A investigação foi feita com apoio do Pulitzer Center
No marketing, existe uma manobra chamada de “rebranding”: ela consiste em mudar a imagem de uma pessoa ou marca, atualizando o seu posicionamento para torná-la mais atraente ao público. Há 137 anos, quando o Brasil assinou a Lei Áurea para abolir a escravidão no país, parte do Legislativo imperial usou essa estratégia. Parlamentares que se beneficiaram da escravidão por anos começaram a se apresentar como defensores da liberdade. O objetivo era atender às pressões sociais e preservar capital político. Alguns apoiaram a abolição mesmo ainda tendo pessoas escravizadas.
O projeto “O Poder e a Escravidão“, realizado por pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), investigou essas ações do Legislativo imperial no processo de abolição.
Um exemplo notável é o caso de João Alfredo Correia de Oliveira, que foi deputado, senador e primeiro-ministro do Império, lembrado como um dos “heróis da abolição”. Ele é considerado o “principal articulador” do processo que resultou na Lei Áurea. Hoje, o Museu da Abolição em Recife está localizado onde foi a sua antiga casa.
Os pesquisadores encontraram nas cartas pessoais de Alfredo, disponíveis na Biblioteca Central da Universidade Federal de Pernambuco, registros de negociação de escravizados entre o deputado e seus familiares. Seus avós, e depois seus pais, foram proprietários de escravos em dois grandes engenhos de Pernambuco, São João e Uruaé.
“Lendo os debates parlamentares da década de 1870, 1880, o João Alfredo nunca esteve perto de ser um abolicionista, um emancipacionista, nada disso. Quase todos do Partido Conservador eram escravistas”, comenta Felipe Azevedo, pesquisador do Departamento de História da PUC-Rio e um dos coordenadores do projeto.
Com a crescente pressão abolicionista e sua ascensão ao cargo de primeiro-ministro, que ocupou entre 1888 e 1889, ele passou a se alinhar aos abolicionistas, mudando sua imagem pública para corresponder à nova narrativa, embora Alfredo tenha alforriado publicamente seus escravizados apenas em julho de 1887, um ano antes da abolição.

Segundo Azevedo, muitos dos chamados políticos abolicionistas eram, na verdade, ex-proprietários de escravizados até as vésperas da abolição.
“Existe uma variedade considerável de casos de jovens bacharéis afortunados que se radicalizaram ao longo da década de 1870 e só no decorrer da década de 1880, com a popularização do abolicionismo, resolveram conceder alforria a seus escravizados”.
O pesquisador comenta que a concessão de liberdade era feita em atos públicos, como em teatros e conferências abolicionistas, “onde [os políticos] buscavam marcar seus nomes e posições com atos filantrópicos e humanitários”. Tal ato, de acordo com o pesquisador, “extraía conflito do processo e demarcava as posições encenadas: o abolicionista como agente da liberdade, o alforriado como personagem passivo com dever de gratidão pela dádiva alcançada”.
Outra figura comum na época era o “abolicionista de última hora”. Fazendeiros concediam alforrias coletivas, geralmente em cerimônias noticiadas na imprensa, para tentar manter o controle sobre a mão-de-obra e evitar maiores conflitos sociais. Na época, o aumento de conflitos por liberdade e de fugas de escravizados, em contraste à queda no preço da mão-de-obra escrava, já apontava para o fim da escravidão no país.
Para Ricardo Oliveira, pesquisador da Universidade Federal do Paraná (UFPR), esse “pragmatismo de última hora” fez com que a Lei Áurea fosse aprovada rapidamente: ela foi aprovada na Câmara e no Senado em cinco dias. Um dos motivos para essa rapidez foi “evitar uma reação do núcleo duro mais conservador e reacionário [do legislativo imperial]. E foi aí que muitos [parlamentares] mudaram de posição ao verificarem que a abolição seria inevitável.”
Azevedo aponta um grande número de alforrias nos anos anteriores à abolição. “Só em São Paulo foram quase 40 mil alforrias entre março de 1887 e 1888. Muitas, inclusive, eram anunciadas para o futuro, condicionadas ao bom comportamento do escravizado”.
