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Nas comunidades a serem afetadas pelas usinas no rio Tapajós, entre angústia e anseios, a desinformação impera, enquanto avançam os planos para as obras

Reportagem
7 de dezembro de 2012
13:15
Este artigo tem mais de 12 ano

“Morrer na lama, debaixo d’água, é que é triste, né? Mas, achando um lugar onde a gente escape para morrer sossegado, quem me acompanha é Deus e meus filhos”. É humanamente impossível deixar de prestar atenção às palavras que pausadamente saem da boca de Maria Bibiana da Silva, apelidada de Gabriela em homenagem ao pai, José Gabriel. Do alto de seus 104 anos, comprovados pelo rosto profundamente enrugado e pelas pernas arqueadas em forma de alicate, a profética anciã responde de bate-pronto quando questionada sobre o que o rio Tapajós representa para ela: “o sossego”.

No longínquo ano de 1917, Gabriela partiu do Ceará rumo aos seringais do Acre. No meio do caminho, porém, a família resolveu fincar raízes em Pimental, uma vila de pescadores erguida na beira das águas esverdeadas do Tapajós, numa área que hoje pertence ao município de Trairão, no oeste do Pará. E de lá jamais saíram. Desde aquela remota época, os dias no modesto povoado onde atualmente vivem cerca de 800 pessoas nunca foram tão agitados.

Maria Bibiana da Silva, a “Gabriela”, matriarca da Vila Pimental, Trairão (PA)

Pimental tem uma inegável atmosfera de Macondo, a mítica aldeia ribeirinha que Gabriel García Márquez construiu na sua obra-prima “Cem anos de Solidão”. Mas, nesse isolado trecho do Pará, a discórdia não é provocada pela chegada de uma companhia bananeira, como no livro do premiado escritor colombiano, e sim pela construção da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, que pode mandar Pimental inteiro para baixo d’água. “Por mim, não tenho gosto que essa barragem saia, mas uma andorinha só não faz verão”, alerta Gabriela, a matriarca da comunidade.

Se de fato vingar, São Luiz do Tapajós será capaz de gerar até 6.133 Megawatts. No papel, é a quarta maior hidrelétrica do país, atrás apenas da binacional Itaipu – na fronteira entre Brasil e Paraguai –, de Belo Monte e de Tucuruí, construídas, respectivamente, nos rios Xingu e Tocantins, também em território paraense. A usina é a maior de um complexo de até sete hidrelétricas que o governo federal planeja construir no Tapajós e no seu afluente Jamanxim. Até o final desta década, duas usinas devem de fato ser construídas.

Segundo dados preliminares que constam do inventário do potencial hidrelétrico da bacia do Tapajós, exatas 2.352 pessoas de 32 povoados ribeirinhos diferentes serão diretamente atingidas caso as sete hidrelétricas previstas saiam do papel. O estudo foi feito em 2008 pela Eletronorte, subsidiária da estatal Eletrobras, estatal oficialmente responsável pelas obras complexo de usinas. Movimentos sociais e entidades que assessoram essas comunidades acham que o número é subestimado.

C.A.K, presidente da associação comunitária da Vila Pimental: povoado em discórdia

Prevista para entrar em operação em dezembro de 2018, a usina de São Luiz do Tapajós é a que está em fase mais adiantada de licenciamento ambiental. O plano do governo é licitar a construção da obra até o final de 2013. Orçado incialmente em R$ 18 bilhões, o empreendimento tem verba garantida pela segunda edição do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), vitrine do governo da presidente Dilma Rousseff.

Fundada há cerca de 120 anos, Pimental é a maior das vilas ribeirinhas que serão alagadas pelas águas represadas da usina de São Luiz do Tapajós. Além dos roçados, a maior parte das pessoas ali vive mesmo é da pesca artesanal. “Nosso freezer é bem aí”, afirma José Odair Pereira Matos, o C.A.K., presidente da associação comunitária, apontando o dedo para o Tapajós. “É o rio que mantém o nosso peixe fresco.”

Hoje, Pimental representa a principal frente de resistência ao paredão de 3.483 metros de comprimento por 39 metros de altura da barragem, que vai alagar uma área de quase 75 mil campos de futebol. Porém, à medida que avançam os estudos de viabilidade para construção da usina, cresce também a cisão entre os moradores.

