“O primeiro julgamento foi horrível, espero que não seja assim”, dizia Luciana dos Santos Nogueira, viúva do músico Evaldo Rosa, morto após ser atingido por nove tiros de fuzil disparados por militares do Exército, em 7 de abril de 2019, no Rio de Janeiro. Ela fala com o olhar fixo em seu filho, Davi Bruno, do outro lado da mesa, enquanto jantavam às vésperas da retomada do julgamento do assassinato de seu esposo no Superior Tribunal Militar (STM).
Ela lembrou que durante as audiências realizadas em 2021, na primeira instância da Justiça Militar, o passado do seu marido foi questionado: a defesa chegou a aventar a possibilidade que ele tivesse conexão com o crime. “Foi muito ruim o que falaram do Duda, o que falaram de mim, foi horrível”. Além disso, ela contou à Agência Pública que foi acusada de não ter querido socorrer o marido.
No julgamento em primeira instância, oito militares haviam sido condenados a penas de 28 a 31 anos e sete meses de prisão. Eles recorreram e seguem em liberdade.
O julgamento no STM será retomado nesta quarta-feira, 18 de dezembro, depois de um polêmico voto do ministro relator, o tenente brigadeiro do ar Carlos Augusto Amaral Oliveira, acompanhado pelo revisor. Ele afirma que os soldados agiram por legítima defesa putativa, ou imaginária, pois acreditavam estar sob fogo, e reduziu as penas para três anos em regime aberto, pela morte de Luciano Macedo, catador de materiais recicláveis, que tentou ajudar Evaldo. Decidiu ainda que eles devem ser absolvidos pela morte de Evaldo Rosa.
Com a expectativa de um tratamento mais respeitoso, Luciana e Davi voaram do Rio de Janeiro a Brasília para acompanhar a conclusão do caso, que será retomado hoje no Superior Tribunal Militar.
“Hoje tem sido um dia de muita ansiedade porque é como se eu estivesse voltando lá no início de tudo o que eu vivi, de tudo o que eu passei”, diz, o olhar firme. “O julgamento está sendo feito pelos próprios militares, que com toda certeza todos nós sabemos que acaba sendo favorável para eles. Mas ainda me resta um pouquinho de esperança”.
Ela disse não ter muita confiança na Justiça Militar após o início do julgamento em fevereiro – que foi “muito doloroso”, nas suas palavras.
“Eu entendo que, como é julgado entre eles, que eles queiram abaixar um pouco a pena. Mas que seja justo”, diz Luciana. “Eles tiram a vida de uma família, matam uma pessoa do bem e cair para três anos ou para três anos em regime semi-aberto. que não vão deixar esses rapazes saírem pela porta da frente”.
Luciana e o filho estavam no carro que foi fuzilado pelos militares em 7 de abril de 2019. O carro foi atingido por 62 tiros. A família passava por uma travessa próxima à favela do Muquiço, no bairro de Guadalupe, no Rio de Janeiro, quando foi alvejado por tiros de fuzil do Exército Brasileiro. O motorista, o músico Evaldo Rosa, morreu na hora. O catador de recicláveis Luciano Macedo, que tentou ajudar Evaldo, também foi fuzilado pelo Exército. Morreu 11 dias depois.
Luciana contou à Pública que, embora tenha se mantido forte pelo filho, ela também tem traumas desde aquela tarde. “Aquele dia, eu costumo dizer que eu não vou esquecer nunca mais. Um dia eu vou levar comigo até o resto da minha vida”, diz.
“Tenho meus traumas até hoje. Eu também tenho meus traumas, tem seus altos e baixos, tem dias que eu estou bem, tem dia que eu não estou bem. Eu também tenho meus traumas, tenho medo também”. O filho, entretanto, é quem mais sofre as sequelas. “Meu filho, hoje em dia uma criança que tem um sorriso sem brilho, uma criança que tem seus altos e baixos”, diz ela.
Para ela, um resultado positivo significaria “ter a certeza de que o meu esposo não vai ser mais uma estatística”. Questionada sobre o porquê faz questão de estar nesse julgamento, ela responde: “porque eu acredito que eles vão se colocar no meu lugar. Acredito que vão se sensibilizar. Eu quero estar frente a frente com eles”, completa
Denúncia à ONU
Em 6 de dezembro, a família enviou, junto a entidades de direitos humanos, um apelo à ONU pedindo que a organização recomende ao Estado Brasileiro uma investigação imparcial e conduzida por um órgão autônomo, “alheio às forças de segurança e instituições públicas envolvidas na operação”.
A denúncia, obtida pela Pública, aponta “a falha do Estado em promover a responsabilização pela morte e omissão de socorro de civis, somada ao deslocamento da competência para justiça castrense, representa uma grave ameaça à independência do judiciário e evidencia a ausência de controle das ações de segurança, culminando na reprodução da letalidade do Estado brasileiro”.
Segundo o documento, a “reiterada situação de violência praticada por mais de 80 tiros” evidencia o tratamento dirigido a pessoas negras, que se estende “para além da vítima a todos os seus familiares, o que se traduz nas falas da viúva do músico, Luciana dos Santos Nogueira”. O documento aponta que os depoimentos comprovam que não houve troca de tiros, “e que, ainda assim, chamaram os vitimados de ‘bandidos’, em uma objetiva demonstração de racismo”. Consta, ainda, que a atuação do Exército foi “arbitrária” e “por meio de perfilamento racial e territorial”.
“A condução na investigação e no julgamento demonstra a violenta repressão aos negros, aos pobres e aos trabalhadores pelo Estado brasileiro em contraste a uma leniência e tolerância às violências praticadas por agentes estatais, especialmente militares. A violência e a letalidade policial é uma das faces mais atrozes do racismo estrutural e sistêmico de um país”, conclui o apelo.
A denúncia é assinada pelas ONGs Conectas Direitos Humanos, Instituto de Defesa da População Negra, Instituto da Mulher Negra e Justiça Global.Algumas semanas antes, o relator do caso tinha negado a possibilidade das organizações participarem do caso como amicus curiae porque, segundo ele, não há “repercussão social” no caso, que caberia apenas às pessoas envolvidas.
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