Fez sol no primeiro dia de 2013. Dia bom para a molecada do Jardim Rosana empinar pipa e jogar bola nas ruas da comunidade, localizada no Campo Limpo, periferia sul de São Paulo. Os meninos só pararam de brincar quando viram dois policiais militares se aproximando – quem mora na periferia aprende a temer fardas e viaturas.
Os PMs pararam perto de um grupo de quatro adolescentes e um dos policiais deu o aviso: “A motinho preta está vindo aí matar todo mundo”, disse, conforme o relato da comerciante Rita de Cássia de Souza, 52 anos, mãe de Brunno Cassiano, 17, um dos quatro adolescentes ameaçados.
Os meninos ficaram assustados. Eles sabiam do que o policial estava falando. Os assassinos das motocicletas eram fantasmas de carne e osso que vinham assombrando com regularidade as periferias da Grande São Paulo durante o segundo semestre de 2012, autores de chacinas que destruíam famílias inteiras.
Dois homens numa motocicleta, ambos com capacete, apareciam disparando contra um grupo de pessoas. O mesmo roteiro, com os mesmos personagens, foi repetido centenas de vezes, às vezes variando com a presença de um carro escuro, recheado de matadores com toucas ninjas.
Os assassinos sem rosto ficaram conhecidos como “motoqueiros fantasmas” numa referência a um personagem demoníaco dos quadrinhos da editora Marvel. Naquele ano, o motoqueiro com cabeça em chamas chegava às telas na pele de Nicholas Cage, no segundo filme do personagem, chamado Motoqueiro Fantasma: O Espírito da Vingança. Pois parecia que os grupos de extermínio que atacavam as periferias estavam mesmo possuídos por um espírito da vingança, já que quase sempre atacavam nas imediações de onde um policial militar fora morto ou ferido.
Ainda no calor da guerra, em novembro de 2012, o então delegado-geral de polícia de São Paulo, Marcos Carneiro Lima, revelava que, antes das chacinas, policiais militares haviam consultado antecedentes criminais dos mortos. Outras evidências de que eram PMs os que vestiam as toucas ninjas dos grupos de extermínio foram relacionadas em um trabalho ainda inédito realizado por pesquisadores do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), a ser publicado em julho.
“Vai acontecer uma desgraça”
Nenhum policial havia sido atacado na região do Jardim Rosana, quando os PMs anunciaram que a motinho preta iria matar todo mundo, em 1o de janeiro de 2013. Mas os moradores tinham motivo de sobra para temer uma retaliação dos assassinos mascarados. Dois meses antes, em novembro, um morador da favela havia gravado a morte do servente de pedreiro Paulo Batista do Nascimento, 25 anos, assassinado numa das ações que a polícia costuma registrar como “resistência seguida de morte”. Segundo o Ministério Público Estadual, Paulo, 25 anos, já estava rendido pelos policiais e implorou pela vida antes de ser executado com cinco tiros. Após a divulgação das imagens pelo Fantástico, da TV Globo, os cinco PMs envolvidos no crime foram presos.
Nas semanas seguintes, o medo passou a morar no Jardim Rosana. Desconhecidos circulavam em carros escuros, de olho nos moradores. Quando os policiais apareciam fardados, batiam nos jovens e gritavam com as mães que reclamavam. “Faziam isso com todo mundo, independente de errado ou certo”, lembra Rita de Cássia. Os jovens pensaram até em atravessar carros na rua a partir das 22h, para impedir o tráfego, mas não chegaram a colocar a ideia em prática.
Na virada para 2013 as ameaças ficaram mais explícitas. Além do recado da “motinho preta” dado aos meninos, policiais ordenaram ao dono de um bar na Rua Reverendo Peixoto de Lima que fechasse o estabelecimento antes das 21h, senão iria “acontecer uma desgraça”. Sem outro ganha-pão, o comerciante recusou-se a seguir o toque de recolher e o bar ainda estava aberto às 23h de 4 de janeiro quando a desgraça aconteceu. Três carros pararam em frente ao bar, despejando pelo menos 14 homens armados. Segundo os moradores, eles gritaram “polícia” e atiraram em tudo o que viram.
A chacina do Jardim Rosana deixou sete mortos, entre eles o rapper Laércio Grimas, 33 anos, o DJ Lah, popular entre a juventude da periferia, além de três feridos. Uma das vítimas foi Brunno. Segundo Rita de Cássia, seu filho conseguiu escapar da cena do crime apenas com um tiro em uma das pernas e, para se esconder, pulou o portão da casa de uma moradora. Assustada, a mulher chamou a polícia, que levou Brunno.
“Meu filho entrou na viatura baleado na perna e chegou no hospital morto com seis tiros”, lembra Rita.
O relato da mãe de Brunno revela o mundo virado pelo avesso da violência na periferia, onde quem pula o portão de uma casa à noite é a vítima e quem chega para matar é a polícia.
Salve geral
A chacina do Jardim Rosana foi o último ato de uma guerra entre a polícia e o crime organizado que tomou conta dos bairros periféricos da Grande São Paulo durante o segundo semestre de 2012. Uma guerra em que os inocentes foram as maiores vítimas e as forças de segurança do Estado, os principais matadores.
