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Os homens sul-africanos que mudaram o rumo da democracia dos EUA

Musk e outros apoiadores de Trump nasceram ou passaram parte da juventude na África do Sul durante o apartheid

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26 de agosto de 2025
06:00
Elon Musk na Casa Branca
White House/Reprodução

“Sem brancos aqui, os negros voltarão para as árvores.” Essa foi uma das frases de um e-mail que o sul-africano Errol Musk enviou a seu filho Elon, o homem mais rico do mundo, em 2022. O detalhe está na biografia de Musk escrita por Walter Isaacson e publicada em 2023. Esta não é a única declaração racista de Errol Musk citada pelo autor.

“Os negros tomariam tudo de você,” disse Errol Musk a Isaacson em uma entrevista para o livro. “Não tenho nada contra os negros, mas simplesmente eles são diferentes de mim.”

O relacionamento conturbado entre Elon Musk e seu pai é um dos temas centrais do livro de Isaacson, e fica claro que Elon, em geral, desaprova profundamente as opiniões e o comportamento do pai.

Entre os aspectos mais grotescos da história de Errol Musk, como agora é amplamente conhecido, está o fato de ele ter tido dois filhos com sua própria enteada.

Em novembro de 2024, Errol Musk esteve no Podcast and Chill with MacG, um dos mais populares da África do Sul. No programa, ele apresentou uma versão bastante suavizada dessa história, incluindo a alegação de que não teve contato com a enteada até que ela tivesse 29 anos.

Na biografia, no entanto, é apresentada uma versão bem diferente: nela, Elon Musk teria convidado seu pai e a família para ficarem com ele nos Estados Unidos em 2002, mas rapidamente ficou preocupado: Errol, “então com 56 anos, estava ficando desconfortavelmente atento a uma de suas enteadas, Jana, que tinha 15 anos na época”.

Errol engravidaria Jana aos 30 anos. O pai de Musk descreveu a gravidez como “plano de Deus ou plano da natureza”.

Elon Musk foi morar com o pai aos 10 anos de idade e, embora o relacionamento entre os dois seja extremamente conflituoso, a biografia (bastante elogiosa a Musk) sugere que eles compartilham certas semelhanças. Entre elas, está a mentalidade conspiratória: a tendência “a ler sites malucos de fake news que propagam teorias da conspiração”.

Mas, no livro, Isaacson não explora até que ponto crescer sob a influência de um pai abertamente racista em uma África do Sul sob o apartheid teria moldado a visão política futura de Elon Musk.

A pergunta vale não apenas para Musk, mas para outras figuras que atualmente exercem papéis desproporcionais na política dos EUA.

Elon Musk: a infância “sem política”

Segundo a biografia de Isaacson, Musk cresceu em um vácuo político. A palavra “apartheid” aparece pouco no livro, apesar de Musk ter vivido na África do Sul desde seu nascimento, em 1971, até 1988, um dos períodos mais conturbados do regime segregacionista.

O avô materno de Musk era um canadense que se mudou para a África do Sul do apartheid em 1950 porque acreditava que o Canadá havia “amolecido”.

Musk foi criado em um ambiente agressivo e masculinizado; frequentou o veldskool — acampamentos conhecidos por sua brutalidade — e teria sido constantemente vítima de bullying na escola em Pretória, capital do país.

Mas o relato que Musk faz da própria infância e adolescência a Isaacson é notável pela invisibilidade do apartheid e pela aparente ausência de qualquer tipo de consciência social ou percepção de injustiça racial resultante dessa vivência.

Na verdade, Musk parece ter saído dessa experiência com um senso profundo de vitimização pessoal, apesar de pertencer a uma parte da sociedade, a dos sul-africanos brancos, que em certos momentos do século 20 foi uma das mais privilegiadas do planeta.

Em uma rara visita à África do Sul, em 2001, Musk pegou malária e quase morreu. Anos depois, disse a Isaacson: “Férias te matam. A África do Sul também. Aquele lugar ainda está tentando me destruir.”

“Quando as coisas estavam ruins, ele se energizava. Era a mentalidade de cerco, herdada da infância na África do Sul”, escreve Isaacson.

A aventura no apartheid de Peter Thiel

Nos EUA, Elon Musk conheceria e trabalharia com outro homem que também passou parte da infância na África Subsaariana: o investidor e bilionário Peter Thiel.

Thiel nasceu em Frankfurt, na Alemanha, na década de 1960, filho de pais alemães. Segundo o biógrafo Max Chafkin, Frankfurt naquela época era “repleta de cristãos brancos e piedosos”.

Na biografia The Contrarian: Peter Thiel and Silicon Valley’s Pursuit of Power (2021), Chafkin conta que o pai de Thiel, Klaus, gerente de projetos de mineração, escolheu trabalhar na construção de uma mina de urânio próxima à cidade de Swakopmund, na Namíbia, como parte de um projeto clandestino do governo do apartheid para desenvolver um programa de armas nucleares.

