Difícil acreditar que o solo de onde antes só brotava fumo, hoje dê morangos tão saborosos. Nem é necessário açúcar: basta colher e experimentar o fruto saído direto da terra. Isso é apenas parte do trabalho liderado por um rapaz de 20 anos – e que aparenta ter menos idade. O nome é Anderson Rodrigo, membro da família Richter. A ascendência é alemã, algo que fica expresso no sotaque. Os antepassados chegaram ao Brasil durante o grande fluxo imigratório de alemães no século 19, caso da maioria das pessoas que mora na região do Vale do Rio Pardo, no interior do Rio Grande do Sul, especialmente nos municípios de Santa Cruz do Sul e Venâncio Aires. Os dois são uma espécie de capital informal da produção de fumo do Brasil, sede das principais empresas do setor. Venâncio, com pelo menos 3,7 mil famílias envolvidas na cultura, segundo estimativas da prefeitura da cidade, é conhecido também por ser a capital da erva-mate e carrega ainda o incômodo posto de ser um dos líderes de suicídios no país.
O terreno na comunidade de Linha Santana em que se localiza a propriedade de Anderson, em Venâncio, era grande quando Adolfo Richter, o primeiro antepassado de que ele tem notícia, chegou. As casas, a igreja, muito se construiu em torno dela. Outros Richter vieram, formaram as próprias famílias. Dividiram a terra. E o fumo se espalhou por todos os pedaços. Anderson não escapou a essa herança. Conta que, quando se deu por gente, estava cercado por tabaco. “Nem vi acontecer. Quando eu nasci, já era assim fazia muito”, conta. E foi com a presença intensa desse monocultivo que ele cresceu. Ao lado dos pais, Heitor e Marilei, auxiliou no plantio até os 14 anos, em 2009. Foi então que começou a virada.
Naquele ano, começou os estudos de agroecologia na Escola Família Agrícola de Santa Cruz do Sul (Efasc), onde se formou, em 2011. Atualmente estudante do curso superior de Tecnologia em Agroecologia na Horticultura, na Universidade do Estado do Rio Grande do Sul (Uergs), o rapaz fez uma aposta para escapar à cultura do tabaco e aos agrotóxicos. De início, contou com o apoio de duas jovens: a irmã mais nova, Andressa Rafaela, de 16 anos, e a namorada, Micaela Hister, de 19, que conheceu na Efasc. “Quando começamos, tínhamos apenas um pedacinho de terra na propriedade dos meus pais, que não acreditavam que daria certo. Agora, já conseguimos ampliar e eles estão ajudando”, conta o jovem, que sonha com a criação de lavouras demonstrativas para espalhar a cultura agroecológica em Venâncio Aires.
No entanto, a mudança não foi fácil. E não só pela resistência inicial dos pais, mas pelo caldo de cultura que influencia toda a comunidade. Um contexto erguido a partir da planta do tabaco, que fez brilhar os olhos de uma indústria ao enxergar a região. “Lembro de olhar em volta quando era pequeno e só ver folhas de fumo. Não só na propriedade da minha família, mas nas que estão no entorno. Tinha uma sensação de opressão por isso”, explica Anderson.
Hoje, as terras dos Richter não têm um só pé de fumo. Os jovens produzem morango, hortaliças, temperos. Entregam em feiras e para iniciativas de compras públicas, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Na busca por diversificar receitas, também vendem a professores da Uergs. O esterco de suas vacas e porcos é a fonte para o adubo, em que aplicam um composto que reduz a presença de metais pesados. “O começo foi duro, mas a gente se libertou com isso. Tiramos os agrotóxicos das nossas vidas e das vidas das pessoas que compram nossos produtos. E saímos da cultura do fumo, que tira a autonomia do agricultor, desconsidera o saber dele. A empresa fumageira que faz contrato com ele decide tudo. O agricultor não é dono do processo que pratica na própria terra. Ele é só mão de obra”, critica Anderson Rodrigo.
Entre a década de 1950 e o início dos anos 2000, o fumo carregou “tempos dourados” para Venâncio Aires e região. O tabaco dava dinheiro e, segundo os Richter, era mais fácil se concentrar “só em uma coisa”. “Era como o cara da fábrica que aperta só um botão. As pessoas se especializam em plantar fumo, sem perceber que nem isso é de verdade, porque chegam os técnicos das empresas e dizem como e quando tem que fazer”, diz o jovem produtor. Anderson se refere à figura do orientador das fumageiras, que, na realidade, é quem dita as regras de como o plantio tem de ser durante todo o ciclo produtivo. “É esse cara que chega e diz ao agricultor: ‘Por que você vai plantar horta, se você pode plantar fumo naquele pedaço de terra?’. E aí, quando você vê, já não faz nada de diferente do que a empresa manda fazer e outras culturas são abandonadas”, comenta.
O rapaz sabe do que fala. Viveu na pele os efeitos da prisão que é a cadeia do tabaco. Trabalhou, ainda criança, nas lavouras de fumo. Viu a família sofrer, inclusive fisicamente, e abrir mão de muito. Heitor, o pai de Anderson, hoje com 45 anos, foi um caso. Começou a plantar fumo aos 14 e passou 26 anos no cultivo. “Já não ia mais para a escola, nem concluí o ensino fundamental. Não dava para conciliar. O tabaco desgasta muito e eu tinha que ajudar meus pais”, recorda.
Heitor e a família chegaram a cultivar 94 mil pés de fumo nos picos de produção. E os problemas de saúde vieram. Dores de cabeça, indisposição, vômitos e manchas na pele eram recorrentes, mas o trabalho não podia parar. A dura época da colheita, entre novembro e janeiro, ficou marcada como o pior período. Com chuva forte ou sol escaldante, era preciso colher as folhas e secá-las na estufa. Depois, as plantas secas ficavam depositadas em um pequeno depósito quase sem ventilação. A família se reunia nesse local para classificar o fumo de acordo com a qualidade, o que definia o preço. “Não podíamos atrasar uma fornada. Senão, não conseguíamos mais o ponto certo do fumo e perdíamos o trabalho”, descreve Heitor.
A utilização de agroquímicos na plantação de tabaco foi compreendida pelos familiares como algo que atacava a saúde e também degradava o ambiente. O cultivo manual, a retirada folha por folha, deixava evidente que, independentemente do quanto se usa de veneno nas plantas, se mais ou menos do que em outros tipos de lavoura, era necessário encarar a realidade: os agroquímicos fazem entrar num ciclo penoso, pessoas adoecem e a terra também. Não sobra matéria orgânica para o solo. “Conforme não tem matéria orgânica, o solo vai se degradando e a planta não consegue se desenvolver. Os próprios adubos sintéticos perdem a eficácia, pois se espalham pela terra e a planta absorve só no ponto em que está a raiz. Então, tem que aumentar a dosagem para chegar ao que ela precisa para crescer. E, como o fumo toma todo o espaço da terra e as empresas colocam metas de tempo e quantidade para o agricultor entregar, o raciocínio é usar agrotóxico o tempo inteiro”, detalha Anderson.
Mesmo nessas condições, Heitor só saiu do plantio do fumo em 2010. Atualmente, cria gado leiteiro e auxilia os filhos nos cultivos agroecológicos. Ele queria ter parado antes, mas tinha dívida com uma fumageira, feita na aquisição de produtos e equipamentos prevista em contrato com a empresa. “Sempre quando eu tinha dívida, o preço que pagavam pelo fumo não era bom, foi difícil de sair.”
A saída se deu com o leite dado pelas vacas da propriedade e a diversificação da produção, estimulada pelos estudos de Anderson na Efasc. O débito, em 2009, quando o jovem ingressou na escola, já estava perto de ser quitado. “A dívida, se a gente tivesse feito mais, não ia ter como parar. É nisso que muito agricultor entra e perde, cada vez mais, o poder de decisão”, salienta Anderson.
Micaela, a namorada dele, mora na propriedade da família Richter, mas é nascida em Sobrado, outra cidade da região. De lá, foi para General Câmara, a 66 quilômetros de distância de onde reside hoje. Foi nesse lugar, desde os 10 anos, que passou a ajudar no cultivo do fumo, no qual continuam seus pais, Jorge e Traudi Hister. “A propriedade que meu pai tem hoje [em General Câmara] é um local que uma pessoa comprou e não conseguiu pagar a dívida com a fumageira (a Alliance One, de origem norte-americana). Meu pai assumiu a dívida e ficou com o lote”, afirma Micaela.