“Tem uns que são a favor da usina. Principalmente aqueles que conseguem empreguinhos de vigia de máquina, de carregador de barra de ferro, de mateiro para abrir picada na floresta nas empresas que fazem os estudos. Mas aí eu pergunto: e quando essas empresas forem embora?”, questiona Edmílson Azevedo, catequista da Igreja Católica.

“Quem está trabalhando hoje não se dá conta de que isso é temporário. As empresas criam a expectativa de que as pessoas vão se empregar, mas é uma ilusão”, analisa Raione Lima, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT). “Infelizmente, estamos vivendo um momento intenso de conflitos na comunidade, ribeirinhos contra ribeirinhos.”

Falta de diálogo

Não é de hoje que o povo de Pimental ouve falar da barragem que pode inundar a vila por completo. “Aqui já chegou americano, japonês, alemão. No campo de futebol em frente à igreja já sentaram dois helicópteros”, conta C.A.K, o presidente da associação comunitária. Técnicos a mando da Eletrobras e da sua subsidiária Eletronorte rondam a vila há quase uma década. De três anos para cá, o movimento se intensificou.

“Quando a gente perguntava o que ia acontecer, para onde a gente ia, eles nunca respondiam, diziam que não era com eles. Eles queriam fazer primeiro as pesquisas e depois dizer o que ia acontecer com a gente. Até que um dia a gente falou: primeiro vocês falam o que vai acontecer com a gente, quais são os nossos direitos, e depois vocês fazem pesquisa”, conta C.A.K.

O momento mais tenso se deu em 2010. Naquele ano, uma firma de topografia entrou na comunidade sem qualquer tipo de contato prévio e instalou marcos de concreto no meio da rua, sem fornecer explicações. Indignados, os moradores de Pimental expulsaram os técnicos responsáveis pelo serviço, destruíram as instalações e passaram a controlar a entrada de pessoas estranhas.

Manifestação de ribeirinhos da Vila de Pimental contra a hidrelétrica de São Luiz do Tapajós

A Eletrobras, porém, precisava entrar de qualquer maneira na vila para fazer os estudos de viabilidade da usina. A fim de tentar uma reaproximação, a estatal contratou, então, um grupo batizado de “Diálogo Tapajós” para cadastrar e prestar esclarecimentos aos moradores dos povoados ribeirinhos que serão diretamente impactados não só pela usina de São Luiz do Tapajós, mas também pela hidrelétrica de Jatobá – a segunda do complexo previsto pelo governo, com previsão para entrar em operação em abril de 2019.

Num domingo escaldante de outubro, a reportagem da Pública encontrou quatro profissionais do Diálogo Tapajós em um restaurante caseiro de Pimental. Na ocasião, o coordenador do grupo se mostrou disposto a conceder uma entrevista e deixou um encarte distribuído à população local com um número de celular e o e-mail “contato@dialogotapajos.com.br”. Toda vez que uma mensagem é enviada para esse correio eletrônico, gera-se de forma automática um aviso de “falha permanente”. Em outras palavras, o endereço de e-mail não existe ou enfrenta algum problema técnico.

Passado o encontro em Pimental, a reportagem da Pública ligou em diversas oportunidades para o representante do Diálogo Tapajós. Em algumas vezes, não obteve resposta. Em outras, ouviu a confirmação de que a entrevista estava de pé, mas que ela deveria ser realizada em outro momento. Até o fechamento desta matéria, apesar da insistência, a conversa não foi realizada.

“O Diálogo Tapajós entrou na comunidade num momento errado e tardio. As informações tinham que ter chegado antes da entrada das empresas para fazer as pesquisas”, afirma Raione. “Mas, só a partir do momento em que se criou a resistência é que chegou o Diálogo”, acrescenta a agente da CPT.

O procurador do Ministério Público Federal do Pará (MPF-PA) Felício Pontes revela preocupação com a possibilidade de a aproximação do Diálogo Tapajós ser usada indevidamente como uma forma de consulta prévia às comunidades afetadas pela hidrelétrica. “O problema é utilizar esse tipo de levantamento como uma espécie de concordância dos grupos indígenas e das demais populações tradicionais com o empreendimento”, alerta.

O precedente foi aberto em Belo Monte, conta o procurador. “Entraram nas aldeias indígenas para fazer a comunicação do que seria a usina e como ela afetaria essas populações”, explica. “Quando chegou no processo judicial, isso foi apresentando como se fosse a consulta com os povos indígenas e que essa etapa estaria cumprida. E aí foi a hora em que interviemos e dissemos que não era consulta, porque não havia nem mesmo a opinião dos índios nas atas das reuniões.”