“Rebranding” nos últimos anos da escravidão
A pesquisa classificou os parlamentares em três categorias: aqueles que foram proprietários de escravizados, os que eram de famílias de proprietários de escravizados e os que não tinham registros conclusivos sobre suas relações com a escravidão. Dos 698 deputados que formaram a Assembleia Geral do Império entre 1826 e 1888, foram pesquisados 174 na primeira fase do projeto. O resultado é que a maioria desse grupo, 64%, tinha ligação com a posse de escravizados, seja por parentesco com senhores de escravizados ou por serem proprietários diretos.
Azevedo exemplifica com o caso de Pedro Araújo Lima, o Marquês de Olinda, deputado da província de Pernambuco na primeira, segunda e na terceira legislatura, entre 1827 e 1837. O deputado construiu seu poder político com o dinheiro gerado pelo tráfico de escravos.
“Ele [o Marquês de Olinda] era um desses casos em que os traficantes financiaram para estudar na Europa, depois voltar para o Brasil e trabalhar dentro do Parlamento”. O pai do Marquês, capitão Manoel Araújo de Lima e o avô, Capitão Antonio Casado Lima, eram senhores de engenhos de açúcar em Sirinhaém, em Pernambuco, que contavam com mão-de-obra escravizada. Além disso, há registros de que o Marquês e seus familiares mantinham contato com negociantes e traficantes de escravizados durante as décadas de 1810 e 1820.
Oliveira pontua que essa mudança de posicionamento legislativo às vésperas da abolição também foi fruto de uma mudança geracional na composição da Câmara e do Senado, como garantia da sua manutenção no poder nos anos seguintes. “Aquela geração mais velha, com mais de 40, 50 anos, convivia mais com o modo de produção escravista. Os jovens bachareis que compunham o legislativo imperial, na faixa dos 20 anos, esses é que terão uma longa carreira com a República – embora sejam filhos e netos de escravistas, eles continuam no poder Republicano”.
Segundo Oliveira, a atuação de críticos da abolição que ainda existiam na Câmara e no Senado no último legislativo do Império, acabou desmoralizando politicamente as casas legislativas. A postura reacionária contribuiu para o enfraquecimento do regime monárquico — quando a monarquia caiu, praticamente não houve resistência nas províncias, pois muitos senhores de escravizados, insatisfeitos com a abolição sem compensações, já haviam migrado para a oposição. “A classe dominante aceitou a libertação dos escravizados, até porque estavam muito isolados politicamente na sociedade, nas instituições e afinal no próprio parlamento”.
Esse processo de “rebranding” é comparado à forma como os escravistas e seus aliados conseguiram reconfigurar sua imagem pública e, ao mesmo tempo, silenciar a verdadeira história da abolição. Azevedo argumenta que a memória oficial da abolição, construída após 1888, apagou a resistência e as ações dos próprios escravizados, que desempenharam papel central no processo de libertação.
O pesquisador avalia que, com a assinatura da Lei Áurea, era preciso situar publicamente quem era o lado vitorioso da abolição, o “lado certo da história”. Isso levou à ampla divulgação de imagens da princesa Isabel e dos ministros do gabinete. “Mais do que isso, essas representações rasuraram e jogaram no esquecimento toda a mobilização dos escravizados que se aquilombaram aos milhares nos dois anos anteriores, em um processo violento, com episódios de caçadas a fugitivos e cerco a quilombos volantes, além mesmo da intensificação de assassinatos de senhores, feitores e administradores de fazendas no campo”.
A pesquisa encontrou um desafio que também foi visto no Projeto Escravizadores, levantamento da Agência Pública que mapeou os antepassados escravocratas da atual elite política brasileira: a dificuldade de acesso aos registros deste momento da história. Azevedo comenta que o trabalho só pode ser feito por causa das iniciativas de digitalização de documentos históricos e de difusão das monografias, dissertações e teses produzidas pelas universidades, como a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações – principal fonte usada pelos pesquisadores para a comprovação de laços com a escravidão.
“A maior parte dessa documentação que a gente achou é uma documentação secundária. No Brasil, há dezenas de departamentos de História, em todos os lugares têm alguém pesquisando escravidão. Essa documentação vem de estudos de pessoas que já pesquisaram isso, em Goiás, no Mato Grosso, em Pernambuco, no Rio Grande do Sul”, comenta.