Crianças indígenas com desnutrição, comidas com insetos, doenças e habitações nada aclimatadas para a região amazônica. Essas foram as denúncias feitas pela população venezuelana refugiada, ex-trabalhadores humanitários e pesquisadores sobre a estrutura da Operação Acolhida, em Roraima, que abriga migrantes principalmente vindos da Venezuela. As denúncias foram ouvidas pela Agência Pública no local e fazem parte da segunda reportagem da série Segredos da Operação Acolhida.
A Operação Acolhida conta hoje com sete abrigos, sendo três deles voltados para a população indígena refugiada. Eles são administrados pela Agência ONU para Refugiados, a Acnur. Segurança, zeladoria e distribuição das refeições são feitas pelo Exército Brasileiro.
Já a comida, segundo a reportagem apurou no Portal da Transparência, é fornecida ao menos desde 2022 pela empresa Paladar Nutri. Segundo o próprio portal e informações confirmadas pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), a empresa RMP Romero também presta serviço direto de alimentação, contudo, nas cidades de Pacaraima e Manaus (AM).
Sob a responsabilidade da Organização Internacional para as Migrações (OIM), fica o Posto de Recepção e Apoio (PRA), um espaço onde os migrantes em situação de rua podem dormir à noite; e o Posto de Interiorização e Triagem, onde a população venezuelana recém-chegada tira a documentação de residência no Brasil. Nesse último espaço, parte das tarefas também é divida com outras agências humanitárias.
Estima-se que mais de 1 milhão de venezuelanos tenha passado pelos serviços da Operação Acolhida desde fevereiro de 2018, quando a ação teve início, ainda no governo do então presidente Michel Temer. Os dados são do Ministério da Justiça.
Por que isso importa?
- A Operação Acolhida, que recebeu cerca de 1 milhão de pessoas, é a maior operação de acolhida de migrantes da história recente do Brasil.
Crianças indígenas desnutridas e a comida que adoece
“No almoço e no jantar, às vezes, a comida chega com baratas, moscas e larvas”, disse Afonso Aztana (fictício), indígena venezuelano da etnia Warao, que vive no abrigo Jardim Floresta, da Operação Acolhida, administrado pela Acnur e pelo Exército Brasileiro.
Aztana contou à Pública que as crianças indígenas estariam doentes por conta da comida entregue pela empresa Paladar Nutri e distribuída pelo Exército Brasileiro todos os dias. Além disso, todas as queixas feitas aos militares sobre a alimentação servida seriam alvo de retaliação à população indígena abrigada no Jardim Floresta.
“Diarreia, febre, vômito, dor de cabeça e no corpo” foram os sintomas que as crianças apresentaram ao ingerir a comida fornecida pela Operação Acolhida, segundo o indígena Warao. À Pública, ele afirmou que havia casos de desnutrição de crianças.
Procurada pela reportagem, a empresa Paladar Nutri não respondeu até a publicação desta reportagem.
Segundo Aztana, as diferentes etnias que estão abrigadas convivem bem e, por vezes, preferem cozinhar o próprio alimento a nutrir-se do que é servido pela Operação Acolhida. “Aqui em Roraima nós compramos farinha triturada e comemos com peixe frito”, disse o Warao sobre um dos cardápios alternativos feitos pelos indígenas.
Os abrigos indígenas da Operação Acolhida em Boa Vista e Pacaraima são os únicos que contam com fogões a lenha, pela preferência dos abrigados em fazer suas próprias comidas típicas em vez de se alimentarem com as marmitas distribuídas pelo Exército.
“Se vocês [militares] estão nos trazendo essa comida e não querem cozinhar como deve ser, traga-nos a comida crua e nós mesmos vamos cozinhar”, disse Aztana em tom de crítica ao que é oferecido pela Operação Acolhida.
Luana Pedroso (fictício), 31 anos, ex-trabalhadora humanitária de uma das ONGs vinculada à Acnur, contou que, embora os abrigos indígenas tenham mais espaço para debater insatisfações, a comida ainda é alvo de críticas.
