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Única parlamentar indígena do Congresso critica projeto de Bolsonaro e diz que prioridade do governo deveria ser demarcação de novos territórios e proteção dos já existentes, que sofrem com o crime organizado e a grilagem

Entrevista
10 de fevereiro de 2020
13:38
Este artigo tem mais de 4 ano

“Inadequado, inconstitucional e não contribui em nada para a consolidação dos direitos indígenas.” É dessa maneira como Joenia Wapichana (Rede-RR), a única parlamentar indígena do Congresso Nacional, define o projeto de lei (PL) apresentado pelo presidente Jair Bolsonaro à Câmara na última quinta-feira (6). A proposta, que levou meses a ser escrita, quer legalizar a mineração, construção de hidrelétricas, exploração de petróleo, agricultura, pecuária, garimpo e outras atividades econômicas em terras indígenas pelo país.

O texto garante que as comunidades devem ser ouvidas sobre os empreendimentos, mas não lhes confere poder de veto sobre eles, exceto em caso de garimpo. Também define como devem ser feitos os estudos prévios de avaliação do potencial econômico das áreas – depois de prontos, é o presidente quem decide quais delas devem ser exploradas, mas a palavra final é do Legislativo. Além disso, determina a indenização a ser paga aos indígenas pelo uso de seu território e os valores a que têm direito sobre os resultados das atividades e libera, ainda, o plantio de sementes geneticamente modificadas em terras indígenas.

O presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), já pediu a criação de uma comissão especial que analise a matéria. Joenia, no entanto, acha que isso não deveria ter acontecido: em sua opinião, o aproveitamento dos recursos hídricos e minerais em territórios indígenas, previsto no artigo 231 da Constituição, tem de ser regulamentado via lei complementar, e não ordinária, como está posto. “Uma lei ordinária pode vir de forma mais simplificada, enquanto uma lei complementar detém procedimentos mais rígidos nos trâmites do Congresso Nacional”, avalia. “Espero que a Câmara faça essa análise preliminar antes de discutir a questão de mérito.”

A parlamentar, advogada por formação, afirma ainda que a elaboração do PL desrespeitou a consulta livre, prévia e informada a que os povos indígenas têm direito em relação às decisões que os afetam, como manda a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Outro ponto veementemente contestado por ela é a possibilidade de autorização do garimpo em terras indígenas: “A lei permite a atividade garimpeira pelos indígenas de forma manual, agora garimpo pelas mãos de pessoas que vêm de fora é proibido”.

A Deputada federal, Joenia Wapichana (Rede-RR), é a única parlamentar indígena do Congresso Nacional

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Em linhas gerais, como a senhora avalia o projeto de lei enviado pelo presidente ao Congresso Nacional?

É inadequado, inconstitucional e não contribui em nada para a consolidação dos direitos indígenas. É totalmente fora da realidade para a qual o Brasil poderia estar avançando e foi feito sem consulta aos povos indígenas. É inadequado porque tenta incluir num projeto de lei ordinário matéria que a Constituição determina que seja feita a partir de uma lei complementar. Mineração em terras indígenas está prevista na Constituição, isso é um fato, mas ela determina que seja complementar – uma lei ordinária pode vir de forma mais simplificada, enquanto uma lei complementar detém procedimentos mais rígidos nos trâmites do Congresso Nacional. É inconstitucional porque diversos pontos no texto falam em restrição de direitos que estão garantidos no artigo 231 como cláusulas pétreas – o usufruto exclusivo é um. Em outra parte tenta regularizar garimpo, que também é inconstitucional. A Constituição fala em mineração, uma atividade regulada por leis e processos administrativos; garimpo é o que você via em Serra Pelada, um monte de gente correndo atrás de ouro.

De que maneira o PL contraria a Convenção 169 da OIT, que dispõe sobre os direitos dos povos indígenas?