Para ganhar tempo, as empresas que fazem os serviços sondagem e perfuração para os estudos de viabilidade da barragem se instalaram nos povoados vizinhos a Pimental, onde a aceitação à hidrelétrica já é bem maior. Em um deles, chamado São Luiz, nasceu o deputado federal Dudimar Paxiúba (PSDB-PA).

Apesar de pertencer ao principal partido de oposição ao governo federal, o parlamentar defende um discurso pragmático e rejeita o radicalismo contra a obra. “A princípio, eu gostaria que a hidrelétrica não viesse. Mas tenho que pensar de forma racional. Vai prevalecer a vontade do governo, que não vai abrir mão desse projeto”, discursa o deputado, encontrado pela reportagem em visita a Pimental.

Nos últimos meses, o parlamentar virou figurinha carimbada na beira do Tapajós, participando de reuniões nas comunidades para falar justamente das hidrelétricas. Na avaliação dos movimentos sociais, a intervenção direta de Paxiúba vem amainando a resistência dos moradores de São Luiz, que têm fé no ilustre filho da comunidade como mediador do conflito. “Não somos nós que vamos ter o poder de paralisar esse projeto. Se ficar no radicalismo, não teremos sequer como cobrar do governo uma contrapartida”, explica o deputado.

Divergência

Em Pimental, não há como negar que a recusa à hidrelétrica está longe de ser unanimidade. E o clima esquenta a cada dia que passa. Em outubro, o bate-boca entre os que apoiam e os que se opõem à usina de São Luiz do Tapajós rendeu até ameaças de morte, registradas em um boletim de ocorrência, contra o presidente da associação de moradores e um padre da CPT que participa do movimento que resiste à barragem.

Pôr-do-sol na Vila de Pimental, município de Trairão (PA)

Os defensores da usina se apegam basicamente a três argumentos. O primeiro é exemplarmente resumido na declaração de Ângela Maria Batista, nascida e criada em Pimental: “É melhor a gente se unir com os grandes do que se juntar com os pequenos para perder”. Desempregada, mãe de três filhos e viúva, sem nem ter completado 30 anos, ela engatou um namoro recentemente com um técnico de uma empresa que presta serviços para a Eletrobras. E espera que o novo companheiro a leve embora de Pimental.

O segundo argumento tem a ver com o inevitável – porém, temporário – incremento da economia informal trazido pelos funcionários das firmas que circulam pela vila de pescadores. Algumas famílias reforçam o orçamento lavando uniformes ou fazendo marmitas. Aquelas com a sorte de ter um de seus membros trabalhando nas empresas defendem com unhas e dentes o dinheiro certo no fim do mês. E por isso preferem não levantar a voz contra a barragem.

“Como não tinham muito apoio, as firmas contrataram algumas pessoas para trabalhar. É uma estratégia para dividir a comunidade”, rebate C.A.K. Sem dúvidas, o plano de semear a discórdia tem dado resultado. “O que tem de emprego em Pimental é na escola e no posto de saúde. A gente pede a Deus para entrar uma firma aqui porque a situação é feia”, afirma Ângela.

O terceiro e último motivo de quem defende a construção da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós diz respeito à possível indenização que a população afetada receberá. “Eu não tenho esse apego todo à comunidade. Se me pagarem um valor bacana, eu saio. Eu até gostaria de ir para a rua”,  afirma Elba Sales, merendeira da escola de Pimental, referindo-se à cidade de Itaituba.

Quando perguntada se já parou para pensar sobre o valor considerado justo para a indenização, Elba subitamente emudece. Rompido o silêncio, ela admite com um sorriso amarelo que ainda não refletiu sobre o assunto. Elba então conta que pagou R$ 5 mil na casa onde mora em Pimental. “Se lhe dessem R$ 5 mil, a senhora sairia daqui?”, pergunta o jornalista. “Não, da minha casa, não. Porque já apareceu quem queira comprar de volta e nem por R$ 10 mil eu não dou.”