Mais uma linha do modo de atuar das fumageiras está exposta. Na época do loteamento feito pela empresa, quem comprava uma porção de terra era obrigado a pagar plantando fumo. Muitos pequenos produtores não conseguiram dar conta das metas impostas pelos contratos e perderam os terrenos. Os pais de Micaela não chegaram a passar por isso. De qualquer forma, confrontaram situações que também os levam a querer parar com a atividade. “Meu pai começou a plantar porque era a tal história da cultura que tinha venda garantida. Chegou a ter oito hectares de fumo, 210 mil pés por safra”, conta a moça.
A fumageira, então, colocava mais metas e novos “investimentos” eram exigidos. Vieram as dívidas e a necessidade de muita mão de obra. Jorge passou a ir até a periferia de General Câmara para juntar gente que aceitasse trabalhar na colheita. Lotava uma Kombi com moradores de áreas pobres do município. Para agravar a situação, a filha e a esposa tiveram a saúde fragilizada. Micaela conta que, quando morava com os pais, estava “sempre mal”, com náuseas. Traudi, a mãe, tem dores de cabeça e tonturas que não a abandonam. “A fumageira defende que é a nicotina que tem na folha do tabaco que faz mal, mas a gente sabe que o agrotóxico tem parte aí”, lembra a jovem, que relacionou seus estudos universitários a pesquisas sobre o tema.
Aos poucos, os pais de Mica, como a moça é chamada pelos familiares, diminuíram a produção de tabaco. Nos últimos anos, plantam, em média, “apenas” 60 mil pés. Passaram, assim como Heitor, a investir no leite, mas ainda têm medo: não estão certos de que “vai dar” se abolirem o fumo de suas vidas e partirem para outra cultura. “Eles têm muita dívida, de compra de máquinas. Mesmo a terra, ainda estão pagando para a empresa”, esclarece a jovem.
Anderson acredita que a dificuldade em encontrar alternativas ao tabaco passa pela falta de organização. Para ele, os agricultores engolem o sistema imposto pelas fumageiras e se acomodam. E, se buscam uma saída, vão geralmente na direção de outra cultura que os empurra para condições semelhantes, com a perda da autonomia e do saber camponês. “Isso não é saída. O agricultor tem que ser o dono do processo e só vai ser se usar aquilo que tiver de experiência em diversas culturas. Se sair do fumo de um ano para o outro porque viu que tem uma doença e for para um cultivo que traz um pacote igual, vai acabar voltando, já que o fumo tem a venda certa, ainda que de acordo com contratos ruins”, aconselha.
Para mudar de verdade, são fundamentais a paciência e a persistência, o que garantiria uma boa transição. “Claro que não é fácil, tem que modificar hábitos, aperfeiçoar a terra, mas dá para melhorar a qualidade de vida e também, com o tempo, ganhar melhor do que com o fumo, posso garantir. As pessoas que plantam no sistema oferecido pelas fumageiras são acostumadas a trabalhar com o corpo e não com a mente. A empresa traz tudo pronto. Quer sair? Então, o agricultor tem que pensar sua produção”, argumenta Anderson.
Delicada de tocar, faltava abordar uma questão com os Richter. Eles teriam informações dos suicídios de agricultores em Venâncio Aires? A resposta vem demolidora, nas palavras de Anderson: “Meu bisavô se suicidou em junho, aqui pertinho, nas terras dele”. Waldemar Richter plantou fumo praticamente a vida toda. Fazia tempo, era vítima da depressão. Matou-se por enforcamento, aos 85 anos.
Anderson crê que o suicídio do bisavô se deu por dois motivos: dívidas e uma longa vida lidando com agrotóxicos. “O veneno te leva para o precipício e o endividamento te dá o ultimo chute”, diz, encerrando com um alerta: “Na comunidade, tem outros casos de suicídio, também com plantadores de tabaco”.
A doença do suicídio
O Rio Grande do Sul é um dos estados que reúnem os melhores indicadores sociais no Brasil. Na contramão disso, está à frente também em suicídios, causa de tragédias familiares e debates efervescentes entre pesquisadores. As estatísticas do povo gaúcho atingem o dobro da média nacional. Entre 2007 e 2011, o estado teve 10,2 mortes por suicídio a cada 100 mil habitantes. Dados do Ministério da Saúde mostram que nove das vinte cidades acima de 50 mil habitantes que tiveram mais casos proporcionais estavam no Rio Grande do Sul. A maioria, no Vale do Rio Pardo.
Apesar de estar entre os municípios mais ricos do estado, Venâncio Aires, com 69 mil habitantes, teve 79 casos em cinco anos, o que equivale a 23,1 para cada 100 mil habitantes, na média extraída do período pesquisado pelo ministério. Isso deixa a cidade numa preocupante e mórbida segunda colocação na contagem dos suicídios no país e na primeira em solo gaúcho.
Em uma cidade que possui baixo índice de criminalidade, a polícia se ocupa muito da investigação de suicídios. E a hipótese predominante ao senso comum é a influência da cultura alemã e o rigor trazido por ela. Do ponto de vista da saúde, a informação é que 10% dos leitos do principal hospital local são reservados para a psiquiatria e a prefeitura investe em programas de prevenção, com internações e grupos de ajuda. Uma unidade do Centro de Valorização da Vida (CVV) foi instalada na cidade. Contudo, abrir o leque dos motivos de suicídios com os moradores, autoridades e associações é um tabu.
A Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra), que tem sede na região, rejeita a relação dos suicídios com o uso de agrotóxicos, mas, ainda assim, faz questão de afirmar que, hoje, o composto é pouco utilizado nas lavouras. Já o Sindicato Interestadual da Indústria do Tabaco (SindiTabaco), que representa as empresas, divulga a posição de que “atrelar casos de suicídio ao uso de agrotóxicos na cultura do tabaco é uma afirmação inconsistente”. O argumento de que lança mão a entidade é que, dos dez municípios com maior índice de tentativa de suicídios no Rio Grande do Sul, “apenas” três possuem “grande” produção de tabaco – Venâncio Aires, Santa Cruz do Sul e Canguçu.
A tentativa de atenuar o sofrimento dos agricultores da cultura do tabaco também parte das autoridades. Foi o que demonstrou, em setembro do ano passado, o prefeito de Venâncio Aires, Airton Artus (PDT), que está no segundo mandato. Durante a disputa à Presidência da República, ele procurou diálogo com a então candidata Marina Silva durante um evento em Porto Alegre. Artus não hesitou em aproveitar a oportunidade de falar sobre a “importância do setor fumageiro para as famílias de agricultores” e “desmistificar” as informações correntes sobre o segmento.
Ao entregar um documento sobre o setor, ele mencionou a relevância social e econômica do fumo. Basicamente, o que se fez foi compilar dados ofertados pelo SindiTabaco e pela Afubra. “Em 2013, o tabaco representou 1,3% do total das exportações brasileiras, com US$ 3,27 bilhões embarcados. Da produção de mais de 700 mil toneladas, mais de 85% foram destinados ao mercado externo. Para o Sul do país, a cultura é uma das atividades agroindustriais mais significativas. No Rio Grande do Sul, a participação do tabaco representou 9,3% no total das exportações; em Santa Catarina, 10,2%.” O Brasil é o maior exportador de fumo, posto disputado palmo a palmo com a Índia há duas décadas. Quase 90% da produção é enviada a uma centena de países, China à frente.
Em julho de 2015, Artus foi eleito o novo presidente da Câmara Setorial da Cadeia Produtiva do Tabaco, grupo técnico ligado ao Ministério da Agricultura. A se levar em conta: o prefeito é médico de formação e, além de pretender “desmistificar” a relação entre o cultivo do fumo e o sofrimento dos trabalhadores, quer mostrar ao governo federal que não existe relação direta entre a produção e o consumo de tabaco. Ele diz que, se o Brasil deixar de plantar, outro país assumirá esse mercado. “A fumicultura tem considerável importância socioeconômica no Rio Grande do Sul e em toda a região Sul do Brasil. Em Venâncio Aires, o setor tabagista, desde a produção, beneficiamento até a exportação, gera riquezas anuais superiores a R$ 600 milhões, o que representa cerca de 70% do valor adicionado do município”, defende.
