De batina branca e crucifixo pendurado no peito, dom Hélder Câmara se diverte no meio do frevo. Ele dá as mãos aos foliões do Bloco da Saudade, uma das agremiações líricas mais tradicionais do Recife (PE). O coral feminino canta os versos de “O bom Sebastião”, um frevo composto por Getúlio Cavalcanti em homenagem ao folclorista Sebastião Lopes, que se tornou um dos hinos do Carnaval pernambucano.
“Quem conheceu Sebastião de paletó na mão e aquele seu chapéu/ por certo está comigo crendo que ele está fazendo um carnaval no céu”, diz a música. O arcebispo de Olinda e Recife, já idoso quando a cena foi gravada, em 1989, tem os cabelos brancos cobertos por confetes. No vídeo, que viraliza todos os anos por volta do Carnaval, dom Hélder aparece sorrindo na folia. Ele olha para o céu embalado pelo frevo e parece transcender, seus olhos se enchem de lágrimas.
A cena aconteceu na frente da Igreja das Fronteiras, no bairro da Boa Vista, centro do Recife. A antiga residência do religioso hoje exibe um acervo em sua homenagem. Todos os anos, quando os dias de Momo se aproximavam, as missas que ele celebrava aos domingos terminavam de um jeito diferente. Os blocos iam até a igreja para render homenagens ao Dom e lhes pedir sua bênção. E o frevo dominava o pátio em frente ao templo.
Dom Hélder, chamado de “Dom da Paz” e “Irmão dos Pobres”, é reconhecido internacionalmente por sua vida devotada à defesa dos direitos humanos, que lhe rendeu quatro indicações ao Nobel da Paz – até hoje, o único brasileiro com essa quantidade de indicações. Mas sua relação pouco ortodoxa com o Carnaval e com a cultura popular é menos famosa.
Se para a tradição católica e cristã o Carnaval é “festa da carne” e do pecado, para dom Hélder, era a genuína “alegria popular”. Foi assim que ele descreveu a festa em uma das suas colunas na Rádio Olinda AM, chamadas “Um olhar sobre a cidade”. Na crônica radiofônica de 1 de fevereiro de 1975, dizia:
“Ninguém se espante ouvindo-me, neste programa, comentar Carnaval e, até hoje de manhã, ouvindo-me aludir a letras carnavalescas que o povo canta […] O Carnaval é a alegria popular. Direi mesmo uma das raras alegrias que ainda sobram para a minha gente querida. Peca-se muito no Carnaval? Não sei o que pesa mais diante de Deus: se excessos, aqui e ali, cometidos por foliões, ou farisaísmo e falta de caridade por parte de quem se julga melhor e mais santo por não brincar o carnaval. Brinque, meu povo querido! Minha gente queridíssima. É verdade que na quarta-feira a luta recomeça, mas ao menos se pôs um pouco de sonho na realidade dura da vida!”
A postura de dom Hélder é bem diferente entre religiosos cristãos, sobretudo em tempos como os atuais, onde discursos de ódio são recorrentemente propagados por grupos católicos e evangélicos fundamentalistas, observa Filipe Domingues, doutorando em ciências da religião na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), que pesquisa o religioso há 20 anos. “Ele não só diz que Carnaval não é pecado, vai além: incita o povo a brincar. Ele via Deus no povo e entendia o Carnaval como a alegria do povo, um momento que coloca um pouco de sonho na dureza da vida”, diz.
Segundo o pesquisador, há “grupos que pregam que o próprio diabo se materializa para brincar fantasiado no Carnaval”. Essa concepção, diz, tem origem no preconceito e na demonização de religiões afro-brasileiras e indígenas, ou seja, no racismo religioso. “É, inclusive, um grande erro hermenêutico [de interpretação] porque coloca na religião dos outros referências que não existem, uma vez que não existe a figura do demônio em religiões como o candomblé, por exemplo”, explica.
Ver a alma do povo refletida no frevo
O vídeo com o Bloco da Saudade não é o único registro da relação de admiração de dom Hélder com o Carnaval e do seu reconhecimento de que essa era uma alegria necessária ao povo brasileiro. Entre as dez coisas que mais amava fazer no Recife, ele gostava de “ver a alma do povo refletida num frevo”, como registra uma circular interconciliar [espécie de cartas enviadas à família de fé] de 1964.
Ele, que aliás nasceu em 7 de fevereiro no Ceará, nas prévias carnavalescas, morou no Rio de Janeiro antes de se tornar arcebispo de Olinda e Recife. Lá, escreveu um poema chamado “Como te entendo, a minha gente!”, em 1953: “Em plena favela – sem ar, sem luz, sem esgoto, com lama, suor e sangue – o estrangeiro esbarrou no carro alegórico do Carnaval que findou. Como esperar que entendesse se lhe falta samba nas veias e o amor pela querida gente cuja alegria quase exclusiva é o Carnaval?”.
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Filipe Xavier, historiador e funcionário do Instituto Dom Hélder Câmara (IDHEC), diz que o arcebispo pode ser compreendido por vertentes religiosas e políticas e como militante dos direitos humanos, mas também pela atuação cultural e artística. “Ele era um poeta”, afirma. O acervo do IDHEC guarda, segundo Filipe, mais de 7 mil meditações do Dom, muitas delas poemas. Há, inclusive, um texto que ele escreveu para uma sinfonia, musicada pelo padre suíço Pierre Kaelin, que seria interpretada pela cantora Fafá de Belém anos depois.