“[A empresa fornecedora e o Exército] Não conseguem fornecer uma alimentação que seja, de fato, a alimentação que eles estão acostumados. Você tem, por exemplo, casos de desnutrição com maior percentual de ocorrência em abrigos indígenas do que não indígenas”, disse a ex-trabalhadora.
“Por exemplo, eles adoram fazer sopa com peixe. Peixe frito, peixe na sopa […] Só que eles não conseguem comprar o peixe. É uma questão de não conseguir realmente ter dinheiro para comprar o que eles estão acostumados a comer”, completou Pedroso.
A professora Márcia Maria, da Universidade Federal de Roraima (UFRR), aponta que o contrato da Operação Acolhida prevê alimentação específica para crianças indígenas. “Desde o início da operação, [há] um índice alto de crianças desnutridas no processo de abrigamento, porque elas não conseguem comer as mesmas comidas dos adultos. Por exemplo, o acréscimo de frutas, de iogurte, de comidas voltadas para a idade das crianças, não existe essa separação e essa adequação”, criticou.
A professora cita, também, que o contrato previa um cardápio variado e que respeitasse a cultura venezuelana. No entanto, “é sempre aquele menu clássico: arroz, feijão, macarrão, farofa e, às vezes, uma salada e um tipo de proteína. O que varia de segunda a sexta é a proteína, um dia carne vermelha, outro dia frango, muito raramente tem peixe ou sardinha”, disse.
A queixa sobre a comida é compartilhada também por quem vive no Rondon 1, o maior abrigo da Operação Acolhida, em Boa Vista. Segundo María Carmen (fictício), cuja idade não será revelada a pedido dela, pessoas têm ficado doentes por conta da forma como a comida é armazenada e distribuída para a população.
“A comida é muito triste! As crianças têm problema de desnutrição, por não a comerem”, contou ela, em anonimato, por receio de sofrer represália dos militares do Exército. Ela disse, também, que quem tem a possibilidade às vezes “compra ou come na rua”, para evitar as marmitas servidas pela Operação Acolhida.
A equipe de comunicação social da Operação Acolhida e o MDS responderam por meio de nota que os cardápios levam “em consideração as diferentes etnias e seus hábitos alimentares”. “Há um acompanhamento contínuo da saúde da população abrigada com ações preventivas e, sendo diagnosticado algum caso de desnutrição, são adotadas as medidas para a reversão da situação por profissionais capacitados”, respondeu a operação sobre a denúncia das crianças desnutridas. Leia a nota na íntegra.
Venezuelanos dizem que ficam constantemente doentes devido à estrutura dos abrigos
As camas enfileiradas em um espaço protegido por grades e sem paredes escancaram uma das principais queixas dos venezuelanos refugiados e migrantes dentro do PRA, em Boa Vista: os constantes resfriados entre crianças, adultos e idosos que utilizam o espaço todas as noites.
A reportagem viu nos arredores da Rodoviária Internacional de Boa Vista, onde está situado o PRA, inúmeras famílias aguardando o horário para poderem acessar o espaço de acolhimento. Uma delas era a de Victor Cotañera (fictício), de 30 anos, a esposa, de 28, e os filhos de 1 e 3 anos.
“Onde dormimos é um espaço sem paredes. Se chove com vento, nos molhamos”, contou o patriarca. A situação é suportada porque, em breve, ele e a família serão interiorizados para Santa Catarina, onde têm familiares.
“Quando chove, pelo fato do espaço ser muito aberto, […] as crianças recebem todo o vento da chuva e acaba que, se pegam uma gripe, elas pioram”, disse Ana Miranda (fictício), 37 anos, que se abriga todos os dias no PRA com o marido de 49 anos e a filha, de 17.
Ana Miranda, o marido e a filha conseguiram uma cama fixa dentro do PRA, que julgam ser “uma área mais cômoda”, com camas maiores. Outro benefício é que não precisam deixar o espaço tão cedo como os outros acolhidos, às 6h. Eles podem estender a estadia até 11h, depois do café da manhã, e das 12h às 14h durante o almoço.
