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A segunda-feira, 11 de agosto, não era um dia qualquer para o gari Laudemir Fernandes, a serviço de uma empresa contratada pela Prefeitura de Belo Horizonte. Às 18 horas, o Conselho Tutelar faria uma visita à casa em que morava com a esposa, Liliane, as duas enteadas e agora também com a filha de 15 anos, da qual tinha conseguido a guarda há pouco tempo – o que ainda comemorava, dizem os colegas. Daí a visita do Conselho para checar a adaptação da adolescente à família.
Por isso ele ficou contente ao ser escalado para cobrir um colega de outra rota – o itinerário que os caminhões percorrem -, que terminaria mais cedo do que o trajeto habitual. Mais um motivo de alegria para o homem negro de 44 anos, extrovertido e amoroso, que costumava sair “todo satisfeito, para fazer um trabalho que ele amava”, como contou a esposa.
Laudemir sabia o valor do serviço que prestava para a cidade onde morava e que desempenhava “com excelência”, nas palavras de Liliane.
Na mesma manhã de segunda-feira, o empresário Renê da Silva Nogueira, saiu de seu apartamento em Nova Lima, região de condomínios de alto padrão no entorno da capital mineira, em direção à empresa da qual era diretor – segundo disse à polícia -, localizada em Betim, também na região metropolitana de Belo Horizonte. Em seu perfil no LinkedIn ele se dizia CEO da Fictor Alimentos – o que a empresa negou em nota, afirmando que Renê atuava como prestador de serviços há apenas duas semanas e já havia sido desligado.
Com isso, não se sabe o quanto é verdadeiro o currículo ali apresentado, que inclui cargos em multinacionais de alimentos e bebidas. O certo é que ele combina com a foto em estilo “macho alfa”, valorizado por essas empresas: homem branco musculoso em traje social com o sorriso exalando autoconfiança. Na mesma rede, ele anuncia sua expertise: “acelerar resultados através de liderança estratégica e inovação”.
Já no Instagram, Renê se apresenta como “christian, husband, father, patriot”, assim mesmo, em inglês. No perfil com 30 mil seguidores, apagado depois da prisão, ele aparecia em fotos de viagem abraçado com a esposa, igualmente branca, sorridente e bem arrumada, a delegada Ana Paula Balbino Nogueira. Ela tem cursos de especialização em violência doméstica e publicou um livro sobre o tema.
Um detalhe no mínimo curioso, já que o marido tem sólido histórico de agressor: responde a processo judicial por lesão corporal contra a ex-esposa, que teve até o braço quebrado, além de ter sido denunciado por violência doméstica por outras ex-companheiras em boletins de ocorrência registrados no Rio de Janeiro, estado onde nasceu. E não é tudo. Em 2003, Renê provocou o atropelamento e morte de uma moradora em situação de rua no Recreio dos Bandeirantes, quando pilotava – sem carta – uma moto em alta velocidade.
Uma mulher pobre tinha ousado cruzar o seu caminho e morreu. Como aconteceu com Laudemir, 22 anos depois, naquela fatídica segunda-feira.
Está no nome da esposa e delegada a pistola .380 que Renê portava quando seu caminho foi momentaneamente interrompido pelo caminhão de lixo dirigido pela motorista Eledias Aparecida Rodrigues, parado próximo da esquina das ruas Jequitibá e Modestina de Souza, no bairro de Vista Alegre, enquanto os garis, entre eles Laudemiro, tentavam orientar o tráfego, parcialmente tolhido pelo caminhão.
Apesar de diversas matérias terem se referido ao que veio a seguir como resultado de uma briga de trânsito, o crime não foi fruto de impulso, como contou à polícia e à imprensa a motorista Eledias Aparecida. “Não houve discussão. A rua é uma rua larga, porém tinha carros de um lado e do outro e os meninos (os garis) trabalham assessorando a gente na rua, parando o trânsito, pra não ter nenhum acidente. Eu dei a preferência pra ele [Renê]. Aí ele colocou a arma em punho e falou que se eu esbarrasse no carro dele, ele iria dar um tiro na minha cabeça, que eu não duvidasse“, relatou.
Ao ver o empresário com a pistola apontada para o rosto da colega, os garis se aproximaram para protegê-la. Um deles, Thiago Rodrigues, se colocou entre a arma e o caminhão, e tentou chamar o agressor à razão: “Você vai fazer isso com a moça? Somos todos trabalhadores. Você vai atirar?”, disse, de acordo com Eledias, que também contou o desfecho: “Aí ele saiu do carro, mudou a direção da pistola e acertou o Laudemir”.
As câmeras da rua mostram Laudemir ferido na barriga, cambaleando até a esquina, pouco depois de terem registrado a passagem do carro de Renê, que à polícia negou ter estado no local do crime, embora as testemunhas tenham anotado a placa de seu BYD cinza antes de ele fugir sem prestar socorro. O gari deitou na calçada. Suas luvas continuaram ali quando ele foi levado por uma viatura da PM para um hospital, onde morreu.
Renê foi preso em flagrante horas depois do crime em uma academia de ginástica no bairro do Estoril. À polícia, ele disse que tinha voltado do trabalho para casa após o almoço para trocar de roupa e passear com os cachorros, antes de sair tranquilamente para treinar depois de atirar em Laudemir. Sem se abalar.
O juiz Leonardo Damasceno acolheu o pedido do Ministério Público de Minas Gerais e converteu a prisão em flagrante para preventiva por homicídio duplamente qualificado – por motivo fútil e por impedir a defesa da vítima. Durante a audiência de custódia, o juiz descreveu a personalidade de Renê como “violenta e desequilibrada” e qualificou seu crime de “hediondo”.
Mas foi a esposa da vítima, Liliane, quem melhor explicou a motivação perversa desse crime, que é também sintoma de uma sociedade racista, cruel e desigual, em que “cidadãos de bem”, como o assassino de Laudemir, se sentem no direito de espancar e ameaçar mulheres e de executar um trabalhador por atrasar o seu percurso.
“O meu entendimento é que, para ele, não estava atirando em um ser humano. Ele estava atirando em um saco de lixo. Para ele, meu marido, Laudemir, para ele era um saco de lixo”.