Além de violar o artigo 231 pelo fato de não prever garimpo, o projeto não reconhece a organização social indígena, consagrada pelo próprio artigo 231 e pela Convenção 169 da OIT. Ele não considera a consulta prévia, livre e informada. A Constituição fala em oitiva dos povos indígenas, e a Convenção da OIT, em consulta de maneira apropriada às circunstâncias e boa-fé. A obrigação do Estado é atender esse ordenamento jurídico. O texto é violação em matéria social e ambiental. Por exemplo, o Brasil nem sequer concluiu o reconhecimento e demarcação das terras indígenas; o primeiro ano de governo Bolsonaro foi um desastre para os direitos sociais, ambientais e indígenas. Aumentou a violência contra os povos indígenas – tivemos diversos casos de assassinatos –, houve vários conflitos em relação à falta de demarcação. Noventa e oito por cento das terras indígenas estão na Amazônia, que sofreu verdadeiros ataques relacionados a desmatamento. A Terra Indígena [TI] Yanomami, segundo denúncias, tem mais de 20 mil garimpeiros de forma ilegal. Isso significa que o Estado não deu resposta à sociedade sobre tudo o que já vem acontecendo. E não deu resposta principalmente em relação a dois fatos extremamente importantes: os desastres irreparáveis em Mariana e Brumadinho. Isso prova que o governo não tem capacidade, em qualquer medida, de fiscalização dessas mineradoras. Como, com essa ineficiência, está propondo outra atividade de mineração? Sem sequer ter respondido para a sociedade questões que já ocorreram? É uma irresponsabilidade, um retrocesso imenso em matéria social e ambiental.

Em sua opinião, esse novo terreno de exploração é como um prêmio às mineradoras, apesar dos desastres causados por sua atividade?

Precisa ser investigado o que o Bolsonaro quer por trás disso. Ele não cumpriu seu dever de defender a Constituição e agora quer beneficiar a quem com garimpo e mineração em terras indígenas? Todo brasileiro deveria fazer essa pergunta ao presidente: o que ele está fazendo no governo? Além de retroceder direitos ambientais, sociais e indígenas, há o favorecimento de uma elite que quer explorar os mais vulneráveis, quem está mais desprotegido. A sociedade tem que cobrar isso dele, porque entendo que a prioridade do governo deveria ser educação, saúde, segurança e trabalho, e não ameaçar e perseguir os mais vulneráveis, como os povos indígenas.

A senhora falou sobre o garimpo. A proposta determina que a atividade ocorra “em bases sustentáveis, preservados os recursos ambientais necessários ao bem-estar das comunidades indígenas afetadas”. É possível conciliar todos esses fatores?

Com certeza não. O garimpo [em terras indígenas] é inconstitucional e isso tem que ser premissa antes de falar sobre qualquer proposta. Volto a dizer: mineração é uma coisa, garimpo é outra. Quem tem o usufruto exclusivo da terra são os indígenas, isso é uma cláusula pétrea. A lei permite a atividade garimpeira pelos indígenas de forma manual, agora garimpo pelas mãos de pessoas que vêm de fora é proibido. É mais um absurdo que esse texto traz. Temos um caso concreto aqui em Roraima, os Yanomami. Eles estão fadados à extinção: o diagnóstico é que as águas estão sendo contaminadas com mercúrio e as crianças estão nascendo com problemas de formação. Não há nada de sustentável em contaminar as águas. Os índices de malária estão aumentando, os conflitos armados também. Somente essa semana a imprensa local de Roraima, para você ter uma ideia, anunciou duas quedas de aeronaves ocupadas por pessoas que estariam indo ao garimpo, fugindo dos radares e investigações – a Polícia Federal tem feito um trabalho de combater essa questão. Somente essa semana, depois que ele [Jair Bolsonaro] anuncia que vai abrir garimpagem e mineração em terras indígenas, as pessoas já se sentem encorajadas e fortalecidas para tentar práticas ilegais. É importante que os jornais noticiem que a mineração está prevista, mas garimpo é ilegal, e as pessoas que querem entrar em terras indígenas estão correndo o risco de serem presas pela Polícia Federal, porque é crime. Aí acontece o que se deu com essas duas aeronaves, há acidentes. É muito preocupante. As pessoas mais pobres que acham que podem ganhar a vida indo para terras indígenas em busca do sonho do eldorado, isso não resolve o problema social. Deveriam ser cobradas do governo políticas públicas de geração de empregos para que as pessoas não se sujeitem a esse tipo de acidente e também não prejudiquem a vida dos povos indígenas. A TI Yanomami tem situação de índios isolados e muitas vidas que dependem de água. Essa água não vai afetar só os indígenas, vai para as cidades também. Então as pessoas têm que pensar muito bem em que desenvolvimento econômico é esse que o governo prega e não melhora em nada a situação do nosso país. O ouro que está sendo levado para fora sequer tem uma política de fiscalização e controle. Não é porque isso já acontece que tem que regularizar o ilegal.

O que deveria ser prioridade para o governo antes da liberação de atividades econômicas em terras indígenas?