A guerra começou com um “salve geral” (recado a todos os integrantes) distribuído pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) – facção criminosa, criada em 1993, que domina o sistema penitenciário e controla boa parte do tráfico de drogas no Estado de São Paulo. Pela ordem, os membros da facção que estivessem nas ruas estavam convocados a matar “botas” (policiais militares). Os bandidos agiam em nome do espírito da vingança: o PCC dizia que o objetivo era vingar as mortes de seus integrantes ocorridas nas mãos de policiais militares, que estariam agindo “na covardia”, ou seja, praticando execuções.
Teve início a maior ofensiva do PCC contra as forças de segurança desde os ataques que fizeram São Paulo parar em maio de 2006. O número de policiais militares assassinados disparou. Segundo dados publicados no Diário Oficial, 88 PMs da ativa foram mortos no Estado de São Paulo em 2012 (contando mortes em assaltos ou confrontos), contra 56 no ano anterior. Incluindo os da reserva, foram 106 no total.
Após os ataques contra os policiais, veio a resposta dos grupos de extermínio e dos policiais, que matou muito mais gente. Entre as vítimas havia tanto criminosos como trabalhadores sem ficha na polícia, aparentemente mortos apenas porque estavam na rua à noite. Todos tinham algo em comum: moravam na periferia.
Por que não tem chacina nos Jardins?
Em muitas das ações, os matadores das motocicletas fantasmas e dos carros escuros adotavam procedimentos que pareciam pensados para dificultar a investigação dos crimes: enquanto um dos matadores atirava, o outro recolhia as cápsulas deflagradas. Também chamava a atenção das testemunhas a agilidade com que as viaturas da Polícia Militar se aproximavam dos locais das matanças. Familiares das vítimas contaram que, nesses casos, o “socorro” chegava minutos após as mortes e levava para os hospitais baleados que aparentemente já estavam mortos, no que parecia mais uma tentativa de atrapalhar a perícia no local – apagando evidências que poderiam levar aos matadores –do que de salvar vidas.
A suspeita do envolvimento de PMs nos crimes contra a periferia foi levantada pelo próprio delegado-geral da Polícia Civil, Marcos Carneiro Lima, em um desabafo disparado quatro dias antes de deixar o cargo, em 22 de novembro do ano da guerra. Numa entrevista coletiva, Carneiro afirmou que antecedentes criminais de mortos na onda de violência tinham sido consultados por PMs antes dos assassinatos, numa clara indicação da participação policial nos homicídios.
“A sociedade, ao receber a informação de que oito homicídios aconteceram em um curto espaço de tempo, em um espaço geográfico pequeno, é porque alguma coisa estranha está acontecendo”, disse, na ocasião. “É importante ressaltar que a gente nunca teve chacina nos Jardins. Por quê? Por que é tão fácil matar pobre na periferia? Porque ainda existe uma grande parcela da sociedade que acha que matar pobre na periferia é matar o marginal de amanhã”, afirmou.
Olha quem morre, veja você quem mata
Em busca desse “algo estranho acontecendo”, a reportagem fez um levantamento parcial, a partir de dados levantados pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo e do noticiário da época.
Nos 11 casos de ataques contra policiais militares registrados no mapa (que incluem tanto execuções como possíveis latrocínios) seguiram-se 38 homicídios praticados por desconhecidos, muitas vezes de moto, ou mortes de suspeitos em supostos confrontos com a PM.
Em todos os casos, a ação dos matadores ocorreu sempre numa área próxima (até dez quilômetros) e num período de tempo curto (na maioria dos casos, em até dois dias) em relação aos ataques contra os policiais. O mapa também inclui a morte de um sargento do Exército, morto ao tentar proteger um PM num tiroteio, em Santos.
Sejam quais forem os números usados para entender as baixas ocorridas em 2012, uma constatação não muda: nessa guerra, a ação da polícia e dos grupos de extermínio deixou muito mais mortos que os ataques dos criminosos.
Segundo os dados publicados em Diário Oficial, enquanto 88 policiais militares da ativa foram mortos no Estado em 2012, PMs fardados mataram 547 pessoas em supostos confrontos (resistências seguidas de morte) – o maior número desde 2004.
Porém, a conta das vítimas de grupo de extermínios é bem maior. Um estudo inédito feito pelas pesquisadoras Camila Caldeira Nunes Dias, Ariadne Natal, Gorete Marques e Mariana Possas, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) contabilizou 26 PMs mortos e um ferido nos ataques realizados pelo PCC contra agentes do Estado na Grande São Paulo ao longo do segundo semestre de 2012 (excluindo confrontos e latrocínios).
No mesmo período, as execuções praticadas apenas pelos grupos de extermínio na região metropolitana, sem contar as “resistências seguidas de morte” da PM, mataram 306 pessoas e feriram outras 235. Os dados constam do estudo O impacto das decisões políticas na área de segurança pública e ação de grupos de extermínio: o caso da crise de 2012 em São Paulo, que deve ser divulgado em julho, no encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
A análise das pesquisadoras também aponta que os grupos de extermínio parecem ter agido para vingar a morte de policiais. “Do ponto de vista da nossa análise, as dinâmicas sociais e políticas que acompanhamos sugerem a estreita relação entre as execuções, os grupos de extermínio e a participação de policiais nestes grupos”, afirma Camila.