Thiel estudou por dois anos na Escola Alemã de Swakopmund, após ter passado um período na Pridwin, uma escola em Joanesburgo (África do Sul) então exclusiva para brancos. (Em 2020, a mãe de um aluno da Pridwin escreveu no Daily Maverick que ficou “surpresa com o racismo institucional e sistemático, muito sutil e altamente sofisticado” da escola.)

Mais tarde, os pais de Thiel se mudaram para os Estados Unidos, e ele foi estudar em Stanford, que na época vivia uma onda de protestos estudantis exigindo o desinvestimento de empresas ligadas à África do Sul do apartheid. Esses protestos, escreveu Chafkin, pareceram “mais pessoais para Thiel, que frequentemente falava com carinho sobre sua infância na África do Sul”.

Em Stanford, segundo Chafkin, “pelo menos duas vezes, ele disse a colegas que achava exageradas as preocupações com o apartheid”.

Chafkin entrevistou duas ex-colegas negras de Thiel que, décadas depois, lembravam vividamente desses encontros. Thiel teria dito a uma delas: “Isso [o apartheid] funciona.”

A outra teria ouvido dele que “a negação sistemática de direitos civis aos negros na África do Sul era economicamente viável”. (O porta-voz de Thiel negou todos esses relatos.)

Em Stanford, Peter Thiel fundou, em 1987, uma publicação chamada Stanford Review, atuando como editor-chefe. Uma das primeiras campanhas do jornal foi contra uma proposta da universidade de incluir escritores negros no currículo de literatura estudantil.

“A cultura ocidental em risco” foi a manchete da matéria de capa da publicação sobre o tema. Este tipo de discurso continua sendo um dos pontos de pauta de Musk e companhia até hoje.

O Stanford Review ainda publicaria textos de outro amigo de graduação de Thiel, incluindo uma “defesa apaixonada”, segundo Chafkin, de um aluno do último ano de Stanford que havia relativizado uma acusação de estupro de uma jovem de 17 anos. O autor do texto argumentava que o estuprador merecia empatia, em parte porque a vítima não havia resistido.

O autor em questão? Um tal de David Sacks.

A campanha de Sacks contra o multiculturalismo

David Sacks nasceu na Cidade do Cabo (África do Sul) em 1972 e se mudou com a família para o estado do Tennessee (EUA) aos cinco anos de idade.

Em julho de 2024, durante seu discurso na Convenção Nacional Republicana, Sacks fez uso de sua identidade como imigrante.

“Sou David Sacks, um imigrante legal que trabalhou duro para alcançar o sonho americano. Agora temo que essas mesmas oportunidades não existam para as próximas gerações”, disse ele.  

“Precisamos de ordem em nossas cidades, ordem em nossa fronteira e ordem em um mundo em chamas. Meus amigos, precisamos de Donald J. Trump de volta à Casa Branca.”

No início dos anos 1990, em Stanford, Sacks e Thiel se davam tão bem que pareciam fogo e gasolina. Em 1995, eles publicaram juntos um livro intitulado The Diversity Myth: Multiculturalism and Political Intolerance on Campus (“O Mito da Diversidade: Multiculturalismo e Intolerância Política no Campus”).

Descrito pela revista dos EUA The New Republic como “raivoso, provocador, homofóbico, obcecado com identidade e política universitária”, o livro deixava claro que os dois se viam como oprimidos — enquanto homens brancos conservadores.

Sacks e Thiel viriam a trabalhar com Elon Musk na plataforma de pagamentos online PayPal — cuja equipe, segundo Chafkin, refletia inicialmente a aversão de ambos ao multiculturalismo.

“Nos seus primeiros dias, o PayPal não empregava mulheres e não havia funcionários negros”, escreve Chafkin.

Outro nome recrutado nos primeiros anos do PayPal foi um prodígio das finanças de pouco mais de 20 anos chamado Roelof Botha, formado pela Universidade da Cidade do Cabo e neto de Pik Botha, ex-ministro das Relações Exteriores da África do Sul durante o apartheid.

Hoje, Roelof Botha é sócio-gerente de uma firma de capital de risco com status quase lendário, a Sequoia Capital, mas mantém uma postura resolutamente apolítica. Em julho de 2024, Botha afirmou explicitamente que não apoiaria nenhum candidato nas eleições de novembro nos EUA: 

“Na Sequoia, não adotamos uma posição política.”

Quando bilionários da tecnologia entram na guerra cultural

“As posições políticas de empreendedores da tecnologia geralmente não são discutidas nem debatidas”, observou a revista dos EUA Newsweek, no início deste ano.

Não é exagero dizer que Musk, Thiel e Sacks mudaram esse cenário completamente.

Um perfil publicado em 2022 pela The New Republic disse que Sacks “silenciosamente se tornava o principal representante de uma nova sensibilidade da direita, surgida nos realinhamentos políticos provocados pelo trumpismo e pela pandemia”. 