O que aguarda Itaituba

Atualmente, se quisesse morar perto da orla do rio Tapajós, na parte mais agradável da cidade de Itaituba, a merendeira da escola de Pimental teria de desembolsar pelo menos R$ 1.800 de aluguel mensal num bom imóvel de três quartos. Até dois anos atrás, o custo seria praticamente a metade disso. Agora, se preferisse realizar o sonho da casa própria, comprando um terreno de 250 metros quadrados no loteamento Novo Paraíso II, localizado a 38 quarteirões de distância da avenida à beira-rio, ela teria de desembolsar R$ 16 mil. A título de comparação, as vendas do primeiro loteamento chamado Novo Paraíso foram encerradas em 2010. Cada terreno foi negociado a R$ 3 mil.

Apesar de as obras da hidrelétrica sequer terem sido licitadas, o mercado imobiliário em Itaituba está explodindo. “A minha corretora tem um ano e meio. Nesse período, já abriram mais três. E vão ser criadas outras porque o pessoal está indo para fora estudar e fazer o curso de corretagem”, analisa a empresária Ana Maria Gomes do Nascimento.

Ela não tem dúvidas de que a escalada de preços está apenas começando. “Vai aumentar mais, vai ficar como Altamira, vai ficar aquele aglomerado mesmo e, daqui a pouquinho, qualquer quitinete está saindo a R$ 1 mil”, avalia Ana Maria, comparando o futuro de Itaituba ao de Altamira, município que abriga a hidrelétrica de Belo Monte e que inchou da noite para o dia com as obras do maior empreendimento em curso no país.

Mas não é apenas o mercado de imóveis residenciais que se encontra em ponto de ebulição. Já antecipando o boom de demanda que se desenha com a construção das hidrelétricas, o grupo paranaense Gazin, que vende móveis e eletrodomésticos, acaba de inaugurar uma grande loja no centro da cidade.   Representantes de empresas como a Sotreq, revendedora de tratores e máquinas pesadas da norteamericana Caterpillar, também já viajaram a Itaituba à procura de terrenos com ao menos 30 mil metros quadrados para futuras instalações. Os locais mais cobiçados ficam na BR 230, a rodovia Transamazônica, que corta o município.

Hoje, Itaituba conta com uma população de aproximadamente 100 mil habitantes. Segundo projeções do inventário da Eletronorte, apenas a hidrelétrica de São Luiz do Tapajós deve atrair mais de 42 mil pessoas à procura de trabalho para a região que tem o município como polo. Contando todas as usinas previstas no Complexo Tapajós, a estimativa sobe para 130 mil. Levando em conta outras obras de grande porte previstas para o futuro próximo em Itaituba, como a construção de portos fluviais para escoamento de grãos vindos, sobretudo, do Mato Grosso, a perspectiva de que a população dobre nos próximos cinco anos não é nada exagerada.

“Itaituba não está preparada para atender nem as pessoas que já vivem aqui”, admite Eliene Nunes, prefeita eleita nas últimas eleições para administrar o município nos próximos quatro anos. Não é preciso ser especialista em urbanismo para detectar a calamidade pública em que a cidade já se encontra. Em um rápido passeio pelos bairros da periferia é fácil cruzar com fossas de esgoto a céu aberto que, em épocas de chuva, alagam ruas e casas, causando todo tipo de doença. A rede de eletricidade que abastece as residências também é precária. “Nós não gostaríamos que Itaituba ficasse como Altamira”, afirma Eliene. A prefeita eleita diz que até vem tentando estreitar o diálogo com a Eletrobras, mas ainda não obteve nenhuma resposta por parte da estatal.

Periferia da cidade de Itaituba: deficiências na infraestrutura básica

Em entrevistas e pronunciamentos oficiais, os representantes da Eletrobras têm aventado a possibilidade de construir a usina de São Luiz do Tapajós em um sistema de “plataforma”, como as utilizadas pela Petrobras na extração de petróleo em alto-mar. Essa seria uma alternativa para minorar o inchamento da cidade, devido à chegada de um grande contingente de trabalhadores. “Trata-se de um conceito ainda em construção”, explica nota emitida pela assessoria de imprensa da Eletrobras em resposta a questionamentos feitos pela Pública.

“As usinas-plataforma serão um vetor de conservação ambiental, pois se pretende que as intervenções em ambientes florestais sejam as menores possíveis e, quando for necessária a intervenção, a premissa é que esses ambientes sejam recompostos (reflorestamento). Também não haverá a construção de vilas de operários no entorno da usina como foi feito nos empreendimentos hidrelétricos do resto do país”, prossegue a nota.