A Rota na rua
Para entender o que deu início à guerra de 2012, a pesquisa do NEV-USP recuou três anos. “A crise de 2012 começa com a nomeação de Antonio Ferreira Pinto como secretário de Segurança Pública, em março de 2009”, afirma Camila, enquanto toma um cappuccino numa lanchonete da Cidade Universitária, na zona oeste de São Paulo. Sorridente e falante, a autora do livro PCC: hegemonia nas prisões e monopólio da violência (Saraiva, 2013) é uma acadêmica que tem prazer em pesquisar e falar sobre suas descobertas, ainda que seus objetos de estudo envolvam prisões, violência e morte.
Ferreira Pinto atuou como secretário da Segurança Pública durante três anos, até perder o cargo, em novembro de 2012, em meio à guerra contra a periferia. Assim que assumiu a pasta, decidiu colocar a Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) na linha de frente das ações de investigação e repressão ao PCC. Era uma decisão arriscada. Desde 1970, quando foi criada para “ações de controle de distúrbios civis e de contraguerrilha urbana”, a Rota virou sinônimo de violência policial – primeiro contra os inimigos da ditadura militar e, após a redemocratização, contra o criminoso comum. Um levantamento feito pelo jornalista Caco Barcellos no livro Rota 66, com base nos registros de 3.846 mortes ocorridas entre 1970 e 1992, concluiu que 65% dos mortos pela Rota eram inocentes.
Para comandar os homens da Rota, Ferreira Pinto escolheu Paulo Telhada, um tenente-coronel com 36 mortes no currículo. Sob seu comando, os policiais da Rota continuaram a fazer jus à má fama da tropa, envolvendo-se em confrontos que deixavam dezenas de mortos – em vários deles, policiais civis e promotores apontaram indícios de execução. Num caso emblemático, policiais da Rota e do 18º Batalhão mataram seis ladrões que se preparavam para roubar caixas eletrônicos em um supermercado em Parada de Taipas, zona norte de São Paulo, em agosto de 2011. Na época, testemunhas denunciaram que os PMs teriam chegado ao local quatro horas antes do crime e preparado uma emboscada para matar a quadrilha, atirando principalmente nas cabeças, costas e pescoços.
A possível emboscada de Taipas foi um dos casos denunciados pela ONG Human Rights Watch numa carta enviada ao governo paulista em 2013. A entidade chamava atenção para os 247 mortos e 12 feridos pela Rota entre 2010 e 2012. “O número elevado de pessoas mortas e o fato que nenhum soldado da Rota em serviço foi morto nesses episódios lançam dúvidas sobre o uso efetivo de armas não letais por seus soldados e a real necessidade do uso de força letal em todas as instâncias”, dizia o texto.
Telhada teria sido vítima de um atentado, em 31 de julho de 2010, nas mãos de um criminoso que disparou 11 vezes contra ele, errando todos os tiros. Aí também o espírito da vingança deu as caras: nas 36 horas após o suposto atentado, a PM matou sete pessoas, conforme reportagem de O Estado de S. Paulo.
Em 1º de agosto, a Rota matou um ex-detento, Frank Ligieri Sons, irmão de um sargento da PM, que teria disparado tiros e jogado um coquetel molotov contra a sede da tropa. Um relatório sigiloso do Dipol (Departamento de Inteligência da Polícia Civil), divulgado pela Folha de S. Paulo, levantou suspeitas de que os atentados contra Telhada e a sede da Rota tivessem sido forjado, mas nada ficou provado.
Ao contrário. A história do atentado ajudou a fortalecer a imagem de Telhada junto à população que já o admirava pelos discursos inflamados em que comemorava a morte de “vagabundos” pela Rota. Telhada entrou para a reserva em novembro de 2011 e, no ano seguinte, foi eleito vereador pelo PSDB, passando a integrar a “bancada da bala” da Câmara Municipal de São Paulo, ao lado dos ex-PMs Álvaro Camilo (PSD) e Conte Lopes (PTB). Seu padrinho foi Ferreira Pinto, que o convenceu a fazer carreira na política.
Sangue com sangue
Com a saída de Telhada, o comando da Rota passou para Salvador Modesto Madia, que tinha um perfil parecido com o de seu antecessor, com um longo histórico de envolvimento em ocorrências violentas, entre elas a participação no massacre de 111 presos no Carandiru, em 1992 – uma tragédia que contribuiu para criar o ambiente que levaria à criação do PCC, no ano seguinte. Com Madia, a Rota continuou a fazer mais e mais “derrubadas”, que é como os PMs chamam as ocorrências com morte.
A violência da PM não demoraria a receber uma resposta do crime organizado. “Quando o governo coloca a Rota para combater o PCC, com algum direcionamento, explícito ou não, que leva à execução de pessoas e produz um número de mortes muito elevado, acaba rompendo uma trégua precária que havia com a facção”, aponta Camila.
Em 2011, o PCC aprova uma nova versão do seu estatuto, que recebeu um item prevendo a vingança contra as execuções da polícia. “Todo integrante tem o dever de agir com serenidade em cima de opressões, assassinatos e covardias realizadas por agentes penitenciários, policiais civis e militares e contra a máquina opressora do Estado”, dizia o texto, que acrescentava: “Vida se paga com vida e sangue se paga com sangue”.
A guerra ia começar.
“Um pouco insensíveis”
“Ele é Antonio para a mulher, Ferreira para a PM e Pinto para a Civil.” Mais comum do que a piada do pavê entre alguns policiais, a anedota mostra como alguns setores da Polícia Civil se sentiam menosprezados durante a gestão Ferreira Pinto, especialmente com a decisão de confiar à Rota as investigações sobre o PCC, antes conduzidas pelos policiais civis do Deic (Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado).