Entretanto, ainda nos anos 1990, o primeiro arejamento de ideias sobre essa questão veio com uma pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que trouxe para o centro do debate o uso de agrotóxicos chamados organofosforados como causa para o alto número de suicídios entre fumicultores. O trabalho indicava a perspectiva de o veneno causar distúrbios comportamentais no agricultor.
Passadas duas décadas, a Pública entrevistou o engenheiro agrônomo e florestal Sebastião Pinheiro, hoje funcionário aposentado da UFRGS, mas ainda ativo na colaboração com o Núcleo de Economia Alternativa da universidade. Ele foi um dos responsáveis pela pesquisa, divulgada em 1996, que já avaliava a relação entre o índice de suicídios, o cultivo de fumo em Venâncio Aires e os agrotóxicos. Pinheiro diz que novos estudos não chegaram a nenhuma conclusão porque “destoam da realidade”. O pesquisador diz que a causa do aumento de casos de suicídio e depressão na região é clara: “As pessoas, adultas ou não, colhem fumo com as mãos e carregam as folhas embaixo dos braços, o veneno entra no corpo e provoca depressão. Depois, a doença se agrava e vêm os suicídios”.
Após essa pesquisa, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) financiou um novo estudo, com médicos e pesquisadores, mas Pinheiro não participou. Alguns levantamentos foram feitos, mas restaram inconclusivos. “Suicídio não tem uma origem única e direta. Pode ter uma série de fatores. Assim, um grupo de médicos não tem condições de analisar alterações no campo eletromagnético (pequenos campos magnéticos que dão estabilidade e equilíbrio às moléculas do corpo humano) de pessoas expostas a praguicidas ou agrotóxicos e, se eles não têm capacidade de avaliar isso, o resultado do trabalho destoa da realidade”, sentencia Sebastião Pinheiro.
De acordo com o engenheiro, a maioria dos agrotóxicos é responsável por alterações no comportamento das pessoas, o que, entre diversos males, leva à predisposição ao suicídio. Ele conta que analisou documentos internacionais civis e militares e encontrou elementos científicos que comprovam a existência da depressão causada por intoxicação, desencadeadora de suicídios.
A pesquisa da UFRGS aqueceu o debate, mas, sozinha, pôde fazer pouco. Um projeto de lei que tenta banir o uso de agrotóxicos organofosforados chegou a ser encaminhado ao Congresso Nacional, tomando-a como base. A proposta, no entanto, está parada desde 2011.
Nas andanças pela região, Sebastião descobriu também que crianças em idade escolar, no município vizinho de Santa Cruz do Sul, onde se concentram as sedes das fumageiras, chegaram, nos anos 1990, a tomar medicamentos fornecidos pela prefeitura para conter os efeitos da depressão. “Como as lavouras envolvem toda a família na produção, porque o cultivo é muito trabalhoso, as crianças também participam e ficam expostas”, explica o agrônomo. Segundo Pinheiro, o trabalho com o fumo é algo que necessita de muito esmero do agricultor. “O agricultor que cultiva o fumo tem uma mão de obra muito qualificada, mas é mal remunerado e fica exposto a doenças terríveis. Enquanto isso, uma associação como a Afubra enriquece com o ciclo produtivo do tabaco. Vá até uma loja da associação, tem supermercado, eletrodomésticos. Já vi vendendo até automóvel”, diz.
Autor do livro Fumo: servidão moderna e violação de direitos humanos (Terra de Direitos, 2005), o também pesquisador Guilherme Eidt Gonçalves de Almeida, especialista em direito sanitário pela Fiocruz, chama atenção para a conexão entre os meses de uso mais intenso de agrotóxicos nas lavouras de fumo (outubro, novembro e dezembro) e o período com maior número de suicídios. O mês de abril, que apresenta também índices altos de suicídio, coincide com a época da preparação dos canteiros pelos plantadores de fumo, afirma Eidt.
Sebastião Pinheiro lembra que o grau de toxidade dos agrotóxicos utilizados no país não é medido corretamente. “A classificação é enganosa para atender aos interesses da indústria do veneno. Assim, a periculosidade e a insalubridade a que estão expostos os agricultores não têm tamanho no Brasil, literalmente. E os mais vulneráveis são os que não podem mecanizar a produção, como os que trabalham com as folhas de tabaco”, enfatiza.
Outro estado, mesma tragédia
O ano era 2011 quando esta história começou a ser apurada. E não só o frio de uma tarde de sábado de inverno trazia um ar cinzento ao lugar. Os olhares de todos mostravam tristeza, como se estivessem à espera de notícias ruins em um corredor de hospital. A casa de Lídia Maria Bandacheski do Prado estava constantemente sob uma névoa de tensão. Ao fundo, finalmente, ela aparece, sentada – ou depositada – sobre uma cadeira. Não se permite sorrir em momento algum durante as horas de conversa. Não tem motivos. Até hoje.
Há dez anos, começou a apresentar náusea, perda de força muscular, desmaios, falhas de memória. Os primeiros médicos, sem saber o que fazer ou sem querer entender o problema, davam uma dose de soro e a mandavam de volta para casa. “Já cansei de passar mal e apagar, não lembrar de nada”, conta Lídia, que é de Rio Azul, no centro-sul do Paraná, terceiro maior estado produtor de fumo. “É difícil porque você tem filhos, quer lutar e dar o melhor para eles. Mas não posso mais dar o meu melhor.”
Quando tinha 9 anos, o pai morreu. E a garota assumiu tarefas pesadas da produção de fumo para que a mãe não sofresse tanto. “Eu dormia em cima das sacas que deixavam no paiol. A mãe cozinhava dentro do barracão. A gente ficava lá a semana inteira, nas terras arrendadas. Misturava o veneno com a mão, sem luva. Falavam que o veneno só fazia mal pro bichinho. Nunca a gente pensou que ia fazer mal pro ser humano.”
Mas faz. Lídia é a prova disso. Em 2009, depois de muitos anos de peregrinação hospitalar, finalmente médicos começaram a descobrir de que se tratava o caso. E ela virou o ponto de partida de uma pesquisa do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Após seis anos, os resultados preliminares do trabalho, cedidos à Pública, dão conta do problema. A avaliação médica e toxicológica de 46 fumicultores da região central do Paraná mostra que em 20 deles há sinais claros de relação entre intoxicação crônica e o trabalho na roça. Desses, 18 sofrem de transtornos de humor e dois apresentam problemas musculares e de coordenação motora. “A indústria quer falar que foi o produtor que não usou equipamento de proteção, mas, mesmo usando, não protege”, constata Paulo de Oliveira Perna, coordenador do núcleo e professor do Departamento de Enfermagem da UFPR. “Qual é a cultura que tem garantia de compra? É o fumo. Por mais que seja ruim a relação, o agricultor plantou, sabe que vai vender.”
A fala de Paulo Perna resume o que pensam muitos agricultores, inclusive Lídia: como escapar a essa cultura do fumo? Quando não se escapa, acaba-se expulso. Ela relata que algumas vezes chegou a ter paralisia dos músculos dentro da empresa que lhe comprava o tabaco, durante o processo de pesagem. Ninguém lhe ofereceu auxílio. Pelo contrário. Acabou descadastrada e, de quebra, terminou com uma dívida que não tinha mais como saldar.
Quatro anos depois do encontro tenso em Rio Azul, telefonamos a Lídia. A tristeza continuou a ser a marca da conversa. “Eu pensava que ia ter uma cura. Pelo menos voltar a andar, ter uma vida normal. Com o tempo, as coisas pioraram e agora já estou numa situação que não tem mais o que fazer.” Sem poder sustentar a vida no campo, ela e o marido se mudaram para a cidade, onde tiram o sustento apertadinho do auxílio-doença da Previdência Social e do salário de servente de pedreiro. “Fiquei tão abalada. É difícil. Você leva uma pancada. Pensei várias vezes em acabar com a minha vida, mas continuo aqui pelas minhas filhas.”
Sem saída é a regra
De volta a Venâncio Aires, vem a dureza de constatar que Anderson Rodrigo Richter e sua família são exceções. A ideia predominante entre os moradores da região do Vale do Rio Pardo é que não existe porta de saída da cultura do fumo. Talvez as propriedades antigas que guardam lembranças dos avós e bisavós ou mesmo de antepassados mais distantes que iniciaram as lavouras de tabaco expliquem. Ali, o trabalho está cravado em mentes e corpos como parte da genealogia. Idosos, jovens e crianças. Mulheres e homens. A herança faz com que gerações sigam a espalhar o monocultivo das folhas de fumo por quilômetros de solo. Na maioria das vezes, sem pensar nas consequências. Doenças, suicídios e trabalho infantil são exemplos de questões naturalizadas por um sistema que violenta os saberes de milhares de famílias de agricultores, provocando abalos emocionais e fragilidade física, além de uma nociva dependência econômica individual e coletiva.
