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“Os ogãs saíram dos terreiros e foram tocar na bateria. As baterias tocam para os orixás. A macumba é causadora maravilhosa de toda essa procissão, essa inteligência negra periférica.” A frase de Milton Cunha reflete sobre um fenômeno deste Carnaval: 11 das 12 escolas do Grupo 1 do Rio de Janeiro trazem santos de religiões de matriz africana em seus sambas-enredos. “Escola de samba é macumba, gostem ou não”, provocou o carnavalesco.
Se esse sempre foi um componente da escolas de samba, de corpo e alma negras, neste ano chama atenção uma maioria de enredos baseados em mitologia, religião e heróis negros, além daqueles que saúdam os orixás em batuques e letras. Se é comemoração, resgate ou afirmação da religiosidade africana, como branca e paulista, não tenho condições de dizer.
Mas arrancar palmas na avenida significa muito no Brasil de hoje, em que terreiros de candomblé (e casas de reza indígenas) são destruídos pela violência intolerante – e racista – de gente que se diz cristã.
Vejo nessa escolha quase unânime das escolas de samba mais famosas do mundo a celebração da ancestralidade negra no povo e na cultura brasileira. Talvez mais um alerta para a discussão equivocada de “identitarismo”; como se valorizar a contribuição decisiva da cultura negra e reconhecer – e combater – o racismo estrutural como passivo tricentenário dos brancos não fosse imprescindível para a democracia e igualdade de direitos em um país com a história que tem o Brasil.
Também não vejo contradição em torcer por esse Oscar, em pleno Carnaval, consagrando Ainda estou aqui, a obra que trouxe a ditadura para a ordem do dia. Sim, trata-se de uma família abastada e branca duramente atingida pelo aparelho repressivo gestado no golpe de Estado de 1964. Rubens Paiva era um engenheiro e deputado com privilégios de classe e cor, que foi cassado, exilado e, por fim, torturado e assassinado por ajudar amigos perseguidos ou no exílio.
O que demonstra que ninguém estava a salvo daquilo que depois o general Golbery chamaria de “monstro” – o aparelho, criado por militares e civis (com financiamento e empresários e até apoio material de jornais), de espionagem, perseguição, prisões ilegais, tortura, assassinato e desaparecimento dos corpos daqueles que resistiam.
Por isso, acredito eu, que o filme de Walter Salles sobre os Paiva traz tanta empatia. Poderia acontecer com qualquer família – e aconteceu com várias, muitas dessas histórias estão disponíveis para quem se interessar em conhecer.
Em uma ditadura, o privilégio de decidir quem morre e quem vive está com eles – não há instituições, Justiça, nem normalidade de qualquer espécie. Isso fica claro também na trama golpista liderada por Jair Bolsonaro com os generais palacianos. Como todos sabem, havia um plano para assassinar um ministro do Supremo Tribunal Federal, um presidente e um vice-presidente eleitos. Sem limites éticos ou legais.
Vejo como feliz coincidência – será o espírito do Tempo? – este Carnaval de reconhecimentos históricos e culturais quando celebramos a força das instituições democráticas, capazes de desnudar, julgar e punir golpistas pela primeira vez em nossa trajetória de país injusto, dominado pelas elites políticas, econômicas e, por que não dizer, pelos homens brancos. Mais do que motivo pra gente sambar com vontade neste Carnaval.
Se a cerveja está cara e vai esquentar rápido nesse calor de fim de mundo, os bloquinhos vão estar cheios de irreverência e humor, os desfiles, cobertos de majestade e excelência, e a democracia brasileira, revigorada, tentando acertar o ritmo com a ajuda dos orixás.
Muito axé e água fresca para todo mundo!