A opção de Ferreira seria fruto de sua formação militar – entre 1964 e 1979, ele atuou como oficial da PM no interior paulista. Na opinião de um delegado, que falou à reportagem sob a condição de anonimato, a violência da Rota faz parte de uma visão militarizada da segurança pública, que vê os criminosos e os moradores das periferias como membros de um mesmo exército inimigo a ser eliminado.
“Alguns fazem uma ideia de mim que não corresponde ao que sou”, rebate Ferreira Pinto, em um final de tarde de sexta-feira, no hall de um hotel na zona sul. Em tom ponderado, entre baforadas de charuto e goles de vinho tinto Château La Motte, Ferreira enumera argumentos para rebater a fama de truculento. “Nunca falei que bandido bom é bandido morto, muito pelo contrário”, afirma. “Eu acho que, se não for no confronto, é covardia matar o cara depois de dominado, em qualquer circunstância.”
O ex-secretário também diz que nunca encarou a segurança pública com o olhar de policial militar. “Eu saí da PM há 33 anos, no tempo em que até a farda era de outra cor”, afirma. “Naquela cadeira, eu sempre agi e reagi como promotor.”
De fato, na maior parte da vida Ferreira atuou no Ministério Público, onde ingressou após deixar a polícia. Além de promotor, foi assessor da Corregedoria-Geral do MP e procurador de justiça. Foi um dos criadores da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), logo após o massacre do Carandiru. Assumiu a SAP em maio de 2006, convidado pelo governador Cláudio Lembo (então PFL, hoje DEM), em meio a um duro confronto entre o Estado e o PCC. Três anos depois, trocou a Administração Penitenciária pela Segurança Pública, nomeado pelo governador José Serra. Conseguiu que sua antiga cadeira na SAP fosse ocupada Lourival Gomes, seu secretário-adjunto e homem de confiança.
Nascia, assim, uma dobradinha entre as pastas da Segurança Pública e Administração Penitenciária para vigiar e combater o PCC, com a participação do Ministério Público e da Rota. A base eram escutas feitas nos celulares dos presos – sempre a partir de pedidos feitos pelo MP e com autorização da Justiça, segundo Ferreira. O conteúdo das escutas, segundo ele, era repassado à Rota, que tinha a missão de investigá-las. “A nossa principal medida [contra o crime organizado] foi colocar a PM para fazer parte desse processo”, afirma.
As pistas levantadas nas escutas levaram a Rota a fazer prisões e, muitas vezes, matar suspeitos. O ex-secretário garante que as mortes nunca fizeram parte desse planejamento, embora reconheça que a polícia paulista é violenta. “Sei os valores que os PMs cultivam, e infelizmente, pelo dia a dia, eles são um pouco insensíveis com relação a lesão corporal e a crimes contra a vida”, diz. Num outro momento da entrevista, defende que a PM é violenta dentro dos limites legais. “Em 55% dos casos de confronto com a polícia não tem evento de morte. Os bandidos são presos vivos ou fogem”, afirma.
Perguntado sobre os indícios apontando a relação entre grupos de extermínio e ataques contra policiais nos crimes de 2012, afirma: “Alguém numa moto, ou num carro escuro, pode ser briga de facção, briga de tráfico, disputa por ponto, e falam: ‘vamos debitar na conta da PM’”. E acrescenta: “Tenho convicção de que não tem grupos de extermínio na polícia”.
“O Estado não pode abrir mão de sua autoridade, senão fica um Estado frouxo”, continua. “Com um Estado frouxo, o tráfico se multiplica e o bandido, quando vai fazer um assalto, vai drogado e põe fogo no dentista. Numa ação forte e enérgica da polícia, a violência é uma contingência.”
“Para mim, aquilo foi uma execução”
O estopim que deu início à guerra de 2012 foi aceso na noite de 28 de maio de 2012 em um lava-rápido na favela Tiquatira, na Penha (zona leste), onde policiais da Rota mataram seis homens. Segundo a polícia, os suspeitos participavam de uma reunião para organizar o resgate de um preso no Centro de Detenção Provisória do Belém. Eles teriam morrido numa “resistência seguida de morte”, ao atirar contra os PMs.
Entre os mortos estava Anderson Minhano, homem forte de Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder do PCC. Baleado no lava-rápido, Minhano foi socorrido por três policiais da Rota para um pronto-socorro em Guarulhos, mas não resistiu e morreu.
Não foi bem isso o que viu uma testemunha vizinha do Parque Ecológico do Tietê que ligou para o 190. Em seu telefonema, ela descreve como os policiais da Rota teriam parado no acostamento da Rodovia Ayrton Senna, a caminho do hospital, e executado Minhano. “Ai, mais tiro, ai, meu Deus! Ele está atirando e vai atirar de novo. Ai, misericórdia! Ai, Jesus, mais tiro! Isso é à queima-roupa, mesmo, viu. Olha, só Deus na vida desse homem, se ele sobreviver pra contar a história”, narra a testemunha, na gravação divulgada pelo Fantástico, da Globo.
Mesmo o ex-secretário Ferreira Pinto afirma que a Rota praticou uma execução na Penha. “Assim que fiquei sabendo, liguei para o comandante-geral da PM e falei: ‘prende os caras’. Para mim, aquilo foi uma execução”, conta.
