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Outro dia, o colega Rafael Oliveira, aqui da redação, compartilhou no grupinho de zap da nossa editoria de clima uma matéria com o título: “‘Era negacionista sobre as mudanças climáticas, mas hoje não sou mais’, diz presidente da Farsul”. Cliquei empolgada para ler. Não é todo dia que a gente vê uma liderança do agronegócio fazendo esse tipo de declaração. Parte do setor tende a negar o problema e se esmera em promover desinformação sobre o aquecimento global.
A origem do entrevistado também me chamou atenção. Farsul é a Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul. O estado é o que mais sofre no Brasil com a alternância de eventos extremos, ora com muita seca, ora com muita chuva. Mas que também produziu alguns dos congressistas mais afoitos em enfraquecer as legislações ambientais.
A entrevista com o presidente da entidade, Gedeão Pereira, foi publicada no Jornal do Comércio, veículo online gaúcho, no dia 10 de março, poucos dias depois da divulgação de que o Produto Interno Interno Bruto (PIB) da agropecuária caiu 3,2% em 2024, em relação a 2023. Principalmente por causa da crise climática, que provocou uma estiagem severa em boa parte do país, além das trágicas chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul em maio do ano passado.
Pereira começa bem. Logo no início da entrevista, ele diz a frase que serviu de título à reportagem, parte de um caderno especial sobre a realização da Expodireto Cotrijal, uma feira anual do agronegócio gaúcho. “Eu era negacionista sobre as mudanças climáticas, mas hoje não sou mais. Acho que realmente mudou. Agora nós temos que mitigar os efeitos. Nós realmente estamos vivendo uma mudança climática”, afirmou.
A conscientização ao maior problema que temos a enfrentar como humanidade, porém, não dura até o segundo parágrafo. “Se nós podemos interferir nela ou não, é outra conversa. Quanto a isso eu sou bastante cético: nós humanos, para mexer em mudança climática, temos que voltar quase que para a idade das cavernas. O automóvel não ia poder circular mais, o ônibus, nem o caminhão, nem o trator. É impossível. Teria que mudar todo o nosso formato de energia”, disse na sequência.
E emendou: “Mas acho que tem uma alteração climática sim, porque acumulamos quatro secas e uma catástrofe de excesso de água no meio. Então, realmente, nós temos que mitigar tudo isso através desse processo de irrigação”.
Logo depois, o bom senso vai às favas e ele começa a reclamar da exigência de processo de licenciamento ambiental para a implantação de mecanismos de irrigação, do Código Florestal, de ambientalistas. Basicamente zera o bingo do ogronegócio.
A repórter ainda tenta argumentar, ao perguntar se, diante das alterações climáticas que têm gerado a estiagem e as enchentes, seria aceitável flexibilizar as leis ambientais. Se não seria o caso de endurecer essas leis. Pereira discorda. E parte em defesa de mais irrigação.
“Eu sou agricultor e pecuarista e água é riqueza, é vida. Na minha propriedade eu observo a quantidade de água que tenho e o enriquecimento da fauna que se beneficia do aumento da água, além das plantas. Se tem irrigação, aumenta a base alimentar, e quando ela aumenta, os animais aparecem para se alimentar. Tu enriqueces o meio ambiente. Eu não sei porque que esses ambientalistas travam tanto esse tipo de desenvolvimento, é uma questão absurda”, respondeu.
Mais para a frente, afirma que “a orizicultura se desenvolveu sem licenciamento ambiental”, em referência aos produtores de arroz, tradicionais no estado. “Eles simplesmente chegavam lá e faziam os açudes. Depois que criaram essa legislação toda, travou tudo. Simplesmente travou tudo. Hoje não temos mais essa liberdade, então, a irrigação vai a passo de tartaruga.”
Pois é…
Vale a pena se debruçar um pouco sobre essas respostas. Antes de mais nada, é ótimo que uma liderança do agronegócio entenda que as mudanças climáticas são a nova realidade (até porque ela está batendo na porta dos produtores rurais todos já há algum tempo).
Mas Pereira repete nessa entrevista um comportamento que vem aparecendo entre outras vozes proeminentes do agronegócio. Um movimento de deixar de negar o problema, admitir que ele existe, mas colocar o setor apenas como uma vítima que precisa de socorro – como um libera-geral da irrigação, mais seguro rural, mais crédito etc. Escrevi sobre isso no ano passado na coluna “O agro quer fazer um rebranding”.
Só que achar que não há nada que a gente possa fazer para conter as mudanças climáticas e que a única solução para o agronegócio é expandir a irrigação é um erro tremendo.
Primeiro porque, se o aquecimento global não for contido, não há irrigação que faça milagre. Até porque água não se cria, né? Quanto mais quente o planeta, mais deve se aprofundar o processo de seca pelo qual passa o país. Nesse cenário, não vai ter de onde tirar água para fazer irrigação. No mínimo, é de esperar um aumento de conflito pelo recurso.
E a irrigação intensiva já está ameaçando diminuir a oferta de água no Brasil. Uma reportagem publicada em fevereiro no site da Agência Fapesp analisou algumas pesquisas recentes que indicam que a superexploração de águas subterrâneas está comprometendo a vazão dos rios brasileiros. Um dos estudos mostrou esse impacto na bacia do rio São Francisco e na região do Matopiba (que abrange os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), muito dependentes dessas águas para irrigação do agronegócio.
O trabalho, publicado na revista Nature Communications, apontou que, na bacia do São Francisco, 61% dos rios analisados mostraram potencial de perda de fluxo de água para o aquífero, principalmente por causa da irrigação.
A reportagem lembra um outro estudo, de 2021, que alertou para a existência de 2,5 milhões de poços tubulares no Brasil e que mais de 88% deles eram ilegais, sem licença ou registro para bombeamento. “O volume de água bombeada, da ordem de 17,6 bilhões de metros cúbicos por ano, seria suficiente para atender toda a população brasileira, mas era usufruído por menos de 20% da população”, aponta a Agência Fapesp.
Pereira parece também ignorar que a agropecuária tem uma boa parcela de responsabilidade pela emissão dos gases que causam o aquecimento do planeta. No Brasil, o desmatamento é o primeiro contribuinte, e a agropecuária, o segundo. Isso sem contar o fato de que a maior parte do que é desmatado na Amazônia é convertida, depois, para o agro. Mas, mesmo considerando apenas as emissões diretas do setor, tem muita coisa, sim, que o setor pode fazer para mitigá-las.
E não, não vamos voltar para a idade das cavernas se adotarmos essas medidas. O que nos coloca em risco de retroceder é um colapso climático que vai destruir todas as condições do planeta de manter a vida como a conhecemos.
Aliás, aproveite que chegou até aqui e já escute o episódio desta semana do nosso videocast, o Bom Dia, Fim do Mundo, que fala um pouco sobre o risco da mudança climática para a nossa segurança alimentar.