Em 22 hectares de terra localizados na comunidade da Linha Olavo Bilac, o casal Bohn persiste com o cultivo de tabaco em Venâncio Aires. Porém, a persistência de Hugo e Glacy não é sinônimo de querer. Aos 63 anos, o marido reconhece que herdou automaticamente hábitos dos quais mal se recorda de como e quando começaram. Sabe o ano de nascimento do pai, 1916. E que, antes disso, com o avô, ainda no século 19, o fumo já dominava o cotidiano da família. Do pouco que se lembra sobre o início do próprio trabalho, diz que ao menos desde os 13 anos já se envolvia na produção. “São pelo menos 50 anos trabalhando”, murmura, com ar cansado.
O casamento tem 37 anos. Dele, vieram três filhos, todos homens. Hoje adultos, preferiram cortar os laços com a lavoura. Depois de auxiliarem no cultivo até a adolescência, desistiram de plantar fumo e foram procurar novos ares, migrando para áreas urbanas. “Os filhos ajudavam. Agora, estão trabalhando fora. Ninguém quis saber da propriedade”, explica Hugo, sem esconder o pesar. No entanto, o casal admite que, recentemente, também “tentou sair”, como se tivesse buscado uma fuga. E assume: foi recapturado. “Faz três anos, deixamos o fumo, tentamos plantar milho”, conta Glacy. Voltaram ao tabaco, mas sem vontade. Hugo tenta brincar com a situação: “Voltamos querendo sem querer”.
O voltar “sem querer” é explicável, assim como o desinteresse dos filhos do casal em permanecer no campo. Os agricultores revelam que o cultivo do tabaco exige muito. O trabalho é todo manual, delicado. Não há mecanização que possa assessorar o produtor. Geralmente em maio, no caso gaúcho, inicia-se a feitura dos canteiros, o que dura até junho. De julho a setembro, milhares de mudas são plantadas, uma a uma. Na sequência, vem o ciclo de manutenção e a aplicação de agrotóxicos. O corpo fica em contato frequente com o veneno, essencialmente as mãos. Entre outubro e janeiro, a época é da colheita, que se dá por etapas. Verifica-se o amadurecimento de cada folha. Debaixo de forte calor, o agricultor as retira meticulosamente para garantir que tenham boa qualidade e aparência, algo de que vai necessitar muito no momento de negociar preços com os representantes das empresas.
São três meses no trabalho de colher. O dia é longo. Horário de verão. E a noite não traz refresco, principalmente porque, depois de retirada do solo, a planta é levada a fornalhas, para secagem. Além de trabalhar o dia todo na terra, é necessário cuidar do forno. O fumo é pendurado numa estufa. A lenha mantém a temperatura alta, o que permite a qualidade do processo de cura. De madrugada, o agricultor deve acordar várias vezes para verificar a quentura da fornalha, que, a depender do momento, varia de 90 °C a 170 °C. O tempo para o descanso é mínimo. Até sirenes são instaladas nas estufas para garantir que o produtor não perca a hora.
Nesse conjunto árduo de atividades, Glacy é quem sente mais. E revela os males que lhe atacam o corpo. Ela não o faz, contudo, em tom de desabafo. Conta a situação quase como uma confissão de culpa. Dá a impressão de se responsabilizar por ser “frágil”. “Fico ruim se colher fumo molhado de sereno. Tenho ânsia de vômito, dor de cabeça, acabo de cama. É a nicotina [liberada pela folha], acho, quando a folha do tabaco está verde.” Aponta para o marido: “Ele nunca teve nada, o problema é só comigo. Não sei se é porque sou mulher, mais fraca”.
A agricultora de 59 anos responsabiliza, além de si mesma, o sereno e a nicotina pelo mal-estar que a persegue há anos. Ela não considera os agrotóxicos, mas, num repente, expõe desde quando trabalha e relembra que seu corpo não foi o único a reagir negativamente na família. “Eu já ia para a roça com o pai desde os 10 anos, para colher fumo.” Em seguida, confidencia ter dois irmãos que também sentiram o baque. “Eles iam parar na cama com o mesmo problema, os mesmos sintomas. Aí, o pai e a mãe tinham que fazer sozinhos, porque não dava pra ficar nem em pé. A gente não conseguia esticar os braços, as pernas. A dor começava na cabeça e tomava todo o corpo.”
O questionamento é inevitável: por que voltaram, então? Entreolham-se. “O fumo dá um pouco mais de dinheiro que o milho, um pouco mais”, comenta Hugo. Contido, ele admite que não diversificaram cultivos na propriedade. “Aí, o custo da produção [do milho] foi aumentando e não tivemos como escapar”, explica. Saíram de uma monocultura e pularam para outra. Aposentaram-se há três anos, mas voltaram ao tabaco para complementar a renda.
Porém, o discurso de que o tabaco pode aumentar a renda se comparado a outras culturas não sai da boca com convicção. Não é o argumento de que o preço é melhor o que fez o casal retornar “sem querer”. Foi um contrato com a fumageira Alliance One, que trouxe a “certeza” de venda, o que os empurrou a plantar 20 mil pés de fumo neste ano. Já foram 55 mil, em outros tempos, quando “a gurizada ajudava”. “Eles eram obrigados a fazer, tinham que ajudar, era trabalho da família”, ressalta Glacy.
A naturalidade com que Glacy e Hugo Bohn encaram o trabalho infantil que já existiu em sua família resulta da mesma força que os fez voltar a plantar o tabaco e negligenciar os riscos à saúde. Estão presos a um esquema poderoso que enredou toda uma região.
Adianta dizer não?
Enxada nas mãos, em meio a folhas de fumo, Maicon Inácio Wagner mora também na comunidade. Vê-se que idade não é critério para atrelar a vida ao cultivo do tabaco. Ele tem somente 33 anos. Os avós foram os primeiros a se instalar na localidade. “Que eu sei, sempre foi com o plantio do fumo que trabalharam. Meus pais continuaram e, depois, eu”, recorda.
As respostas são rápidas. Maicon conta que seu único irmão decidiu sair da “roça” e foi trabalhar “na cidade”, mais precisamente em Bento Gonçalves, município da Serra Gaúcha. “Eu não tive essa alternativa”, faz questão de destacar. Sobre gostar do trabalho que restou, breves palavras: “Decidi seguir. Não adianta dizer que não gosto”. E ele segue, faz 21 anos. Está desde os 12 na lida com a terra e o tabaco, que o levou a interromper os estudos no 6º ano do ensino fundamental. Vende o que produz para a norte-americana Universal Leaf Tabacos, líder mundial no comércio de tabaco em folha, que tem sede na cidade vizinha de Santa Cruz do Sul. A empresa, como fazem também as concorrentes, fechou contrato com o agricultor, o que o obriga a comprar todos os insumos e equipamentos necessários para o cultivo do fumo somente dela. “É o ano inteiro, direto. Vendem tudo”, diz.
Quando a conversa parecia se encaminhar para o fim, ele se abre um pouco mais. Avisa que já passou mal na colheita do fumo, mas busca ponderar: foi só uma vez. “Uma vez aconteceu, mas faz anos. Foi na lida com o fumo molhado, logo depois de uma chuva que a gente foi colher e senti um mal-estar. Sensação de ânsia de vômito, tontura, dor de cabeça. Nem foi aqui, estava ajudando um colega meu”, descreve o agricultor.
Uma mulher se aproxima. É a esposa de Maicon, Sandra Beatriz Hochscheidt, de 34 anos. Iniciou o trabalho com o plantio do fumo quando conheceu o marido, em 2003. Ainda mais calada do que ele, não reclama. Ao contrário, diz que gosta: “Nunca passei mal e está bom assim”. Mas e se mudassem de cultivo, diversificassem? “Para mim, tanto faz.” Ao lado dela, o filho de apenas 3 anos já corre entre os 50 mil pés que o casal plantou este ano.