A defesa dos PMs negou o crime, afirmando que a testemunha não teria condições de visualizar uma execução da distância em que estava, e alegou que a viatura havia parado na rodovia porque um dos policiais estava com cãibras.
A versão convenceu o tribunal do júri por duas vezes. Inicialmente, o sargento Carlos Aurélio Thomaz Nogueira, o cabo Levi Cosme da Silva Júnior e o soldado Marcos Aparecido da Silva foram absolvidos num julgamento realizado cinco meses após o crime. A pedido do Ministério Público o julgamento foi anulado, e um novo júri ocorreu em 14 de maio deste ano. Uma das testemunhas de defesa foi o empresário e apresentador de tevê Roberto Justus, que se manifestou a favor do sargento Nogueira, afirmando que o acusado fazia a segurança de sua família havia mais de 15 anos.
Independente das decisões da justiça, o PCC havia dado veredito dias após a morte de Minhano, abrindo a temporada de caça aos policiais militares.
Covardias de bandido e de polícia
Logo após a chacina no lava-rápido da Penha o PCC passou a direcionar ataques contra policiais militares. Dessa vez, a facção adotou uma estratégia bem diferente das ações praticadas durante os dois ataques anteriores que disparou contra o Estado. A primeira grande ação do PCC, em 2001, foi uma megarrebelião que envolveu 29 unidades prisionais. O ataque seguinte do Comando, em maio de 2006, ocorreu dentro e fora das prisões: além de promover 82 motins no sistema prisional, os criminosos mataram 43 agentes públicos, incluindo policiais, guardas civis agentes penitenciários e até um bombeiro.
Em 2012, os ataques do PCC foram mais discretos e direcionados. Não houve rebeliões nos presídios. As ações ocorriam nas ruas, quase que exclusivamente contra policiais militares.
“Os ataques de 2006 tiveram como resposta do Estado uma repressão grande, tanto da polícia como no sistema prisional. Muitas lideranças do PCC ficaram por muito tempo no castigo do RDD (Regime Disciplinar Diferenciado)”, afirma Camila, referindo-se ao regime no qual o preso fica 22 horas por dia trancado sozinho na sela. Em 2012, os ataques menos espetaculares, que podiam ser confundidos com assaltos, dificultava para as autoridades associar diretamente os crimes à facção. “O PCC fez o enfrentamento de uma forma que não expôs as lideranças que estavam presas à retaliação direta pelo Estado, tanto que poucas lideranças acabaram punidas em 2012”, lembra a pesquisadora.
Nesses crimes, o PCC agia com a mesma covardia que dizia condenar na ação do Estado. Os policiais eram mortos em seu horário de folga, pelo único motivo de serem policiais militares. Uma das vítimas, por exemplo, a soldado Marta Umbelina da Silva de Moraes, 44 anos, uma PM de perfil administrativo, que provavelmente nunca havia atirado em alguém, levou dez tiros ao chegar em casa, na Vila Brasilândia (zona norte), diante da filha de 11 anos, em 3 de novembro.
Nesse caso, como em outros, não demorou para o espírito da vingança se manifestar. Dois dias após a morte de Marta, a dois quilômetros do local onde ela havia sido baleada, um Celta prateado se aproximou de um grupo de jovens em uma esquina e disparou aleatoriamente (veja outros casos no mapa interativo). Dos três baleados, apenas um sobreviveu. O crime ocorreu a cerca de 100 metros de onde estava uma viatura policial. Mesmo assim, segundo testemunhas, os atiradores foram embora sem pressa.
Parentes e amigos das vítimas contaram que nenhum deles tinha relação com o crime. Um dos mortos, filho de uma gerente de banco, voltava da academia e tinha acabado de se matricular em um curso de administração de empresas.
No dia seguinte à matança, a reportagem encontrou os amigos dos rapazes reunidos em frente à casa de um deles. Estavam a caminho do enterro, vestindo camisetas com os rostos dos amigos mortos. De repente, foram cercados por policiais militares, que apontaram armas para o grupo e, aos gritos, obrigaram todos a encostar num muro enquanto eram revistados. A quebrada já nem podia chorar impunemente os seus mortos.
Da ponte pra cá…
Nem chorar, nem trabalhar ou estudar, muito menos festejar. Viver se tornou muito perigoso nas quebradas da Grande São Paulo ao longo daqueles meses. Há relatos de que policiais fardados ordenavam toques de recolher após as 22h. O medo levou o comércio a fechar em pleno dia no Jardim João 23, na zona oeste, e em Perus, na norte. À noite as pessoas se trancavam em casa. “Inventa de passar aqui depois das nove da noite para você ver… Não tem ninguém na rua. Onde tem uma turminha, eles metem bala”, contou, em novembro, um comerciante de 50 anos do Jardim Comunitário, em Taboão da Serra.
Em Jangadeiro, bairro da zona sul, funcionários de padarias e mercados disseram ter sido orientados a voltar para a casa com a roupa do trabalho após o expediente, para que não fossem confundidos com “suspeitos” e, talvez, assassinados. “Um amigo disse que estava voltando do trabalho à noite, com mochila nas costas, quando uma moto parou do lado, em uma rua aí em cima. O garupa ia atirar, mas o da frente disse ‘para, deixa para lá, esse é trabalhador’. E olha que é só tiro certeiro, cara, pescoço e coração”, contou um manobrista de 23 anos, do Jardim São Luís, também na zona sul.
