Numa realidade mal retratada pelas estatísticas, elas deixam de comer para alimentar os filhos pequenos enquanto driblam a violência dentro e fora de casa: apanham dos companheiros e vivem em áreas onde os tiroteios entre traficantes acontecem a qualquer hora do dia. Esse é o cenário nos bolsões de pobreza do estado do Rio de Janeiro, que tem o segundo maior PIB do país. Apesar da posição no ranking que mede o conjunto de riquezas, a fome ali existe e se perpetua por gerações. Agora, essas mulheres enfrentam cortes nos programas sociais que roubam sua autonomia recém-conquistada e as empurram de volta para a miséria e a violência doméstica.
O contraste se mostra a apenas 80 quilômetros da capital, no município de Japeri, na Baixada Fluminense. Ali, as mulheres são as protagonistas de uma história de misérias cotidianas na cidade que tem o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da região metropolitana. Vão contando suas vidas devagar, numa fala intercalada por breves silêncios. Na extrema pobreza, dividem o indivisível: a sobra da “quentinha” do guarda do presídio, transformada em almoço e jantar para a família, ou a haste da pena de galinha assada, servida com angu e capim.
Muitas dessas mulheres recebem apoio na rede de solidariedade formada por centros religiosos, mas ainda encontram dificuldades para fazer com que os filhos superem a herança trágica da miséria, num município em que o poder público não oferece alternativas. O prefeito está preso, acusado de ligação com o tráfico de drogas; o número de cestas básicas oferecidas é insuficiente; e a evasão escolar é grande.
Realidade semelhante se espalha e, ao mesmo tempo, se esconde em outras regiões do estado. No bairro de Vargem Grande, zona oeste da capital, a 95 quilômetros de Japeri, mulheres de uma comunidade quilombola também lutam diariamente para assegurar alimento e instrução aos filhos. Ali, a esperança está na agricultura familiar herdada dos antepassados, que pode ajudar a driblar a fome, e na experiência da escola comunitária.
No país ameaçado de voltar oficialmente ao Mapa da Fome, são as mulheres que enfrentam esse fantasma e tentam romper o ciclo da miséria, pouco visível nas estatísticas e presente por gerações.
Leia a série especial e assista a videorreportagem abaixo.
Quem fez
A Agência Pública e a Oxfam Brasil lançaram no final de agosto o concurso Microbolsas Fome, que abriu inscrições para que repórteres de todo o país propusessem pautas sobre a volta da fome à realidade brasileira. Os vencedores foram selecionados dentre 83 propostas de 15 estados brasileiros e receberam apoio financeiro e mentoria durante 3 meses dos nossos editores.
Vencedor do Concurso de Reportagens Fome, uma parceria entre a Agência Pública e a Oxfam Brasil, o Especial Fome, Substantivo Feminino, foi feito pela equipe do site Mulheres 50 Mais.
Composto por jornalista premiadas do Rio de Janeiro, o site é um espaço para reportagens sobre mulheres de todas as idades.
O projeto Mulheres 50 mais é resultado da vontade de sete jornalistas de discutir, de forma ampla e aprofundada, as diversas transformações por que passam as mulheres após os 50 anos: do corpo às atitudes, dos relacionamentos ao trabalho. Esse time conta com Angelina Nunes, Elvira Lobato, Regina Eleutério, Cristina Alves, Raquel Almeida, Ana Lúcia Araújo e Claudia Lima.