A prisão
É difícil encontrar quem negue que o fumo é a principal fonte de renda das pequenas propriedades agrícolas das cidades do Vale do Rio Pardo, já que é o único produto que tem garantia de compra, pela assinatura de contratos entre a indústria fumageira e os agricultores. É assim que se constrói a cadeia que coloca os pequenos produtores na condição de empregados na própria terra, num esquema imposto pelas empresas. Tal lógica persegue, realmente, a previsibilidade e a segurança, mas não para o trabalhador do campo. As garantias são voltadas para o cumprimento dos contratos de exportação de fumo em folha com o mercado internacional. O sistema integrado, como foi batizado pelas empresas, é a prisão dos camponeses.
O ritual de assinatura dos contratos se repete todos os anos. Nos meses de abril e maio, o agricultor, procurado por funcionários chamados de “orientadores” das empresas, já acertou a venda de tabaco em folha, num acordo de prestação de serviços no qual não há nenhuma possibilidade de negociação por parte do pequeno produtor. É um documento de adesão em que resta especificar o tipo de fumo (Virgínia, Burley e Comum), o tamanho da área onde será feito o plantio, a variedade de semente a ser utilizada, a estimativa de pés que serão cultivados e a quantidade de tabaco, em quilos, a ser entregue às fumageiras. Do começo ao fim do processo, o agricultor está amarrado. Desde a compra de sementes, insumos, agrotóxicos e equipamentos de proteção até a comercialização das folhas de tabaco, que vai ocorrer, em média, a partir de março do ano seguinte, o dono da terra está comprometido, até mesmo correndo o risco de se endividar com a empresa se não cumprir a meta prevista na estimativa. Se entregar menos do que prometeu no documento, cai em dívida, já que, além de venderem grande variedade de itens aos camponeses, as fumageiras, muitas vezes, exigem investimentos dos produtores, como a construção de fornalhas para secagem do fumo.
Sobre os contratos, é a procuradora Margaret Ramos de Carvalho, do Ministério Público do Trabalho no Paraná, quem diz: “Eles levam a sério. Rejeitaram todas as propostas que foram feitas. Não tinha como conciliar. Nenhum ponto era fácil de chegar a acordo. De um início de conversa, a gente passou a divergências sérias.” O “eles” com quem a procuradora tinha – e tem – divergências sérias é a indústria do tabaco. Em 2007, após um longo período de investigação, a procuradora apresentou três ações contra as empresas, em simultâneo a seus colegas de Santa Catarina, que impetraram outras três ações com a mesma fundamentação. Em linhas gerais, argumentavam que o contrato estabelecido entre produtor e empresa configurava uma relação de trabalho, e não um acordo entre fornecedor e comprador.
Ao jogar luzes sobre os contratos de compra e venda do tabaco, não restou dúvida de que a relação era muito desigual. Os produtores estavam obrigados a comprar das empresas um pacote tecnológico. Para isso, tinham de fechar um acordo de financiamento que, invariavelmente, era garantido por entidades ligadas à indústria, sempre com juros acima da média do mercado, numa trajetória que resultava em um endividamento que deixava agricultores totalmente atrelados a determinada corporação durante muitos anos. No final de uma safra dura, a comercialização era exclusividade da empresa, sem possibilidade de contestação dos preços apresentados. “Tudo é muito escabroso, muito impactante. Falam desse contrato de integração como se fosse uma coisa tão comum, como se não tivesse nenhuma ilegalidade. É muito naturalizado”, queixa-se a procuradora.
A maior parte dos pontos do contrato continua em vigor. Quando as ações foram apresentadas, a indústria do tabaco correu para deslocá-las a Brasília sob o argumento de que apenas na capital federal se poderia delimitar regras comuns que teriam validade para todo o Brasil. As empresas sabiam que, no Sul, a chance de vitória era reduzida. No Paraná, o juiz Cássio Colombo Filho havia concedido liminar suspendendo os contratos de compra e venda.
Pouco depois, o magistrado teve de aceitar o deslocamento do caso para a distante Brasília. “Ora, se o Ministério Público do Trabalho já investigou a fundo a questão e ajuizou esta demanda, há pelo menos um razoável indício de prova de que os contratos são celebrados de forma abusiva e necessitam ser IMEDIATAMENTE revistos”, protestou, em seu último despacho, no qual o juiz registrou a existência de pressões econômicas, sociais e políticas envolvendo o assunto.
Em 2011, o caso chegou à capital. E foi resolvido de maneira quase imediata. “Os procuradores de Brasília não participaram da investigação, que foi uma investigação cuidadosa, que demorou muito tempo para a gente amadurecer, decidir qual tipo de ação seria apresentado. Em menos de 15 dias, fizeram acordo. Minha investigação era de dez anos”, critica a procuradora, claramente medindo as palavras na tentativa de evitar novos problemas.
O que o acordo expressa é, basicamente, a linha de argumentação das empresas em seguidos pareceres, documentos, materiais de divulgação. Os produtores passam de vítimas a culpados por tudo o que ocorra de ruim na produção de fumo. Na questão dos agrotóxicos, de modo geral, o problema deixa de ser entendido como uma consequência da falta de opção do camponês diante de custos altos, e as dívidas passam a ser uma questão de ignorância que deve ser combatida mediante o oferecimento de cartilhas de esclarecimento.
No Paraná, a Justiça do Trabalho já havia reconhecido que a Afubra não tinha a menor condição de representar os trabalhadores. Em Brasília, a entidade voltou a figurar como parte da cadeia de divulgação das boas práticas do setor, em parceria com o SindiTabaco. Ambas deixam de ter responsabilidade central no caso, devolvendo a bomba ao produtor.
“Se fosse para fazer aquele acordo, eu teria feito há muito tempo aqui”, afirma Margaret. “Não é uma ação para ser resolvida por acordo. São coisas inconciliáveis. O certo seria a indústria pagar ao produtor como empregado, o que as empresas não aceitariam jamais.” Sem poder mexer em um tema sobre o qual o MPT firmou um acordo, Margaret e outros procuradores do Sul buscam saídas para a situação dos produtores. Para ela, o que resta é tentar encontrar a porta de saída dessa cultura, ampliando a oferta de ações de diversificação.
Sempre reféns
Além de acorrentados ao sistema integrado, os pequenos agricultores são reféns dos métodos das fumageiras no que se refere ao ritmo do mercado e aos preços do fumo. E as empresas têm peso político. Em 2007, ao chegar ao Ministério da Agricultura, o catarinense Reinhold Stephanes, que fez carreira política e empresarial no Paraná, firmou portaria revogando os dispositivos válidos desde a década de 1990 para a classificação do tabaco, o que baliza os preços impostos ao produtor. O que deveria ser solução para antigas reivindicações dos produtores acabou como nada mais que um remendo.
A nova tabela de classificação de fumo manteve uma margem enorme para que as empresas decidam quanto vale o produto entregue pelo agricultor. No caso da variedade Virgínia, a mais comum no Brasil, há 41 classes diferentes para que se encaixe o produto. É um complexo e subjetivo cruzamento de grupos, subgrupos, classes, subclasses, tipos e subtipos. Difícil entender? Imagine ter de fazer isso em questão de segundos, enquanto o trabalho de um ano inteiro rola pela esteira e o técnico da empresa define seu valor.
Se o representante da indústria disser que as folhas têm mais de metade da superfície tomadas por cores “castanho-claro a castanho-escuro”, o fumo terá um valor. Mas, se achar que a cor laranja predomina, passa-se a outro patamar. O problema é que ainda será preciso avaliar se o produto tem ou não elasticidade e qual o grau dessa elasticidade. Avalia-se também se há manchas esverdeadas, pálidas, acinzentadas, avermelhadas. Cruza-se tudo isso e tem-se o preço final da produção. Quem reclama está fora do jogo.
“O principal problema é que o agricultor não tem chance de comercializar o produto com o preço que deveria comercializar”, constata Vilmar Sergiki, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Palmeira, na região central do Paraná. Há muitos anos, ele é uma pedra no sapato da indústria devido a parcerias com organizações que criticam a produção do fumo e trabalham pela criação de portas de saída. “Não tem abertura para o agricultor discutir o contrato, principalmente na questão do preço. Não tem um mínimo. A empresa rebaixa a classe do jeito que entende. Eles rebaixam e o agricultor não tem autonomia nenhuma para discutir.”
