Venda de gás, água, transporte e combustível. Para além do tráfico de drogas, há vários outros mercados lícitos que hoje alimentam e financiam o crime organizado. Por isso, o combate às facções, que assombram a vida de moradores e perpetuam a violência, deve passar por estratégias que vão além das incursões e operações policiais, já comprovadamente falhas. É o que três especialistas em segurança pública defenderam em entrevistas à Agência Pública.
“É necessário que haja maior fiscalização e regulação de mercados lícitos que hoje são controlados por diversos grupos armados em territórios populares”, explicou a pesquisadora Carolina Grillo, coordenadora do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (UFF). Ela cita a fiscalização do setor de transporte, do mercado imobiliário, do setor de telecomunicações e da oferta de gás e água, que são controlados por grupos armados em territórios que eles dominam, como forma de atacar “as bases econômicas desses grupos”.
Grilo ressalta, entretanto, que esse não tem sido o caminho seguido pelo governo do Rio de Janeiro, liderado por Cláudio Castro (PL). “A principal estratégia de combate e de controle do crime no Rio de Janeiro tem sido uma política pública que já se provou ineficiente ao longo das últimas décadas: as operações policiais de incursão armada em território sob domínio de grupos armados”, explica.
Por que isso importa?
- A megaoperação ocorrida no complexo da Penha e arredores, no Rio de Janeiro, esta semana tornou-se a maior chacina da história do país com pelo menos 121 mortos.
- Enquanto o governador Cláudio Castro chamava a operação de “sucesso”, especialistas criticavam a falta de liderança e controle das operações no Rio.
“A política de segurança pública implementada pelo governador Cláudio Castro não visa à proteção dos moradores de favelas do Rio de Janeiro. Ela visa, na verdade, a criminalização daqueles moradores”, avalia a pesquisadora Dandara Soares, do Afrocebrap, núcleo de pesquisa sobre raça do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.
Na última terça-feira (28), a capital fluminense se tornou palco da Operação Contenção, a mais letal da história do estado. A ação resultou em ao menos 121 mortes, incluindo a de quatro policiais. O governo ainda não apresentou provas da ligação dos mortos com o crime organizado, nem de que todos os assassinatos tenham ocorrido durante conflito. Em entrevista à imprensa, o governador classificou a ação como um “sucesso”.
Na Câmara dos Deputados, o deputado federal de direita e pastor, Otoni de Paula (MDB-RJ), disse que ao menos quatro mortos eram “meninos que nunca portaram fuzis”, filhos de pessoas de sua igreja. “Preto correndo em dia de operação na favela é bandido”, disse na tribuna da Casa legislativa. Testemunhas também denunciam mortes por tiros nas costas e marcas de facadas nos corpos resgatados em uma zona de mata.
“Foi se abandonando cada vez mais a ideia de uma política estruturada, integrada, baseada em metas e objetivos, e [se criando] uma política em que o empoderamento e autonomia das forças policiais foram dados como uma chave para lidar com esse tipo de problemas”, afirmou à Pública o pesquisador Pablo Nunes, diretor do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC).
Operação contra setor de combustíveis
De acordo com o pesquisador, as autoridades de segurança pública devem investir em inteligência e coordenação, a fim de construir “estratégias de segurança pública que estejam à altura dos desafios que a gente enfrenta no Brasil”.
“Recentemente, a gente teve uma prova do que pode ser feito no combate ao crime organizado, de uma maneira mais inteligente, sem violência, e focando na face monetária que mantém essas organizações reproduzindo o seu modo de violência”, explica. O pesquisador se referia à Operação Carbono Oculto, que buscou desmantelar esquema de fraudes e de lavagem de dinheiro no setor de combustíveis.
O ICL Notícias revelou nesta quinta-feira, 30 de outubro, que Castro entrou na Justiça para liberar as atividades da Refinaria de Manguinhos (Refit), suspeita de ligação com o tráfico e alvo da Operação Carbono Oculto. Na segunda-feira, 27 de outubro, um dia antes da Operação Contenção, o Tribunal de Justiça do Estado (TJ-RJ) atendeu ao pedido do governador e da empresa, mas o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reverteu a decisão.
“A opinião pública não está devidamente informada sobre as alternativas que existem para um combate mais eficiente ao crime e essas operações espetaculosas, como a de ontem, são muito mais visíveis do que o trabalho silencioso de inteligência, por exemplo, realizado pela Polícia Federal”, afirma Grillo. Ela considera que “políticos mal-intencionados se aproveitam da sensação de insegurança da população, que vive com medo da criminalidade, para vender soluções fáceis”, acrescenta.
PEC da Segurança Pública levanta debate necessário
Após a repercussão da chacina, a ministra-chefe da Secretaria de Relações Institucionais (SRI), Gleisi Hoffmann, destacou “a urgência do debate e aprovação da PEC da Segurança”, a PEC 18/2025, que tramita desde setembro em comissão especial da Câmara dos Deputados, sob relatoria do deputado Mendonça Filho (União Brasil-PE).

A proposta do governo federal inclui na Constituição o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) e confere à União a competência para estabelecer diretrizes gerais quanto à política de segurança pública e defesa social. Além disso, ela busca garantir a participação da sociedade civil na tomada de decisão e prevê a criação de órgãos de controle e transparência, para que eles apurem a “responsabilidade funcional dos profissionais de segurança pública e defesa social”.
Mendonça avalia, entretanto, que o texto original “não resolve o problema” do crime organizado no Brasil e defende “mudanças significativas” na proposta. O relator informou que quer apresentar sua versão do texto em novembro.
Grillo concorda que, apesar de importante, a PEC “não é a solução para o crime no país”. “A gente precisa de práticas do Poder Executivo muito mais do que no âmbito legislativo, de redirecionamento do trabalho policial e de ampliação das políticas sociais que têm se voltado para a juventude em situações de vulnerabilidade”.
Já Nunes destaca que a proposta é importante para iniciar o debate sobre a “falta total de cooperação entre os entes federativos em relação à segurança pública”. “O desenho constitucional de 88 não dá mais conta do grave momento de segurança pública que o Brasil enfrenta como um todo. É preciso repensar o papel dos municípios, e muito fundamentalmente, pensar o papel do governo federal frente à segurança pública”, afirma.
Soares ressalta que a sociedade civil deve ser incluída na discussão: “A partir do momento que as pessoas que vivem essa política forem ouvidas e levadas em consideração, vai haver avanços. São essas pessoas que vivem e pensam um outro futuro para esses territórios. E um outro futuro precisa ser desenhado, com uma política de segurança pública que tenha um caráter protetivo a esta população, e que não seja mais reativa, e sim preventiva”.
 
			 
							 
											
										
				
					
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