“A ‘Sinfonia dos dois mundos’ é uma reflexão sobre um mundo dividido, onde dom Hélder chamava atenção que a polarização não era mais a Guerra Fria, e sim a polarização entre o Norte e o Sul global”, explica o pesquisador. “Era um mundo dividido onde ele via um diálogo possível”, acrescenta. “Essa a obra dele é muito atual, atemporal, num momento de tantos discursos de ódio e radicalismo”, considera.
O arcebispo era próximo a artistas e costumava citar músicas populares em suas falas. Em 1976, escreveu sobre uma música de Chico Buarque: “Quem conhece casais desentendidos, ele pra lá, ela pra cá? Os dois se atacam, os dois se acusam, mas lá no íntimo do íntimo, os dois se amam e se esperam… Ah! Se um dia a ‘Valsinha’ de Chico Buarque se tornasse realidade!”. A música popular era, segundo dom Hélder, mais poderosa do que um artigo científico muito bem documentado, porque impregna na cabeça, como dizia no livro O deserto é fértil, um dos títulos de sua autoria.
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O Dom da resistência
No Rio de Janeiro, onde foi arcebispo auxiliar, dom Hélder Câmara ajudou a criar a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 1952. Dedicou-se às pastorais sociais da Igreja e fundou a Cruzada de São Sebastião, que desenvolvia edifícios populares próximos a favelas. Esteve também na Ação Católica, que integrava as juventudes operária católica e universitária católica.
Ele foi nomeado arcebispo de Olinda e Recife duas semanas antes do golpe militar de 1964, por quem seria perseguido e a quem faria oposição. Depois de ter escrito um manifesto de apoio à Ação Católica Operária (ACO), foi acusado de comunista, proibido pela ditadura militar de se manifestar publicamente e de frequentar universidades. Era chamado de “bispo vermelho”.
Sobre a acusação, dizia: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista”.
A frase famosa foi citada pelo papa Francisco em sua bênção de Natal na Cúria Romana. O papa argentino, inclusive, foi amigo de Gustavo Gutiérrez, que criou a teologia da libertação no momento em que a América Latina enfrentava regimes ditatoriais. Defendida por domHélder, a abordagem teológica que prega a libertação dos povos oprimidos foi condenada pelo Vaticano em 1984.
Dom Hélder criou mais de 500 Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que eram destinadas à propagação da fé, mas também desempenharam um papel importante na resistência à ditadura. Durante os anos de chumbo do regime, os meios de comunicação brasileiros foram proibidos de mencionar seu nome. Assim, foi falar no exterior.
De fora do Brasil, ele denunciou as torturas do regime durante discurso em Paris, em 1970, onde falou para uma multidão. Um documento da Presidência da República na época reportava sua “pregação anti-brasileira” na França e na Itália,“denunciando supostas sevícias e torturas de presos políticos”.
Por quatro vezes, foi indicado ao Nobel da Paz, mas sua candidatura foi boicotada pelos militares. Um dossiê apresentado pela Comissão Estadual da Memória e Verdade em Pernambuco mostra correspondências trocadas entre autoridades no período de 1970 a 1973, com sucessivas indicações do arcebispo ao prêmio e manobras do governo brasileiro para derrubar sua candidatura comprovadas em documentos do Itamaraty.
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“Invocação à Mariama”
Durante seu episcopado, dom Hélder Câmara criou várias pastorais sociais, como a pastoral familiar, dos jovens do meio popular, dos presidiários e das prostitutas. Ele se aposentou em 1985, ano em que eu nasci, mas antes disso me batizou sem saber.
Em 20 de novembro de 1981, ainda na ditadura, realizou a Missa dos Quilombos, na praça do Carmo, bairro de Santo Antônio, no centro do Recife. A celebração, da qual o arcebispo era anfitrião, denunciava o racismo e foi acompanhada por uma multidão. Tinha Milton Nascimento como cantor, acompanhado de um coral de jovens e crianças negras, e participação de outros religiosos como dom José Maria Pires, apelidado Dom Pelé ou Dom Zumbi, e dom Pedro Casaldáliga, célebre nome da teologia da libertação e da defesa dos direitos humanos.
“Estamos tomando o bom hábito de pedir perdão de público e tentar, com isto, eliminar alguns desentendimentos, reconhecendo certos erros. A Igreja já pediu perdão aos judeus, aos índios e, agora, será a vez do negro. Um dia ainda pediremos à mulher”, disse dom Hélder à imprensa na época.
Os cartazes do evento traziam uma mão preta segurando uma cruz, como um punho cerrado. Meu pai, que esteve na missa, contou que se lembra da cavalaria militar que cercava o pátio. Os militares chegaram a alterar os cartazes para que a cruz parecesse uma foice e um martelo. Mas o evento foi realizado sem interrupções e dom Hélder leu seu poema-oração “Invocação à Mariama”, que daria meu nome alguns anos depois.
Em um trecho, o arcebispo diz: “Não basta pedir perdão pelos erros de ontem/ É preciso acertar o passo de hoje sem ligar ao que disserem/ Claro que dirão, Mariama, que é política, que é subversão/ É Evangelho de Cristo, Mariama ”.
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