Na prática, a existência de tantas classes serve para que a empresa opere sobre o preço de acordo com o momento do mercado. Com demanda em alta, os valores sobem. Com excesso de oferta, os valores descem, o que comprova que não se trata de uma questão técnica. Aquilo que parece muito bom no começo de uma safra pode ser trágico ao final dela. No papel, o acordo soa perfeito: garantia de produção comercializada, assistência técnica, crédito. A Afubra diz que o valor bruto médio por família é de R$ 72.200 ao ano, somando o fumo e outras culturas que se produza na propriedade.
Quando se coloca na ponta do lápis, a situação muda. O sindicato de Palmeira fez, entre 2007 e 2008, um cálculo de absolutamente todos os custos da produção, começando no valor da hora de trabalho e terminando na construção da estufa e do paiol, passando por agrotóxicos, combustível, lenha e energia elétrica. Cada quilo de fumo custava à época quase R$ 5 para um agricultor que obtivesse uma produtividade considerada boa, valor que subia para R$ 6 em caso de algum imprevisto. No final, sobravam menos de R$ 2 por quilo para os produtores de melhor sorte e nem um centavo para os que tinham gastos mais elevados.
Os cálculos não foram atualizados, mas a situação não se alterou em linhas gerais e os valores pagos por quilo de fumo continuam mais ou menos na mesma margem. No começo da última safra, os agricultores tomaram prejuízo devido a uma depreciação imposta pela indústria e considerada abusiva por alguns sindicatos. Quem deixou para vender no final, porém, conseguiu mais.
“Esta é mais uma das estratégias das empresas para fazer pressão sobre os produtores. Quando vendem no começo da safra, geralmente é para pagar a despesa. O produtor está há quase um ano sem receber. Então, precisa vender”, afirma Cleimary Zotti, técnica do Departamento de Estudos Socioeconômicos Rurais (Deser), sediado no Paraná. O Deser é uma referência no estudo sobre a cultura do tabaco. Desenvolve pesquisas, trabalha com perspectivas futuras, incomoda a indústria. Nos últimos anos, notou duas mudanças substanciais e interligadas na relação entre empresas e produtores. Primeiro, as corporações deixaram de avalizar processos de financiamento no Paraná. A consequência disso leva à segunda alteração. Antes, a queixa eram os empréstimos a juros altos, com endividamento quase inevitável. Agora, o tema é a falta de crédito, que acaba excluindo vários produtores.
“A empresa trazia um pacote e o agricultor era praticamente o empregado. Num processo de integração, o agricultor pagava pelo pacote. Agora, o agricultor tem de usar uma parte do valor da venda para já comprar da empresa os insumos. Para conseguir pagar as despesas, é um valor razoável. Não é qualquer família que consegue”, avalia Cleimary. “A tendência da indústria do fumo é concentrar. Concentrar em um número menor de municípios, concentrar em um número menor de produtores.”
Entre as safras de 2011 e 2014, a Afubra constatou que em torno de 25 mil famílias deixaram a cultura do tabaco. Na comparação com dez anos atrás, o número de 162 mil famílias envolvidas atualmente representa uma saída de 36 mil, com 115 mil hectares a menos de plantações. Motivo para comemoração? Depende. Se todas estivessem envolvidas em culturas menos agressivas e mais rentáveis, sim. Não é o caso.
A redução no número de fumicultores corresponde às mudanças na conjuntura internacional. A Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, que completa dez anos em 2015, tem levado a um desestímulo global ao consumo de cigarros. Os pontos firmados entre a Organização Mundial da Saúde (OMS) e os 192 países signatários preveem restrições à publicidade e à produção de variedades atrativas para o público jovem, além de estimular o oferecimento de saídas aos agricultores. No Brasil, a prevalência do tabagismo na população adulta está em 10,8%, segundo dados do Ministério da Saúde, uma redução de 30,7% em relação a 2006, primeiro ano após a ratificação da convenção-quadro. No final da década de 1980, um em cada três brasileiros fumava.
À parte essa questão, a produção africana, em particular a do Zimbábue, cresce em ritmo chinês e já faz sombra à indústria brasileira. Diante disso, a Afubra e o SindiTabaco, mais uma vez, resolveram andar de mãos juntas. A tendência de bastidores é deixar ao Zimbábue a condição de produtor em larguíssima escala e reduzir a produção brasileira para que passe a contar com melhor padrão de qualidade – melhor valor agregado, em linguagem mercadológica. A associação que reivindica o direito de representação dos fumicultores emitiu comunicado no início da safra atual indicando sua solução imediata para o problema: reduzir em 12% a produção da variedade Virgínia e em 20% a Burley – um total de 607 mil toneladas, ou 90 mil a menos que na colheita anterior.
“Querem os produtores mais bem capitalizados, mais bem estruturados. O pessoal que tem área própria, que não usa mão de obra de fora, que tem lenha própria, que produz com mais qualidade. Estão fazendo esse tipo de seleção. Basicamente, é quem tem menos custo”, resume Nelson Dias da Silva, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São João do Triunfo, vizinha a Palmeira.
O problema é que uma fatia expressiva dos produtores não está nesse seleto grupo. Quase 30% não têm terras próprias e outros 34,7% produzem em unidades que têm entre um e dez hectares. De acordo com dados da Afubra, a escolaridade é baixa: 89,9% cursaram o fundamental incompleto e 6% terminaram o fundamental.
Silvana Rubano Turci, pesquisadora do Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde da Fiocruz, considera que esse é um entre vários fatores que dificultam a migração para outras culturas. Ela e seus colegas reforçaram, com um estudo conduzido com mulheres envolvidas na produção de fumo em Palmeira, uma impressão que já havia aparecido em pesquisas e em conversas: a maior parte das pessoas deixaria a produção de tabaco se tivesse alternativa.
“As trabalhadoras são mulheres muito inteligentes. Sabem a capacidade que têm de transformar o ambiente em que vivem. É muito difícil para uma família em pequena propriedade mudar de atividade sem um apoio muito forte para que isso aconteça. Tem que ver qual a vocação da família, qual a vocação do município”, diz. “É um trabalho muito pesado. E isso acaba gerando um êxodo, principalmente das filhas, que vão para a cidade na esperança de um emprego melhor.”
Esse êxodo dificulta ainda mais a migração para outras culturas. Uma lavoura agroecológica ou orgânica, sem aplicação de venenos, demanda um esforço físico muito elevado, difícil de ser cumprido pelos mais velhos. No ano de ratificação da convenção-quadro, o governo federal lançou o Programa Nacional de Diversificação em Áreas Cultivadas com Tabaco, sob a coordenação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), com o objetivo de encontrar portas de saída para a produção do fumo.
Segundo o MDA, até agora foram desenvolvidas atividades em 800 municípios, num total de 45 mil famílias. Organizações da sociedade civil têm sido contratadas para trabalhar diretamente com os produtores. A última chamada pública, realizada em 2013, prevê o repasse de R$ 53 milhões até o final de 2016. Em termos de quantidade de recursos, uma luta inglória: a indústria do tabaco no Brasil diz auferir uma renda anual superior a R$ 5 bilhões.
O Deser trabalha a criação de alternativas com 1.200 famílias no Paraná e tem sentido a necessidade de acelerar esforços à medida que aumenta o número de dispensados pela indústria. “O resultado que temos mostra que as famílias têm diversos perfis. Em média, a quantidade de terra não é muito grande. Temos uns 20%, 30% de famílias que têm um hectare, um hectare e meio, e agricultores que produzem fumo na terra alheia. Como a gente trabalha diversificação nesse processo?”, questiona Cleimary, que conhece bem a dificuldade de lidar com um oponente que tem mais recursos e um escopo de argumentos que se renova a todo instante. “Quando a gente fala da indústria do tabaco, tem de saber que eles são profissionais. São bons no que fazem. Me admira a falta de escrúpulos. Quando chegam para argumentar com alguém que não tem muita noção da situação, conseguem comprar essa pessoa com muita facilidade. Essa pessoa passa a depender da indústria do tabaco.”
Família “feliz”
José Henrique, 49 anos, natural de Venâncio Aires, hoje é quem comanda os negócios na propriedade da família Haas. Herdou do pai, Beno, o gosto pelas lavouras de fumo. “Vim para cá com 6, 7 anos, quando a família se mudou para esta propriedade. Sempre estava junto na lavoura. Em épocas de escola, ia para a aula e, quando podia, ajudava. Não tinha por que ficar sentado em casa”, diz logo de cara.
