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Desde maio, o governo de Nicolás Maduro está mandando manifestantes para prisões e tribunais militares. A Pública ouviu familiares e advogados dos presos na Venezuela

Reportagem
14 de junho de 2017
12:20
Este artigo tem mais de 7 ano

O estudante Carlos Alfredo Ramírez Torres, conhecido como “Pancho”, era um incômodo opositor ao governo de Nicolás Maduro na cidade de Mérida, no noroeste da Venezuela. Aos 27 anos, já no seu segundo curso universitário (cursou economia e depois direito), ele liderava há quase seis anos o Movimento 13, da Universidad de Los Andes, e era assíduo participante dos protestos contra Hugo Chávez. Católico fervoroso, conservador, chegou a se acorrentar diante do palácio de Miraflores no começo de 2013, quando havia rumores de que Chávez estava morto, mas ainda não uma declaração oficial. Exigia, com o gesto, que o povo soubesse a verdade.

Mas ninguém imaginava o que aconteceria com Pancho na manhã do último 15 de maio. Eram pouco mais de seis horas, e ele estava saindo de casa para uma reunião sobre mais uma paralisação geral quando foi cercado por policiais e levado até a sede do comando da Guarda Nacional. Ali foi impedido de contatar a família e advogados. “O governador deu uma declaração no canal Globovisión na qual o acusou diretamente pelas últimas mortes em Mérida. Duas horas depois, o ministro do Interior o acusou de assassinar um muchacho chamado El Cury”, diz o pai dele, Carlos Ramírez.

Carlos Ramírez, pai de Pancho, segura uma foto do filho (Foto: Natalia Viana/Agência Pública)

No dia seguinte, o pai conseguiu vê-lo, encapuzado, enquanto era levado a um avião da Força Aérea venezuelana. “Eles o mantiveram sem comunicação, com as mãos para trás e com um capuz na cabeça todo o tempo”, lembra. Depois disso, só ficaram sabendo dele por uma ligação que fez à namorada para pedir um advogado no estado de Lara, a mais de 300 quilômetros de distância de onde foi preso. “Ele chegou a Lara e o enviaram a um tribunal militar. Os advogados conseguiram chegar até lá, mas lhes negaram acesso ao tribunal.”

Pancho teve sua audiência preliminar com um defensor militar, indicado pelo Estado. A decisão foi que responderia ao processo numa prisão militar. Mas as acusações não têm nada a ver com aquelas feitas pelo governo. São delitos tipicamente militares: “ultraje ao sentinela” e “traição à pátria” – este último previsto para punir militares que planejem golpe de Estado, com 30 anos de prisão, a pena máxima pela lei venezuelana.

Desde então, nem os advogados nem a família souberam mais dele. “Isso é um sequestro”, diz o pai.

“É algo totalmente ilógico”, revolta-se sua namorada, a estudante de medicina Adelmina D’Ambrosio. “É uma questão política. Pancho mobiliza uma quantidade grande de gente, e o governador trata de sujar o seu nome. Ele não pertence a nenhum partido, mas a comunidade de Mérida sabe quem é Pancho.” De fato, desde que foi levado, a cidade ao pé da cordilheira dos Andes está repleta de carros com a frase “libertem Pancho”. A mesma frase foi pichada em muros, vitrines e ruas.

Adelmina D’Ambrosio, namorada de Pancho Ramirez, discursa durante protesto em Mérida em 22 de maio (Foto: Natalia Viana/Agência Pública)

Carlos “Pancho” Ramírez não está sozinho. Pelo menos outros 160 ativistas foram presos e estão sendo julgados por tribunais militares desde o começo dos protestos, segundo o advogado Gonzalo Himiob, cofundador da rede de advogados Foro Penal, que defende muitos deles. “No começo dos protestos, o Ministério Público apresentava esses jovens aos tribunais, mas não pedia a sua prisão. O que aconteceu? O governo decidiu levá-los a tribunais militares”, resume.

