramento de cargas. “Nunca vi apreensões relevantes ao acaso, abrindo malas ou contêineres aleatoriamente”, diz. 

Pablo Nunes, pesquisador do CESeC, lembra que na verdade um dos maiores problemas é justamente as armas provenientes do Exército que acabam indo parar nas mãos de criminosos. 

“Boa parte das armas em posse do crime são armas legais, vindas do paiol das Forças Armadas, das polícias ou de empresas de segurança privada. Então, é claro que dar atenção para a entrada ilegal de armas por meio de portos e aeroportos é importante, mas dar atenção às armas que já estão em território nacional parece ser uma medida urgente.” 

Para os três especialistas, a GLO passa longe de atacar o “x” da questão: os esquemas que alimentam há décadas a corrupção e a incompetência da polícia fluminense, em especial, as inúmeras alianças com o crime organizado, seja pelos “arregos” e extorsão, seja pelos assassinatos encomendados e a formação de milícias por policiais e ex-policiais. 

“Não vi até agora nenhum sinal de que o governo federal fará alguma coisa para estancar esse movimento – que é exatamente o que tornou o Rio um problema insolúvel”, diz Silvia Ramos.

Finalmente, a GLO tira o foco da ineficiência do governador Cláudio Castro, que demonstrou ser mais um governador que não manda nas polícias. E agora, com Flávio Dino às vésperas de ser indicado para o STF, parece que, mais uma vez, os ventos políticos empurraram os militares para um problema de segurança interna e para o centro da estratégia do governo. 

Algo que já vimos no passado, com resultados desastrosos. 

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