Sentados em velhos bancos de madeira em um salão quase no escuro, sem velas disponíveis, uma dúzia de líderes camponeses de El Porvenir, um bairro na periferia de Celendín, no estado de Cajamarca, decide transferir a reunião para a casa de seu presidente, Eduar Rodas Rojas. Ali, a cinco quarteirões de distância, uma única lâmpada incandescente ilumina a sala de 20 metros quadrados, com chão de terra batida, sem móveis.
“Nós não precisamos de luz, os geradores são suficientes para nós”, diz Rodas, apoiado pelos colegas. Em círculo, os ronderos, como são conhecidos os líderes camponeses de Cajamarca, passam de mão em mão cal e folhas de coca que mastigam sem parar, formando uma bola que lhes incha as bochechas. Chacchar coca é um hábito milenar de índios peruanos e, também, a fonte de energia para as longas caminhadas exigidas pelos debates dos líderes com as comunidades que serão afetadas. A hidrelétrica Chadín 2, a cargo da construtora brasileira Odebrecht, é para eles uma ameaça grave como Yanacocha, a maior mina de ouro do mundo. Em 30 anos de exploração, a mina trouxe prejuízos ao ambiente sem melhorar a vida dos agricultores nem promover o desenvolvimento de Cajamarca, um departamento (estado) ao norte do Peru na fronteira com o Equador e com a Amazônia que, ironicamente, é um dos mais pobres do país. Uma tragédia que não querem repetir.
As “Rondas” – formadas por representantes da Justiça das comunidades – surgiram na década de 1970 em Cajamarca e se multiplicaram em outras áreas rurais do país nos anos 1980. Naquele momento, além da ausência do poder público na região, era preciso se defender da violência do conflito travado entre o grupo guerrilheiro de inspiração maoista Sendero Luminoso e o Estado, que resultou em quase 70 mil vítimas. A Constituição peruana e a Lei 27.908, de 2003, reconhecem os ronderos como representantes da Justiça em suas comunidades, defensores do território e do ambiente. Eles são protegidos também por acordos internacionais, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que salvaguarda direitos dos povos indígenas.
Os líderes ronderos tomam as decisões por consenso, um modelo tradicional andino comparável à democracia participativa. A principal questão na agenda do dia é como evitar a construção da hidrelétrica de Chadín 2, o carro-chefe de uma série de 20 represas que ameaçam inundar as terras das comunidades instaladas em vales ao longo do rio Marañón, um dos principais afluentes do Amazonas (veja a reportagem “Eles que comam ouro!”). Outros assuntos na pauta são o monitoramento da área e as sanções a ser tomadas contra os funcionários da Odebrecht, que, segundo eles, têm violado as regras das Rondas Campesinas, como são chamadas as patrulhas. Esta é outra atribuição dos ronderos: eles têm autoridade para deter e interrogar pessoas que cometem crimes em suas terras.
Confiscos e prisões
O líder Eduar Rodas é o segundo nome de uma lista de 46 pessoas que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA), apresentou em 2012 ao governo peruano para pedir proteção. Como em outros documentos apresentados ao longo dos últimos quatro anos, a CIDH voltou a lembrar o governo peruano que as Rondas dos municípios de Cajamarca, Celendín e Hualgayoc-Bambamarca são protegidas por leis internacionais que regem os povos indígenas. Rodas, que já foi preso várias vezes, é alvo de cem denúncias e 12 ações judiciais movidas contra ele. “Estes senhores nos trouxeram a perseguição”, ele diz, referindo-se às construtoras e às mineradoras que movem os processos contra ele.
O governo peruano não respondeu ainda à solicitação da CIDH, apesar da promessa feita durante sua campanha eleitoral em 2011: proteger a agricultura, a água e os recursos naturais contra o ouro, o abuso e a imposição. Em vários discursos em municípios de Cajamarca, Humala repetiu a frase “Querem água ou ouro? Nós bebemos água, não comemos ouro”. Depois de eleito, passou a dizer: “Temos uma posição sensata de água e ouro”, como fez em um discurso já como presidente, em novembro de 2011. No ano seguinte, quatro agricultores e uma criança morreram em um protesto contra a mina de Conga, em um confronto com a polícia na praça de Celendín. As mortes não foram investigadas. “Eles [a polícia] mataram quatro companheiros, e ninguém foi investigado nem foi emitida nenhuma sentença. Mas nós, que estamos defendendo a nossa terra e a água, estamos sendo condenados por qualquer motivo. É uma perseguição porque é preciso um dinheiro que não temos para nos defender”, denuncia Rodas, que também acusa o Ministério do Interior de infiltrar espiões nas Rondas e de criar “Rondas paralelas”, que atuariam a favor das mineradoras, sem legitimidade. “Usando presentes como arroz, fornos, azulejos, brinquedos e panetones de Natal, eles [funcionários da Odebrecht] se infiltram nas Rondas. Eles ainda oferecem salários e seguros”, detalha.
A maioria das acusações contra Rodas e outros “ronderos” é por roubo e sequestro – eles admitem que confiscam “presentes” dados aos membros da comunidade e detêm funcionários da Odebrecht e de mineradoras que invadem suas terras para interrogatórios. “A Odebrecht está fazendo a mesma coisa que Yanacocha [mineradora peruano-estadunidense] fez no passado. Eles estão organizando Rondas paralelas com a polícia. Eles estão nos caluniando e tentando nos difamar. Mas a lei nos ampara. Nós somos autoridades em nosso território”, reafirma. É por esse motivo, diz o líder, que em dezembro os ronderos confiscaram os produtos que os empregados levavam para as comunidades depois de interrogá-los e os fizeram assinar documentos em que se comprometiam a não passar mais por suas terras.