A assessoria de imprensa da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que fiscaliza a atividade das hidrelétricas no país, também defende a iniciativa. “Essas plataformas representam um boa alternativa, pois seriam instalações provisórias durante a obra e, na fase de funcionamento, haveria acesso apenas para os operacionais, não havendo a criação das tradicionais vilas de operários e, assim, evitando a criação dos núcleos populacionais que impactam as regiões”, sustenta a nota da assessoria de comunicação.

Especialistas ouvidos pela Pública duvidam do sucesso dessas plataformas para mitigar os impactos. “Estamos falando de 20 mil pessoas. Não de 20 ou 30 trabalhadores. Inicialmente, quando lançaram a ideia de usina-plataforma, disseram até que os operários seriam transportados por helicóptero, o que é um absurdo. É pirotecnia pura, é jogar uma série de coisas para a sociedade engolir”, critica Wilson Cabral, professor e pesquisador do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA).

Para o engenheiro Arsênio Oswaldo Sevá Filho, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por trás da suposta sustentabilidade apregoada pelo conceito de usina-plataforma, camufla-se um objetivo perverso: a militarização dos canteiros de obras. “Isso já aconteceu nas hidrelétricas do Madeira. Eles cercaram as áreas com milícias privadas das empreiteiras. Em Belo Monte, já estão colocando o exército na área, além da Força Nacional, que chegou lá em 2009 para as audiências públicas e nunca mais saiu”, explica.

No caso específico do Tapajós, além de intensificar o controle sobre os trabalhadores a fim de debelar possíveis greves e manifestações, a militarização se justifica por outro motivo bastante convincente: a enorme presença de ouro no entorno de Itaituba, tomado por mais de 2 mil garimpos clandestinos.

“O planejamento de construir diversas hidrelétricas numa região onde todo mundo está atrás de ouro não pode ser analisado como se a atividade-fim fosse apenas a produção de energia elétrica”, sugere Sevá. Para o professor, é inevitável que, ao revolver o solo do Tapajós para fazer as fundações das hidrelétricas, as empresas também considerem a viabilidade de extrair o mais valioso dos metais.

Os indígenas que não existiam (para a Eletrobras)

Quando o repórter anuncia o fim da entrevista, Deusiano faz um último pedido antes de a câmera ser desligada: cantar o hino de guerra da sua etnia na língua materna munduruku. Enquanto olha fixamente a lente do equipamento do homem branco que captura sua imagem e sua voz, ele parece mandar um recado por meio da letra da canção. Em resumo, ela passa a mensagem de que os Munduruku jamais se intimidarão diante da luta.

Deusiano e seus parentes vivem na aldeia Sawré Muybu, nas margens do Tapajós. Para chegar até lá, é necessário vencer as duas horas de estrada que separam o centro de Itaituba do porto do Buburé, localizado no Parque Nacional da Amazônia, uma das mais antigas unidades de conservação ambiental da Amazônia, criada em 1974 pelo governo militar como compensação aos impactos gerados pela abertura da Transamazônica.

Os indígenas da Sawré Muybu estão encurralados. De um lado, a ameaça vem do Chapéu do Sol, um dos maiores garimpos de ouro e diamante da região, que despeja quantidade significativa de mercúrio nas águas do rio. De outro, a preocupação é com o lago de 722 quilômetros quadrados – área de quase 75 mil campos de futebol – que será formado com a construção da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós. “Se a usina sair, nossa terra não vai ser totalmente inundada, mas vamos ficar ilhados, sem a caça e sem a pesca”, afirma Juarez, cacique da aldeia.

Há anos, os Munduruku da aldeia Sawré Muybu lutam para que a área seja demarcada. Em 2007, a Fundação Nacional do Índio (Funai) até criou um grupo de trabalho para iniciar o processo. Porém, a profissional responsável pela produção do relatório antropológico sumiu sem deixar vestígios – segundo a própria Funai. Desde então, o pleito dos indígenas estava esquecido nas gavetas da burocracia federal – até o momento em que eles entraram em rota de colisão com a usina de São Luiz do Tapajós.

Indígenas do povo mundurukus pintados para a guerra com jenipapo e carvão

Ao longo de 2012, técnicos das empresas que fazem os estudos de viabilidade da hidrelétrica entraram em diversas oportunidades – e sem qualquer tipo de comunicação prévia – na área da aldeia, abrindo picadas e colocando marcos na mata. A postura invasiva revoltou os Munduruku. “Não vamos mais deixar ninguém entrar na nossa casa”, avisa Juarez.