Sobre a comunidade onde vive, ele garante ter testemunhado o crescimento econômico proporcionado pelo tabaco, que é o único plantio alcançado pelos olhos por ali. Relata que antes havia a erva-mate, mas que o fumo criou condições para aumentar a renda dos produtores e prevaleceu, engolindo outras culturas. “Aqui está o nosso sustento, nosso pão. Tudo que você vê vem do fumo”, afirma, apontando para uma imponente caminhonete e às boas casas construídas nos 23 hectares de terreno, onde plantaram 85 mil pés de fumo para a safra 2015-2016.
Apesar de reforçar os ganhos materiais, o produtor não nega que o trabalho já lhe causou problemas físicos. “Quem não se cuida está sujeito. Quem vai colher o fumo molhado e não se protege pode passar mal. Você se molha e, até por causa do calor, por causa do sol, dá reação. Tem alguma parte tóxica que o corpo não resiste, mas nem todos têm problema. Eu já tive, mas agora estou me protegendo, usando essas roupas para a colheita, o que não é muito bom para usar, mas a gente usa”, confessa. Só depois da menção de José sobre o uso do equipamento de proteção individual (EPI) é que a voz da sua esposa, Dulce, se apresenta: “A gente coloca [o EPI] e chega certa hora, tipo nove, nove e meia, a hora que o fumo está mais enxuto, e tira. Daí, coloca roupa cumprida normal”, comenta. Logo em seguida, o marido retoma a palavra, para cair em contradição: “Não dá pra ficar [com o EPI]. É muito quente”.
Os Haas têm contrato de prestação exclusiva com uma das fumageiras, a Souza Cruz, de origem brasileira e hoje subsidiária da British American Tobacco no Brasil. “Só faço negócios com a Souza Cruz, nunca mudei. Desde que eu comecei, meu pai já estava com eles e assim ficou. Tem outras, mas optamos pela exclusividade”, explica José Henrique, que agora arrenda terras para outras duas famílias de agricultores. São os chamados “sócios”, pessoas que plantam na propriedade alheia e pagam com trabalho.
Atualmente, dos membros da família, somente José Henrique e Dulce vão à lavoura de fumo. Beno, o patriarca, tem 80 anos e não planta mais. Dessa forma, usam mão de obra de terceiros, principalmente na colheita, por três meses. “No último ano, assinei até carteira para eles”, declara José, com o tom de quem fez um favor ao registrar quem trabalha, entregando mais uma evidência de que o normal na região – não exatamente no caso isolado dos Haas – é a precarização das condições laborais.
O “normal”, também, é o trabalho de menores de idade. Após uma pergunta sobre os motivos de os jovens da região não gostarem do plantio do fumo, a resposta vem cortante: “Porque é um serviço mais pesado. Se o jovem ficou até os 18 anos sem fazer aquilo, vai no que é mais fácil depois”, julga José Henrique. “Desde pequenino, eu ajudo, não deixei de estudar. Não fiz uma faculdade, mas estudei até o segundo grau. Ia para a aula, chegava em casa e ajudava. Não me fez mal nenhum esse meio dia na roça”, conclui.
Quem está doente?
As palavras mais contundentes ditas na propriedade da família Haas, porém, ainda estavam por vir. Sandra Helena Wagner, secretária do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Venâncio Aires, ligado à Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag-RS), estava presente à entrevista. E resolveu intervir na questão. “Hoje, as nossas crianças não trabalham. Se vão ajudar, catam umas folhinhas que caem no chão. A preocupação dos pais é levar os filhos à aula. Se houve isso [trabalho infantil] faz muitos anos, mas, mesmo assim, as crianças que ajudaram na roça aprenderam uma profissão. Eu sou um exemplo, trabalhava na roça desde pequeninha. Aprendi a ser gente, ter valores, princípios, ter respeito pelos mais velhos, pela sociedade”, defende.
O discurso prossegue e o teor se acentua. Com uma crítica desmedida às gerações mais jovens e a defesa nada sutil do trabalho infantil, a representante do sindicato arremata: “Sou uma cidadã que trabalha, que tem carteira assinada, mas e a geração de hoje? Quer trabalhar? Estamos criando uma geração de vadios que só tem estudo, que acha que não pode mais trabalhar. E que geração vai ser essa, no futuro? Nem todo mundo pode ficar empregado no escritório. E se não tiver pegado gosto de trabalhar em qualquer área? O que a gente mais vê hoje é um bando de vadios, se drogando, outros se prostituindo, uma sociedade doente por falta de se ocupar desde pequeno”.
Uma pesquisa concluída no ano passado pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) identificou que 90% dos agricultores da região não completaram o ensino fundamental. Entre as crianças, 150 mil são de famílias de agricultores de tabaco. Um levantamento do Deser reforça o cenário. Feito com 1.128 fumicultores do Sul, em 2008, ele mostrou que 40% dos filhos homens e quase 20% das mulheres trabalham no cultivo. Além disso, 9% dos filhos abaixo de 12 anos contribuem na lavoura. Outros estudos da Unisc indicam que as crianças sofrem mais que os adultos com os agrotóxicos e citam déficit de crescimento e de cognição, além de desnutrição, como consequências do trabalho infantil nas plantações de fumo.
Também instituições internacionais se debruçaram sobre o tema e mostraram que o trabalho das crianças é somente um dos reflexos da perversidade do sistema. Em 2003, estudo realizado pela Christian Aid – organização de origem norte-americana e com sede no Brasil – afirmava que crianças brasileiras de famílias de agricultores do tabaco realmente vão à escola, mas a ajuda nas plantações, resultado de fatores socioeconômicos e culturais, é fundamental para alcançar as metas impositivas da indústria.
No Paraná, antes de mergulhar na investigação dos contratos feitos entre empresas e agricultores, o que chamou atenção da procuradora Margaret Ramos de Carvalho foi a questão do trabalho infantil na produção de fumo. No ano de apresentação das ações contra as fumageiras, o MPT calculava haver 80 mil crianças lidando com essa cultura no Paraná e em Santa Catarina. “Quando fui discutir com os produtores a questão do trabalho infantil, cobrando deles essa responsabilidade, percebi que eles eram vítimas, tanto quanto as crianças e os adolescentes.”
O acordo feito em Brasília, que atropelou a ação do MPT no Paraná, seguiu a lógica de colocar somente o pequeno na linha de frente da culpa também nessa questão. Hoje, no caso de flagrante de trabalho de menores, só é prevista punição ao agricultor. Se isso ocorrer por duas vezes, o produtor deve ser automaticamente descadastrado pelas empresas. Além disso, os camponeses têm de se comprometer a apresentar às corporações comprovantes de frequência escolar, também sob o risco de exclusão.
Noite de angústia, dia de alívio
Já é noite de 1° de setembro em Venâncio Aires. O corpo sente o cansaço de quem circula desde as primeiras horas da manhã e a mente está atordoada depois das declarações na propriedade dos Haas. Ainda havia 31 quilômetros a percorrer até Santa Cruz do Sul. Ao menos uma parada era necessária antes da partida. No bar, a conversa com o proprietário tenta virar uma entrevista, barrada sem cerimônias. “Falar o quê do fumo? É ele que faz girar meu bar, que faz girar esta cidade. Sem tabaco, isso tudo aqui quebra. Você quer que eu fale dessas coisas delicadas?”, indaga o comerciante, que nem chega a pronunciar seu nome. O que disse, entretanto, foi o bastante.
Trinta minutos de estrada e a marca da líder do mercado de fumo do país dá as “boas-vindas” a quem chega. As folhas de tabaco esculpidas na madeira e o nome da Souza Cruz estampado logo nos primeiros metros de solo de Santa Cruz do Sul já dão uma ideia do tamanho do poder. Do símbolo mostrado no portal de entrada do município às lavouras cultivadas por 4 mil famílias da cidade, onde o fumo se espalha sufocando gente e outros cultivos, o cerco está imposto. E ele aprisiona desde os agricultores até a economia regional, em que comerciantes e trabalhadores urbanos são atingidos em cheio pelo discurso de que só há vida porque existe tabaco. Rodeados pelas poderosas empresas fumageiras, os pequenos produtores têm apenas brechas para contar a história a partir do ponto de vista de quem trabalha na terra. E são poucos os espaços que se abrem para quem deseja ouvi-los.