De acordo com os números de Himiob, dos 2.800 manifestantes detidos em manifestações, a grande maioria foi solta em seguida. Até o final de maio, 295 haviam sido enviados a tribunais militares: 134 compareceram a audiências preliminares e foram soltos com condicionantes (entre elas a proibição de sair do estado em que moram e a obrigação de se apresentar a cada cinco dias em um quartel militar); os outros 161 foram mantidos presos por tribunais militares e estão sendo julgados por crimes militares (este infográfico indica em quais estados estão).

Os tribunais militares passaram a ser adotados massivamente depois que a Procuradora-Geral, Luisa Ortega Díaz, uma chavista histórica, passou a antagonizar o governo de Nicolás Maduro. Além de se recusar a processar os manifestantes, Ortega recorreu da decisão do Supremo Tribunal de Justiça de assumir os poderes da Assembleia Constituinte, o que gerou a atual onda de protestos. A procuradora impôs também recursos judiciais contra a proposta de Assembleia Constituinte feita pelo governo.

Manifestantes carregam cartazes pedindo a liberdade de Pancho (Foto: Natalia Viana/Agência Pública)

Tais julgamentos são abusivos, de acordo com o direito internacional, e violam a lei venezuelana. “O juiz natural de um civil é um tribunal civil. E a Constituição diz que a Justiça Militar se reserva aos delitos de natureza estritamente militar, cometidos por militares ativos”, explica Gonzalo.

Em muitos casos, os advogados não conseguem contatar os jovens nem obter o processo, que corre sob sigilo, todos os depoimentos são secretos e os detalhes não podem ser publicados. Segundo os advogados, há relatos de tortura, por exemplo, que ocorria em instalações das forças armadas. “Em Carabobo temos o caso de 14 jovens que estão presos e foram obrigados a comer macarrão cru com excrementos humanos. Quando se negaram a abrir a boca, jogaram gás de pimenta no nariz para que abrissem a boca e os obrigaram a comer. Como sabemos? Isso está no expediente judicial. Mas nós, advogados, não podemos publicar essas atas”, diz Gonzalo.

Acusações anônimas

Após acompanhar dezenas de julgamentos, Gonzalo identifica um mesmo padrão que se repete nas audiências de apresentação dos casos, em que se decide se o acusado deve responder ou não em liberdade: “Na maioria dos casos, não há nenhuma evidência que vincule essas pessoas a nenhum crime. O que normalmente há ali é ata policial ou militar que explica que a pessoa foi detida, informes anônimos de inteligência onde alguém que não assina diz que essa pessoa supostamente estava realizando atividades subversivas. São informes impossíveis de verificar, porque não se sabe quem fez. Ou então há testemunhos de ‘patriotas cooperantes’, delatores do governo anônimos que supostamente dizem que tal pessoa estava cometendo um delito”, resume o advogado. Para ele, a criminalização de ativistas que protestam entrou em uma fase “indiscriminada”, que serve à tentativa do governo de tachar os manifestantes como “terroristas”, criminosos e violentos.

A Pública tentou entrevistar outros familiares de presos para ouvir suas histórias. Muitos se negaram por receio de que eles sofram represálias na prisão. “Todos têm muito medo de falar”, diz o advogado Luis Betancourt, coordenador do Foro Penal no estado de Carabobo, no norte do país.

A advogada Lilia Camejo recebeu a reportagem alguns dias depois da prisão de seu cliente, o dirigente do partido Voluntad Popular Sergio Contreras. “Vocês têm de ter cuidado, esse assunto é muito perigoso”, avisou.

Contreras foi preso no dia 10 de maio em Caracas quando participava de um protesto na região da Candelara. Na hora da prisão, como mostram os vídeos, segurava apenas um megafone. Mesmo assim, ele é acusado de traição à pátria, rebelião militar e subtração de material militar: a ficha policial afirma que ele carregava uma pistola pertencente à Polícia Nacional Bolivariana, cinco balas e explosivos caseiros.