No mesmo bairro, um cozinheiro relatou o clima de terror em que sua vida havia se transformado. “Se vejo dois caras de moto, já penso: ‘Será que é a minha hora de morrer?’. Não vou tomar mais cerveja de costas para a rua no bar”, contou. Apesar do medo, o patrão, morador do centro expandido, não o deixava sair mais cedo do trabalho. “Ele lá vai querer sabendo do que está acontecendo?”
Tinha muita gente que não sabia do que estava acontecendo. Ao contrário do que havia ocorrido em maio de 2006, quando o pânico tomou conta de São Paulo inteira, a guerra de 2012 não atravessou a ponte João Dias (símbolo da fronteira entre centro e periferia na capital paulista). Mas houve uma exceção.
…e da ponte para lá
A exceção foi o assassinato do publicitário Ricardo Prudente de Aquino, 39 anos, em 18 de julho, na zona oeste de São Paulo. Após fugir de uma tentativa de abordagem da PM na Vila Madalena, Ricardo foi baleado na Avenida das Corujas, no Alto de Pinheiros. Socorrido, morreu no Hospital das Clínicas. Não tinha arma.
Uma história muito parecida com centenas de outros crimes ocorridos na mesma época. Mesmo assim, ganhou mais espaço na mídia do que qualquer outro, talvez por envolver uma vítima branca, de classe média, moradora do centro expandido.
A resposta dada pelo Estado também foi diferenciada. Em 15 de outubro do ano passado, a Polícia Militar expulsou os três acusados pelo crime: o sargento Adriano Costa da Silva Caire e os soldados Robson Tadeu do Nascimento Paulino e Luís Gustavo Teixeira Garcia. A expulsão ocorreu antes de os PMs serem julgados pelo tribunal do júri, o que é incomum.
“Não me mata, pelo amor de Deus, não me mata”
Em meio à guerra, parte dos policiais adotavam ações que tinham mais a ver com táticas de choque e pavor do que com combate ao crime. Em 1º de julho, dois PMs do 14º Batalhão, de Osasco, encontraram cinco pedras de crack com um homem que voltava para casa, de madrugada, pela avenida Martin Luther King.
Segundo o Ministério Público do Estado de São Paulo, os PMs ameaçaram prender o suspeito por tráfico de drogas caso ele não aceitasse levar os policiais até a “biqueira” onde havia comprado a droga, localizada numa favela da Vila Dalva, na zona oeste de São Paulo. Depois que o suspeito cedeu, a dupla chamou outros quatro policiais e, juntos, invadiram a favela.
A denúncia do MP indica que os policiais não estavam preocupados em impor a lei ou preservar vidas. Não só não apreenderam as pedras de crack, como ainda permitiram que o suspeito fumasse diante deles. O mesmo suspeito foi obrigado a participar da entrada dos PMs na favela, sendo usado como “escudo humano”. Os policiais trocaram tiros com traficantes da “biqueira”, mas os criminosos fugiram. Logo após o tiroteio, os PMs viram uma motocicleta com dois jovens passar pela avenida Pablo Casals. Atiraram em ambos.
Nenhum dos baleados estava armado, nem era traficante. Na direção da moto, estava César Dias de Oliveira, 20 anos, orgulhoso da moto CBR 300 que havia comprado, três meses antes, com as economias do seu salário de operário numa indústria têxtil. Na garupa, Ricardo Tavares da Silva, mesma idade, amigo de infância de César, que trabalhava como repositor num supermercado. Segundo uma testemunha, Ricardo gritou “Socorro, não me mata, pelo amor de Deus, não me mata” antes de ser baleado pelos policiais. Os dois morreram no Hospital Regional de Osasco.
Quando foi ao local do crime e conversou com os policiais que estavam ali, diante da moto caída no chão e das marcas de sangue impressas na ladeira, o pai de César, o eletricista Daniel Eustáquio de Oliveira, hoje com 52 anos, aprendeu o que significava, na prática, a expressão “resistência seguida de morte”. Ouviu de um PM no local que “os dois meliantes” haviam sido mortos em troca de tiros com a polícia. Naquele momento Daniel entendeu que as vítimas eram tratadas como culpadas antes mesmo do início das investigações.
Temendo uma apuração enviesada da polícia, Daniel pediu licença do emprego por 45 dias e passou a conduzir suas próprias investigações, que, entre outras provas, ajudaram os investigadores do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa) a chegar a uma testemunha-chave da execução dos meninos. “Ela aceitou depor porque, quando tinha 12 anos, a polícia matou o irmão dela”, conta Daniel.
Os seis policiais envolvidos no caso – o tenente Rafael Salviano Silveira, o sargento Marcelo Oliveira de Jesus e os soldados Raphael Arruda Bom, Cringer Ferreira Prota e Denis da Costa Martinez – foram denunciados e aguardam julgamento. Graças à batalha solitária de um pai, a morte de César e Ricardo é um dos raros casos, entre os crimes de 2012, que caminha para terminar com uma provável punição dos responsáveis.
Em meio à guerra, Daniel conta que foi procurado por uma pessoa que se disse integrante do PCC, que teria se oferecido para executar os PMs que haviam matado seu filho. “Eu falei não para eles. Eu disse: ‘Cada policial envolvido no caso do meu filho tem pai, mãe, irmão, esposa, filho. Eu não quero passar para esse pessoal o que estou sentindo. Não vou arrumar um erro com outro”, afirma Daniel.