No entanto, as famílias optam por ficar nas ruas sob sombras frescas, pois o calor sob a tenda, às vezes, é insuportável. Boa Vista está em uma zona equatorial, onde as temperaturas podem chegar aos 40 ºC durante o dia.
Vinda do sul da Venezuela há um ano, María – que será identificada apenas com o primeiro nome –, de 37 anos, prefere dormir na rua com os seus quatro filhos menores de 18 anos. “Eu durmo na rua, porque não gosto do calor e dos mosquitos”, disse ela ao referir-se à falta de paredes do PRA e ao calor das casas dentro dos abrigos.
“A OIM mantém ainda atendimentos regulares de saúde para a população do PRA com sua equipe de profissionais e com apoio da sua Unidade Móvel de Saúde, que permite a dispensação de medicamentos para a população”, disse por meio de nota. “Quando necessário, a organização também faz o encaminhamento para atendimento na rede local de saúde”, completou. Leia a nota na íntegra.
O MDS e a Operação Acolhida negaram que a população fique doente no PRA em decorrência da estrutura: “A coordenação de saúde da Operação Acolhida informa que não há correlação sobre doenças decorrentes de venezuelanos molhados em abrigos”, disse em nota.
No calor da Amazônia, abrigos batem 50 ºC
“Mediante a aflição da criança, que estava com assaduras visivelmente profundas, nós colocamos um medidor de temperatura no interior da carpa [unidade habitacional utilizada nos abrigos] e esse medidor apontou 50 ºC”, contou a professora Márcia Maria, durante um trabalho de pesquisa dentro de um dos abrigos da Operação Acolhida, em novembro de 2020.
A pesquisa era conduzida por Márcia Maria e seus orientandos do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Fronteiras (Geifron), do Programa de Pós-Graduação em Sociedade de Fronteiras da Universidade Federal de Roraima (PPGSOF).
De acordo com a professora, os alojamentos dentro do abrigo seguem o padrão internacional da Acnur, importado de países com temperaturas mais baixas. As carpas, como são chamadas, são feitas de acrílico e revestidas com uma manta térmica para reter o calor. No entanto, nos abrigos da Operação Acolhida, as habitações foram modificadas e minijanelas foram incorporadas para aumentar a circulação de ar, o que não é suficiente para refrescar os abrigados das altas temperaturas da Amazônia, segundo os relatos.
Durante a visita aos abrigos, um grupo de pesquisadoras da Universidade Federal do Pernambuco (Ufpe) presenciou famílias com bebês dormindo do lado de fora das carpas, por conta do forte calor.
“Na caminhada pelo abrigo, havia colchões no chão, por cima das pedras de brita, outro fator de concentração de calor. O motivo era o calor de dentro da carpa, que impossibilitava que essas crianças dormissem dentro delas”, disse a pesquisadora Sofia Zanforlin.
“As unidades habitacionais onde vivem os venezuelanos abrigados são definitivamente incompatíveis com o clima tropical-equatorial de Roraima. Essas estruturas são feitas de material plástico e possuem péssima circulação por serem locais baixos, apertados e com uma quantidade ínfima de janelas”, destacou a também pesquisadora Julia Afonso Lyra.
Segundo Ana Carolina Gonçalves Leite, outra integrante do grupo de pesquisadoras da Ufpe, “outros modelos, de madeira, que tomam como repertório a casa popular regional, chegaram a ser testados, mas não foram adiante supostamente pela necessidade de reaproveitar as tendas ou carpas que o Acnur já possuía”.
Gonçalves pondera, no entanto, que não é possível “ter certeza se o custo logístico para trazer essas tendas para o Brasil é de fato menor do que a fabricação local das casas de madeira”.
O MDS afirmou que “as carpas seguem um padrão internacional. A Operação Acolhida, a fim de melhorar as condições dos migrantes e refugiados, realizou adequações nas carpas, como a construção de janelas e aberturas para melhor ventilação e diminuição da temperatura ambiente”.
A Acnur optou por não responder a nenhum dos questionamentos da Pública.