Sergio é epiléptico. “Foi uma ação excessiva, havia dez policiais sobre ele, ele foi arrastado por meia quadra, já dominado”, diz a sua esposa, Mariana Barrios. “Ele tinha muita dor nas costas, uns raspões no braço, que aconteceram no momento de prisão. Estiraram o músculo da perna direita”, completa a advogada.

Mariana Barrios, esposa de Sergio Contreras (Foto: Natalia Viana/Agência Pública)

“Passamos em cinco Corpos de Segurança, em Caracas, buscando-o. Finalmente o encontramos no fim da tarde na Divisão de Contrainteligência Militar. Eu não podia entender como o meu esposo, um civil que estava numa manifestação pacífica pedindo que a polícia não reprimisse porque havia velhos, crianças, estava na divisão de Contrainteligência Militar! Não fazia nenhum sentido”, diz a esposa, que ficou sozinha com o filho de 8 anos.

Abalada, ela conta que não consegue dormir desde a detenção. “Eu nunca imaginei estar nessa situação tão difícil. Como eu vou dormir se ele não está dormindo? Todos dizem que eu tenho de comer para ficar forte, mas, quando coloco uma comida na boca, eu penso que não sei se ele está comendo, como está comendo, como estão suas condições.”

Embora a advogada tenha conseguido comparecer à audiência de custódia, ela diz que não recebeu nenhuma cópia do processo, e nem mesmo a ata que a estabelece como representante legal. “Sem isso, faz uma semana que eu não consigo vê-lo na prisão”, disse ela à Pública no fim de maio. “Há uma violação do devido processo penal e dos direitos do Sergio.”

Corte marcial

Por causa das recentes prisões políticas, a advogada criminalista Lilia Camejo tem atuado cada vez mais na esfera militar. Tudo é diferente, desde a falta de acesso ao juiz e ao preso até a vigilância constante, conta. “O trato é diferente. Fizemos a audiência de Sergio em uma sala onde funciona a corte marcial. E em tudo fomos gravados, desde que entramos na sala. Se você sobe o tom da voz, a juíza chama sua atenção.”

Outra diferença que ela diz ter sentido é a hierarquia militar. “Tem o problema das patentes. Se o promotor é um tenente e a juíza, uma tenente-coronel, ele não vai discutir com a sua superior.”

Mensagens pedindo a libertação de Pancho estão espalhadas por muros e carros em Mérida (Foto: Natalia Viana/Agência Pública)

Durante o governo de Hugo Chávez, houve outros momentos em que lideranças políticas foram julgadas por tribunais militares, segundo o advogado Ali Daniels, cofundador da ONG Acesso a La Justicia, que estuda casos de violações no sistema judiciário. Ali lembra que houve casos de sindicalistas e outras lideranças presas. “Isso ocorria antes, mas isso era uma exceção. Agora se tornou normal.” Um dos maiores problemas é a falta de independência das cortes militares, diz o advogado, afirmando que nem mesmo as regras para nomeação têm sido seguidas: “O Código de Justiça Militar diz que os juízes têm de ser nomeados pelo Tribunal Supremo. Mas nós investigamos e descobrimos uma resolução em que a ex-ministra da Justiça nomeou todos esses juízes que agora são os membros do poder judicial militar”, diz. Os militares dependem, para sua ascensão na carreira, do ministro da Justiça e do presidente da República, que é o comandante em chefe. “Ninguém vai querer colocar em risco a sua ascensão por uma decisão que afete o presidente.”

Para as famílias dos ativistas presos, a luta tem sido ininterrupta, madrugando em frente a fortes militares para exigir alguma notícia sobre os seus. Depois de um mês de detenção militar, os pais de Pancho pediam uma “fé de vida”, uma prova de que ele ainda está vivo. “Às vezes eu sinto como se não tivesse forças, amanheço deprimido. Mas as pessoas têm de ter em conta que o que está se passando conosco pode passar com qualquer um na Venezuela”, diz Carlos Ramírez.

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