“Eu quero provar a inocência do meu filho e que eles paguem pelo erro que fizeram”, acrescenta o pai, que hoje leva uma tatuagem com um retrato do filho no antebraço direito, em cima da inscrição “Meu Herói”.
“Quem não reagiu está vivo”
Uma das maiores “derrubadas” levadas a cabo pela Rota ocorreu em 11 de setembro, quando os PMs mataram nove pessoas em Várzea Paulista, interior do estado. Oito deles eram suspeitos de participar de um “tribunal do crime” organizado pelo PCC para julgar um morador acusado de estupro. A nona vítima da Rota era o réu do tribunal, que já havia sido julgado e absolvido em um “debate” promovido pelos criminosos. A polícia afirmou que Maciel Santana da Silva, 21 anos, portava uma pistola 9 mm, com sete cartuchos íntegros, no suposto tiroteio, mas não soube explicar porque ele estaria armado.
A ação contou com 40 homens da PM. Segundo o boletim de ocorrência registrado na época, 17 integrantes da Rota efetivamente usaram suas armas: foram 61 disparos. Na mesma noite, o comando-geral da PM se apressou em dizer que a ação havia sido legítima. Toda a cúpula da segurança pública do Estado seguiu a mesma toada. O governador Geraldo Alckmin (PSDB) também aprovou operação. “Quem não reagiu está vivo”, disse, à época.
Apenas dois dias após a chacina o próprio Ministério Público Estadual em Várzea Paulista afirmou que não via qualquer indício de irregularidade. Segundo pessoas próximas ao local da matança, policiais da Rota checaram cuidadosamente com as empresas da região se as câmeras de vigilância haviam flagrado a ação.
Troca-troca
A chacina de setembro foi seguida pela segunda onda de violência, ainda maior que a que se iniciou no meio do ano. O último trimestre de 2012 trouxe consigo 1505 homicídios no Estado, um aumento de 33,77% em relação ao mesmo período do ano anterior (1125). Na capital, a situação foi ainda pior: foram 450 casos, 66,66% a mais que em 2011.
A matemática da morte foi um dos fatores que pesaram na decisão de Geraldo Alckmin de substituir Ferreira Pinto no comando da SSP. Segundo pessoas ligadas à cúpula da segurança pública, Alckmin trazia os números anotados em um caderninho com o escudo do Santos, seu time de coração, e cobrava um melhor desempenho no setor que, até pouco tempo, era sua melhor estatística para vender uma São Paulo segura ao eleitorado. Sem os resultados que esperava, passou a ligar diretamente para os subordinados do então secretário.
Na tentativa de conter o conflito, o governo apertou o cerco a duas lideranças do PCC. Um deles foi Francisco Antonio Cesário da Silva, o Piauí, um dos chefes do tráfico na favela de Paraisópolis, que estava foragido desde maio, quando ganhou o direito de passar fora da cadeia o Dia das Mães. Uma operação conjunta entre o Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado) e a Polícia Federal prendeu o criminoso enquanto ele acompanhava uma partida de futebol em Itajaí (SC), em 27 de agosto. Em novembro, Piauí foi transferido para o Presídio Federal de Rondônia, em Porto Velho.
Outra liderança do PCC que o governo também mandou para Porto Velho, na mesma época, foi Roberto Soriano, o Tiriça. Soriano estava detido no RDD (Regime Disciplinar Diferenciado) da penitenciária Presidente Bernardes (SP), desde que foi pego, em setembro de 2012, tentando mandar, por meio de um bilhete, uma ordem para que seis PMs fossem assassinados por integrantes da facção.
Nada disso serviu para estancar o derramamento de sangue nas ruas, e nem para segurar o secretário da Segurança Pública no cargo. Em 22 de novembro, Ferreira Pinto deixou o cargo. Em seu discurso de despedida, Ferreira fez questão de defender a atuação da Rota, que, segundo ele, “cumpriu seu papel com muita galhardia”.
Já o substituto de Ferreira, o promotor Fernando Grella Vieira, que havia sido procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo, assumiu a Segurança Pública prometendo resgatar o respeito aos direitos humanos em sua atuação. “Não se pode tolerar a omissão do Estado, mas não se pode aceitar sob qualquer fundamento a violação dos direitos fundamentais e das liberdades públicas. A boa ação é a que combina o irrestrito respeito aos direitos humanos e a ação efetiva do Estado”, afirmou.
Um recado: parem de matar
Os compromissos de Grella foram colocados à prova em seus primeiros dias, com a chacina do Jardim Rosana, em 4 de janeiro de 2013, descrita no início dessa reportagem. Esclarecer o crime era fundamental para dar fim ao ciclo de violência. Responsável pela investigação, o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa, da Polícia Civil, contou com a ajuda do batalhão de área e da Polícia Científica para chegar aos autores da matança. Todo o arsenal do 37º BPM (Batalhão da Polícia Militar) ficou à disposição de peritos: ao analisá-las diligentemente, descobriram uma das balas disparadas no bar havia saído de uma das armas armazenadas ali – foi a 86ª arma a ser analisada.
Na coronha de uma espingarda calibre 12 havia sangue do DJ Lah. Como dominó, os participantes da chacina foram caindo um a um. Como havia vontade política de esclarecer o crime, a polícia usou o que tinha de melhor.