A questão é que tem que dar a resposta primeiro à sociedade pelos desastres de Mariana e Brumadinho, pela falta de fiscalização e controle das mineradoras. Segundo: combater as violações que já existem em terras indígenas, como invasões de madeireiros e garimpeiros. As terras indígenas não estão sendo protegidas como a lei determina. Indígenas estão sendo mortos: como não tem política de proteção, colocam-se à frente, a exemplo do que acontece no Maranhão. É preciso concluir a demarcação de terras indígenas, e nesse primeiro ano nenhuma terra foi demarcada. Que tipo de governo que não respeita a Constituição e propõe retroceder tudo isso? Acredito que temos que fazer uma reflexão: será que a gente quer extinguir os povos indígenas, é essa a política do Brasil? E pensar que tudo isso está acontecendo na Amazônia. Será que queremos destruir esse patrimônio que a gente tem, tão protegido pelos indígenas há milhares de anos? É uma responsabilidade não só dos indígenas ou de quem defende seus direitos, é responsabilidade de cada um no Brasil. É para pensar sério nisso e cobrar do governo: ele está sendo cruel, desumano e perseguindo os povos indígenas.

Na sua avaliação, quais as chances de esse PL ser aprovado da forma como foi apresentado? Quais estratégias serão adotadas para barrá-lo?

Estratégia ninguém fala, a gente vai realizando e vendo. Esperamos que haja uma análise técnica do texto, aprofundada – acredito que ele sequer deveria ter sido recebido, sequer deveria ter sido criada uma comissão especial pelo desleixo e falta de técnica legislativa. Primeiro porque defendo que a via adequada [para regulamentar] a mineração seria pela consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas, como determina a Convenção 169. Segundo, porque a Constituição fala que seria através de uma lei complementar. Espero que a Câmara faça essa análise preliminar antes de discutir a questão de mérito. Tenho esperança que o presidente Rodrigo Maia cumpra essa análise técnica. No ano passado, ele se comprometeu a arquivar qualquer projeto de mineração [em terras indígenas]. O Congresso tem outras prioridades, outras reformas que vêm para melhorar o Brasil, e não prejudicar a vida das pessoas vulneráveis. Temos que ponderar: o que queremos priorizar no nosso Brasil? O que entendemos por desenvolvimento? Desenvolvimento para quem?

O projeto prevê a criação de conselhos curadores formados por indígenas para administrar os recursos provenientes das atividades. Qual a sua avaliação sobre isso?

Tem muitas coisas que não estão claras nesse projeto. Ele restringe bastante a participação indígena, e até mesmo esses conselhos curadores não têm claras a sua atuação e deliberação. É preciso fazer uma análise bastante acurada. Com certeza, existem indígenas que concordam com qualquer proposição do Bolsonaro, que defendem o governo, assim como a grande maioria se preocupa com os direitos coletivos e têm esse cuidado de defender a terra, a mãe natureza.

O governo Bolsonaro sustenta o discurso de que a demanda por integração e recursos financeiros estão entre as maiores necessidades dos povos indígenas brasileiros. A senhora concorda?

Ele viola o preceito constitucional que reconhece nossa organização social indígena – esse é o primeiro ponto. Não nos reconhece enquanto cidadãos com direitos como qualquer brasileiro – direito de receber apoio e investimentos em nossas atividades produtivas, de gestão ambiental e territorial. Nós podemos fazer projetos econômicos diante de nossas decisões, prioridades e conforme nossa organização social. Para isso, não precisamos abrir mão do direito à terra, ao usufruto exclusivo, ou aceitar proposta de mineração que causa danos. É absurda a forma como ele colocou, nas últimas declarações, que os indígenas ainda estariam em desenvolvimento para se tornar humanos. É esperado que o presidente que faz esse tipo de declaração e tem esse entendimento tente jogar alguns valores que não são os indígenas. Nós temos direito a recursos financeiros e investimento econômico, mas sem abrir mão da nossa identidade. Ele tem que estudar muito a nossa realidade e entender que o fato da cultura indígena ser dinâmica não nos torna brancos ou não indígenas. Ele não entende que o povo indígena já está na sociedade brasileira, já é presente; a partir do momento que vou à universidade, por exemplo, estou exercendo minha cidadania enquanto brasileira, mas mantenho minha identidade; o que difere a gente é uma questão cultural. Ele não conhece nada da realidade indígena. Precisa conhecer melhor.

A entrevista é parte do projeto da Agência Pública chamado Amazônia sem Lei, que investiga violência relacionada à regularização fundiária, à demarcação de terras e à reforma agrária na Amazônia Legal. O especial também faz a cobertura dos conflitos no Cerrado, o segundo maior bioma brasileiro.

Vinícius Loures/Câmara dos Deputados

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