Passava das oito da noite e ainda havia trabalho pela frente. Um telefonema com hora marcada: 20h30. “Não posso ser identificado e não vou poder te encontrar pessoalmente, mas vou te passar alguns contatos que podem render algo sobre o tabaco em Santa Cruz”, diz a pessoa do outro lado da linha. Angústia. Há dias, os contatos tentados nos sindicatos de trabalhadores da cidade, na Unisc e no Ministério Público tinham dado em nada. Ninguém podia ou queria falar no município que ocupa o 11° posto em números de suicídio no país.
Pudera. A sensação na cidade é que as fumageiras estão presentes em todos os cantos. Uma atendente de farmácia abaixa a cabeça e ignora a pergunta sobre a dependência do comércio municipal em relação ao tabaco. Outra moça, dessa vez numa padaria, passa um bom café, mas o olhar por cima do ombro do interlocutor denuncia o temor de que alguém esteja à espreita sempre que se toca no assunto. Não que exista uma pressão direta das empresas sobre a população, porém é permanente o discurso de que qualquer crítica à indústria do fumo é um estímulo para que ela se vá da cidade, o que causaria um estrago sem precedentes na economia local.
Se a marca da Souza Cruz está estampada na entrada do município, a da americana Universal Leaf Tabacos está em destaque no principal parque público da cidade. Os nomes delas, aliás, são lidos em muitos lugares. E os de outras fumageiras também: a estadunidense Alliance One, a britânica Philip Morris, a chinesa China Tobbacos e a japonesa JTI. Uma miríade de nomes e nacionalidades que confunde quem tenta entender a situação.
Enfim, chega o sol do dia 2. Acionado o telefone anotado na noite anterior. Do outro lado, uma voz feminina confirma o lugar e o nome do coordenador. “Aqui é do Capa, sim, e o Sighard está.” Capa é o Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia, uma organização não governamental nascida da Igreja Evangélica da Confissão Luterana. Sighard Hermany é quem coordena o projeto.
Do hotel ao Capa, o caminho é curto e a distância é percorrida a pé. Logo, um homem alto, barba e cabelos brancos, se apresenta. É Sighard e, pela primeira vez em todos os contatos feitos em Santa Cruz, a resposta sobre falar abertamente sobre a cultura do tabaco é positiva. Alívio.
Santa-cruzense de nascimento, o coordenador da organização explica que ele mesmo é filho de plantadores de fumo. “Os meus pais sempre plantaram, tentaram um ou dois anos não plantar, mas voltaram”, diz o descendente de alemães que tem 62 anos. Engenheiro agrônomo e com raízes familiares na cultura do tabaco, Sighard sabe bem dos problemas criados pelo monocultivo. Por isso, partiu da cidade para vivenciar e estudar métodos agroecológicos de diversificação de culturas. “Saí de Santa Cruz por um tempo. Voltei para cá no projeto do Capa, em 1984, para trabalhar em alternativas no campo, mas não é fácil. Nossa estrutura é pequena e os poderes das indústrias são grandes”, observa.
O coordenador do Capa fornece detalhes da vinda do fumo ao Vale do Rio Pardo. Com a chegada das primeiras famílias alemãs, veio também o tabaco, em 1849. No ano seguinte, brota a primeira safra. Em 1924, são introduzidos os primeiros contratos da indústria fumageira com os colonos alemães. Quem chega à frente é a Souza Cruz, que já introduz a adubação química do fumo e o sistema integrado de produção.
E Santa Cruz é o berço de tudo. A casa das fumageiras, o que faz entender tanto medo e tamanha sensação de vigilância. Mesmo nesse contexto, duas pessoas, além de Sighard, finalmente se candidatam a falar. Dois agricultores. Origens e idades diferentes. Em comum, o fumo que atravessou suas vidas.
Laércio André Frantz nasceu em Santa Cruz, no 3° distrito da cidade. Tem 30 anos. Cultivou tabaco por boa parte desse tempo. Como tantos na região, os avós começaram, os pais herdaram e ele continuou. A diferença é que buscou se libertar da indústria fumageira depois de um tempo. O ano da decisão foi 2006. “Levei meu pai para o hospital pensando que estava morto, o médico falou para ele: ‘Escolhe entre sua vida e o plantio do fumo’. Mesmo assim, ficamos mais três anos plantando, só que mudamos para o fumo agroecológico, sem aplicação de agrotóxicos”, diz Laércio.
A transição deu certo. Em 2009, a família Frantz deixou de vez o tabaco. Hoje, na mesma propriedade, cultivam verdura e frutas, fazem doces e criam gado de leite. “É outra qualidade de vida. Agradeço a minha labuta de hoje, que dá mais saúde para a minha família e garante a nossa renda. Se puder escolher, a última coisa que faço é voltar a plantar fumo”, ressalta o agricultor.
Nascido no município de Sinimbu, a 60 km de Santa Cruz do Sul, Guilherme Padilha, aos 19 anos, é estagiário no Capa, onde trabalha com assistência técnica e extensão rural. Na cidade de origem, mantém os laços com os pais, Paulo Sérgio e Vera Salete, e os irmãos, Gustavo e Milena, família que ainda vive do plantio de tabaco, algo que já foi diferente. “A atividade no cultivo de tabaco tinha uma pequena representação no trabalho da família, já que ela era, principalmente, produtora de alimentos e diversificava as fontes de renda. Nos anos 1990, a produção de alimentos diminuiu, em função das ações que a indústria fumageira realizou, oferecendo crédito às famílias, que, em troca disso, aumentavam a produção de tabaco”, relata Guilherme.
O jovem entra sem receio na polêmica sobre o tabaco ser a principal fonte de renda das pequenas propriedades no Vale do Rio Pardo. “Ele segue sendo o único produto que tem garantia de compra, mas, em um estudo que realizei sobre a produção de tabaco do meu pai, identifiquei que os custos de produção, com a mão de obra inclusa, chegavam a até 98% sobre o montante produzido”, menciona.
Guilherme, que trabalhou dos 14 aos 18 anos no cultivo de folhas de fumo, agora auxilia os parentes apenas aos finais de semana, com poucas horas de trabalho, já que passa a maior parte do tempo em Santa Cruz. Feliz, o rapaz conta que a família está em um quadro de conversão agroecológica, implementando outras atividades, como pomar, criação de cabras, árvores frutíferas nativas e cereais. Aos poucos, constroem canais de comercialização para esses produtos. “Além disso, toda a nossa alimentação é produzida na propriedade, o que diminui significativamente os custos fixos”, aponta.
Em um país que ostenta até hoje um ramo de fumo no brasão oficial da República, evidência da ligação estreita e antiga com a planta e o poder da indústria fumageira, não à toa esta história começou a ser contada por Anderson Richter e terminou com Laércio Frantz e Guilherme Padilha. Enquanto algumas autoridades e a sociedade em geral não se atentam para o que está guardado dentro de cada cigarro, há quem resista e aponte as portas de saída.
Outros estragos
Apesar dos avanços nos combates às doenças relacionadas ao tabaco, o Brasil ainda tem um caminho longo pela frente. O Ministério da Saúde ressalta que o hábito de fumar continua a ser a principal causa de mortes evitáveis e é um dos fatores centrais nas causas de doenças não transmissíveis, como câncer, enfermidades pulmonares e cardiovasculares, responsáveis por cerca de 70% dos óbitos no país.
Estudo financiado pela Aliança de Controle do Tabagismo (ACT) mostrou que o custo do fumo para o sistema de saúde brasileiro é de R$ 21 bilhões ao ano, ao passo que toda a arrecadação tributária com essa indústria fica em torno de R$ 6 bilhões. A pesquisa feita pela Fundação Oswaldo Cruz e pelo Instituto de Efectividad Clínica y Sanitária, da Argentina, analisou 2,4 milhões de casos de doenças. Desse total, 34% eram atribuíveis ao tabaco. Em registros de alguns tipos de câncer (laringe, boca e pulmão), esse percentual chegou a quatro em cada cinco casos. De 458 mil óbitos, 28% foram relacionados à questão.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima em 6 milhões o número de mortos anualmente pelo hábito de fumar, número que pode crescer para até 8 milhões se mantidos os ritmos atuais. Globalmente, o fumo causa em torno de 70% dos casos de câncer de pulmão, 40% das doenças respiratórias e 10% das cardiovasculares.