O texto começa dizendo: “Assim como seus amigos Elon Musk e Peter Thiel, Sacks está usando sua riqueza e influência online para unir conservadores e ex-esquerdistas em um movimento reacionário contra o liberalismo”.

Sacks e Musk são ex-democratas que se viraram para a direita, movidos por uma percepção de vitimização, oposta ao que chamam de “vírus mental woke”, e por preocupações com o futuro da civilização ocidental (leia-se: branca). Thiel sempre foi conservador — e seguiu se radicalizando. 

Os três magnatas demonstraram apoio explícito a Donald Trump durante a campanha presidencial de 2024 e fizeram grandes esforços para impulsionar sua candidatura.

Ao comprar o Twitter em 2022, Musk teria brincado com seus filhos, segundo Isaacson: “De que outro modo conseguiríamos conseguir eleger o Trump em 2024?”.

Caberá aos futuros cientistas sociais determinar com exatidão o impacto da compra do Twitter por Musk no resultado das eleições de 2024, mas aparentemente houve alguma influência. Segundo o jornal The Washington Post, uma das mudanças feitas por Musk no algoritmo teria aumentado o alcance das contas de parlamentares republicanos e reduzido o de democratas.

Thiel, por sua vez, é descrito por seu biógrafo como alguém que queria “mais do que influência no Vale do Silício — ele queria poder real, poder político”. Foi ele quem ajudou a convencer a cúpula do Facebook, antes das eleições de 2016, a permitir que apoiadores de Trump “dissessem basicamente o que quisessem na plataforma”.

O resultado, escreve Chafkin, foi que a notícia mais popular no Facebook durante o período eleitoral foi: “Papa Francisco choca o mundo e declara apoio a Donald Trump para presidente” (completamente falsa). Outra alegava que Hillary Clinton havia vendido armas a terroristas do Estado Islâmico (também completamente falsa).

E não para por aí 

Os três mosqueteiros mencionados acima não são os únicos homens com laços com a África do Sul que agitam a política dos EUA, embora talvez sejam os mais conhecidos.

Poucas semanas antes das eleições americanas de 2024, o influente jornal Los Angeles Times rompeu uma tradição de décadas e anunciou que não apoiaria nenhum candidato à presidência, apesar de o conselho editorial ter decidido apoiar Kamala Harris.

Quem proibiu o apoio foi o proprietário do LA Times, o bilionário da área médica Patrick Soon-Shiong, nascido na cidade sul-africana Gqeberha.

Soon-Shiong havia declarado ao National Museum of American History: “Crescendo na África do Sul do apartheid, nós sempre éramos os vira-latas. Meus amigos negros eram sempre os vira-latas. Isso me deu uma percepção sobre a dignidade e a força dos que estão em desvantagem. Então parte do que [minha esposa] Michele e eu fazemos, consciente ou inconscientemente, é sempre lutar pelos desfavorecidos neste país — e por nós mesmos.”

Diante da indignação com a ameaça à liberdade de imprensa representada por um barão da mídia que veta as decisões políticas de seus próprios editores, a filha de Soon-Shiong, Nika, recorreu às redes sociais para afirmar que a razão pela qual a família não endossaria Harris era o apoio do governo Biden à guerra de Israel em Gaza — algo que seu pai negou categoricamente.

Soon-Shiong afirmou que proibiu o apoio por querer um jornalismo “justo e equilibrado”, mas cresceu a suspeita de que o motivo real era o medo de que Trump, caso vencesse, se vingasse de veículos de imprensa considerados hostis.

Mas um meio de comunicação que certamente não teme retaliação de Trump é o ultraconservador Breitbart News, do ex-consultor de Trump e influenciador de extrema direita Steve Bannon. Há uma década o veículo tem sido porta-voz confiável das pautas trumpistas.

Um de seus editores é o sul-africano Joel Pollak, nascido na Cidade do Cabo e ex-redator de discursos do político Tony Leon, que atuou nas negociações multipartidárias que levaram ao fim do apartheid. Em certo momento, chegou a ser cogitado pelo primeiro governo Trump para o cargo de embaixador dos EUA na África do Sul.

Pollak tem estado ativo. Em julho de 2024, num gesto interpretado por muitos como uma tentativa bem transparente de conquistar um cargo no segundo governo Trump, ele lançou um livro, publicado por Steve Bannon, intitulado The Agenda: What Trump Should Do In His First 100 Days (“A Agenda: O que Trump Deve Fazer nos Seus Primeiros 100 Dias”).

No livro, Pollak recomenda suspender até mesmo a imigração legal para os EUA até que o sistema imigratório seja reformado; propõe que a Casa Branca promova estudos bíblicos diários; defende a criação de uma força-tarefa para “incentivar a natalidade”; e sugere que a decisão sobre a legalidade da fertilização in vitro nos EUA seja transferida para um comitê de ética criado por Trump.

Essa reportagem foi publicada originalmente pelo Daily Maverick e republicada pela Agência Pública.

White House/Reprodução
Gage Skidmore/Wikimedia Commons
Robert Scoble, licenciada como CC BY 2.0

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