A reportagem questionou a Odebrecht sobre esse incidente específico e sobre como a empresa protege os seus funcionários. Os escritórios da empresa em Cajamarca, Lima e São Paulo não responderam às perguntas nem aos pedidos de entrevista.
Perseguição e conflito
Santos Saavedra, presidente das Rondas de Cajamarca, acusa a Odebrecht de perseguir agricultores e adverte que a tensão pode intensificar
os conflitos sociais, ambientais e culturais já desencadeados pelos projetos de mineração. “Nós temos líderes que estão sendo pressionados e perseguidos. Eles estão criminalizando os protestos”, denunciou Saavedra em uma entrevista na sede das Rondas na cidade de Chota, 112 quilômetros ao norte de Celendín.
“Temos muitos ronderos que foram assassinados por pistoleiros da mineração. Temos líderes que estão na prisão”, disse Santos, culpando também o governo pelas detenções. Protestos contra mineiros em Cajamarca, especialmente em Conga, deixaram 11 mortos e 282 feridos entre 2004 e 2013. De acordo com a Defensoría del Pueblo, há uma alta taxa de criminalização dos manifestantes presos nos protestos. Zulma Villa, advogada do Instituto Internacional de Direito e Sociedade (IIDS), assessora legal das Rondas e representante de organizações indígenas na CIDH, afirma que cada um dos líderes ronderos de Cajamarca tem entre 20 e 50 investigações contra eles, a maioria ligada às diligências feitas por eles para proteger suas comunidades.
“Eles têm medo de nós porque sabem que estamos nos organizando. Querem nos tirar à força, com as Forças Armadas, com o Ministério Público e o Judiciário. Não vamos nos render. Eles vêm para colocar veneno nas nossas águas, para levar nosso futuro embora”, diz Saulo Vásquez Marín, de 25 anos, o rondero mais jovem no grupo de Rodas.
Duas culturas, duas leis
Não deixa de ser um desafio complexo conciliar a justiça tradicional inca, que se apoia em três regras básicas: Ama Sua, Ama Llulla e Ama Quella (“não ser ladrão”, “não ser mentiroso” e “não ser preguiçoso” em quéchua), dentro de um único sistema de justiça. Zulma Villa, assessora legal das Rondas explica que, embora o Peru tenha passado por avanços normativos que reconhecem o pluralismo jurídico, ainda falta clareza sobre o assunto entre operadores de justiça, incluindo juízes, procuradores e advogados.
Segundo o sociólogo norte-americano John Gitlitz, especialista em justiça intercultural e autor do livro Administrando justicia al margen del Estado. Las rondas campesinas de Cajamarca (Instituto de Estudos Peruanos [IEP], 2013), o choque cultural se dá não apenas em nível filosófico – de acordo com os valores de cada grupo –, mas também em nível político, pelo desejo de um grupo tradicionalmente discriminado por respeito e poder político, e no campo judicial, pelas dificuldades de conciliar os dois códigos de conduta em um único sistema de justiça. O mais grave é que não há sequer a tentativa de conciliar os opostos, ele diz. “Infelizmente, o problema da mineração tornou-se tão político que há anos ninguém fala honestamente, nem há diálogo”, resume Gitlitz.
Jorge Armando Guevara Gil, antropólogo e professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Peru (PUCP), dá razão aos ronderos, que, para ele, estão sendo processados ao exercer legitimamente suas funções jurisdicionais. O motivo dos conflitos, diz o antropólogo, é a imposição pelo Estado de uma opção de desenvolvimento sem ter o apoio das comunidades. “Temos de ver se o modelo proposto pelo governo é realmente inclusivo e democrático”, questiona.
Crimes e castigos
Para Zulma Villa, porém, a oposição dos ronderos às obras de infraestrutura em seus territórios tem claro respaldo legal: os projetos não têm o necessário consentimento dos indígenas nem respeitam o direito à livre determinação. De acordo com a advogada, se os ronderos interrogam um engenheiro que está cometendo um delito em uma área de sua jurisdição, eles são as autoridades competentes para investigar e, portanto, estão dentro da lei. A advogada acusa governo e empresas de perseguir judicialmente os ronderos e destaca que o novo código processual penal continua a proteger as Rondas, recomendando o diálogo cultural e a coordenação dos sistemas coexistentes de justiça, e não a subordinação de um sistema ao outro.
Algumas ações das Rondas, típicas da cultura andina, contra corruptos, mulheres e homens infiéis, tiveram má repercussão na imprensa peruana. A advogada, porém, alerta: “Administrar justiça não é o mesmo que justiçar. Há limites. Mas a justiça ordinária tem que entender os direitos fundamentais desde uma perspectiva intercultural. Para nós, pode ser chocante entender certas práticas. Por isso, é importante a perícia de antropólogos jurídicos”, adverte, lembrando os milhares de vítimas do conflito armado contra o Sendero Luminoso para alertar contra os riscos de um confronto: “Nós sabemos o custo de vida que envolve isso”.
O Ministério do Interior e o gabinete da Presidência no Peru não responderam aos nossos pedidos de entrevista sobre o assunto.