A Funai de Brasília foi escalada pelo governo federal para mediar o conflito e tentar convencer os Munduruku a liberar a entrada dos técnicos. Numa tensa reunião realizada em 17 de outubro, uma representante da Funai ameaçou até convocar a Força Nacional para escoltar os técnicos, caso os Munduruku resistissem. De qualquer maneira, o fato é que a pressão dos indígenas da Sawré Muybu surtiu efeito: no último dia 31 de outubro, o Diário Oficial da União publicou a portaria para a retomada dos trabalhos de identificação e delimitação da área.

Aparentemente, o governo federal parece se abrir ao diálogo com os indígenas na zona de influência da usina de São Luiz do Tapajós. Mas nem sempre foi assim. No portal do Ibama na internet, é possível acessar documentos sobre o licenciamento ambiental de empreendimentos em curso em todo o país. Quando se abre a ficha que resume as informações do processo da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, lê-se o seguinte texto na penúltima das cinco páginas: “Presença de terras indígenas nas área afetadas: sem informação”.

Segundo a Funai, além da Sawré Muybu, existem outras cinco terras indígenas ocupadas pelos Munduruku na área de influência direta da usina de São Luiz do Tapajós. Esse fato chegou a ser comunicado à diretora de Licenciamento Ambiental do Ibama por meio de um ofício que data de 17 de fevereiro deste ano. No documento, a Funai informava inclusive que, das seis terras indígenas, duas se encontravam em processo de demarcação.

Exatamente uma semana após o envio desse ofício, o Ibama autorizou a Eletrobras a abrir picadas na mata e a coletar material da floresta para a realização do estudo impacto ambiental, inclusive na área da Sawré Muybu. E foi aí que começaram os conflitos. “Mais de cem pesquisadores estão circulando pelo Tapajós, sem levar esclarecimento às populações locais. É natural essa reação de resistência”, afirma a Juliana Araújo, chefe do serviço de monitoramento territorial do escritório da Funai em Itaituba, que mantém contato direto com a aldeia Sawré Muybu.

Em novembro, a Justiça Federal suspendeu, em primeira instância, o licenciamento da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós atendendo a uma Ação Civil Pública (ACP) movida pelo gabinete do Ministério Público Federal (MPF) de Santarém (PA). Um dos principais motivos que embasa o pedido é justamente a não realização de uma consulta prévia com as populações indígenas diretamente afetadas pelo empreendimento, como mandam não só a Constituição Federal de 1988, mas também a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil.

“A Eletrobras e o Ibama tinham conhecimento do ofício da Funai, sabiam que havia terras indígenas na área de influência da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, mas mesmo assim passaram por cima dessa informação”, acusa o procurador Fernando Antônio Oliveira Júnior, um dos autores da ação.

Ele faz questão de ressaltar que a consulta prévia não se resume a um mero aviso: é preciso explicar de forma clara e acessível, de modo que os indígenas compreendam plenamente as características do projeto. “A Convenção 169 da OIT é ainda mais cuidadosa e protetiva do que a Constituição de 1988. Ela diz que a consulta prévia tem que ser realizada antes de qualquer tipo de autorização. É um dos primeiro passos para a construção do empreendimento”, acrescenta o procurador.

O tratamento dispensado às comunidades indígenas no caso da usina de São Luiz do Tapajós é sintomático do que está por vir. O governo federal vem montando um trator jurídico para viabilizar não só o complexo hidrelétrico do Tapajós, mas outros grandes empreendimentos na Amazônia. Exemplo disso é a discussão em curso no Congresso Nacional sobre a reforma do Código de Mineração, que pretende regulamentar a atividade em territórios indígenas.

Em julho deste ano, a Advocacia Geral da União (AGU) publicou a Portaria 303. Na prática, além de dificultar a ampliação das terras indígenas no país, a medida abre brechas para que o governo e a iniciativa privada construam hidrelétricas, rodovias e outros grandes projetos “independentemente de consulta às comunidades indígenas”. A portaria despertou críticas ferozes por parte dos movimentos sociais e já teve sua constitucionalidade questionada no Supremo Tribunal Federal (STF) pelo MPF. Como se vê, a indiferença com os indígenas atingidos pela usina de São Luiz do Tapajós é apenas a ponta do iceberg.

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