Foram dez indiciados pela chacina do Jardim Rosana, logo nos primeiros dias após a chacina. Menos dos que os 14 homens que, segundo os moradores da comunidade, participaram do crime. Ainda assim, era um recado claro do novo secretário: as ações de extermínio contra a periferia não seria toleradas com tanta facilidade.
O outro recado de Fernando Grella veio na forma de uma resolução, publicada pela Segurança Pública em 8 de janeiro, quatro dias após a chacina do Rosana. A Resolução nº 5 proibia que policiais fizessem o resgate de baleados em confrontos, reservando a tarefa para o Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência), da prefeitura. Embora Grella nunca tenha admitido publicamente o motivo real da medida, quem acompanha os bastidores da ação policial sabia do que se tratava. A intenção era impedir que policiais fizessem o “resgate” de suspeitos que já estavam mortos, apenas para modificar o local do crime e atrapalhar o trabalho da perícia, ou que a PM executasse os feridos a caminho do hospital.
A mesma resolução incluía um outro item alterando o termo “resistência seguida de morte” para “morte decorrente de intervenção policial”, uma antiga reivindicação de organizações de defesa dos direitos humanos.
As medidas foram criticadas pelo antigo secretário. “Quando o governo fala que o policial não pode socorrer o cara que está baleado está fazendo um juízo precipitado de que o policial vai levar o cara até o pronto-socorro e vai matá-lo”, diz Ferreira Pinto. E garante: “Isso não acontecia. Muitas vidas foram salvas pelo pronto-atendimento”.
Seja como for, as medidas parecem ter posto fim à guerra de 2012 e fizeram cair os números da letalidade policial. Em 2013, foram 334 mortos por PMs em serviço contra 547 em 2012 – queda de 38,9%. Por outro lado, a queda na letalidade teve lá os seus limites: no mesmo período, houve um aumento no número de mortos por PMs em horário de folga: passou de 160 para 233 (45,6%).
Depois de 2012
O governo Alckmin, contudo, não teve o mesmo sucesso em investigar e punir os responsáveis pela guerra de 2012. O DHPP ficou sobrecarregado de inquéritos durante o período e, segundo policiais, com falta de gente para tocar o serviço. Usando dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação, a reportagem descobriu que o departamento ficou responsável por investigar 584 assassinatos entre 29 de maio de 2012 e 4 de janeiro de 2013.
Até janeiro de 2014, um ano após a chacina que marcou o fim do ciclo de violência, apenas 12,8% (75) dos casos tinham sido esclarecidos, com indiciamento dos autores. No mesmo período, 34 PMs foram indiciados por homicídios dolosos cometidos durante o serviço.
A impunidade para os crimes de 2012 talvez ajude a explicar porque casos parecidos tenham continuado a ocorrer. Em 17 de abril de 2013, ataques de homens encapuzados mataram quatro e balearam sete em Osasco e Carapicuíba, na Grande São Paulo, como resposta à morte de um policial militar ocorrida em fevereiro, em Osasco. Dois PMs foram presos pelo crime.
Neste ano, o espírito da vingança encarnou em Campinas, onde, em 12 de janeiro, o PM Arides Luiz dos Santos foi morto num confronto com dois assaltantes. Em questão de horas após o crime, atiradores em um carro já tinham matado 12 pessoas em bairros da periferia, na maior chacina da história da cidade.
As chacinas de Osasco e Campinas revelam que o espírito da vingança continua a atuar na corporação, como um encosto que o governo paulista não consegue exorcizar.
A solução não parece próxima, já que a Secretaria da Segurança Pública nem mesmo reconhece a existência do problema. Perguntada sobre as evidências que apontariam para a possível ação de grupos de extermínio formados por policiais durante o segundo semestre de 2012, a assessoria de imprensa da secretaria respondeu apenas isso: “A SSP não trabalha com hipóteses, mas informa que as corregedorias das polícias apuram a participação de policiais em qualquer tipo de crime. E são punidos quando comprovadas as responsabilidades”.
E acrescentou, burocraticamente: “Esclarece, ainda, que não compactua com o desvio de conduta de policiais. Em 2013, a Polícia Militar instaurou 2.386 inquéritos e demitiu 360 PMs. Já na Polícia Civil foram 1.362 inquéritos e 183 demitidos”.
A resposta da assessoria de imprensa da Polícia Militar vai na mesma linha, com um pouco mais de pompa. “Há 182 anos, a Polícia Militar zela pela segurança da população de bem do Estado, de dia, de noite, no asfalto, na terra, onde houver cidadãos. Isso é o que a instituição tem feito, sempre”, afirma. “Todos os casos em que haja indícios de suposto envolvimento de policiais militares em crimes, há investigação implacável da Corregedoria da PM, além, evidentemente, dos inquéritos realizados pela Polícia Civil.”
Festa no céu
Enquanto isso, o Estado continua a agredir e matar nas periferias. Mesmo fora dos períodos mais acirrados de conflito, como em maio de 2006 ou no segundo semestre de 2012, os abusos nunca pararam. A paz apenas significa que as mortes prosseguem em ritmo mais lento, e com mais discrição.
“A polícia continua a perseguir os moradores. Houve ameaças e suspeitas de execução, mas nada disso aparece na mídia”, conta Doraci Mariano, 53 anos, líder comunitário do Jardim Rosana.
Rita de Cássia, mãe de Brunno, confirma. “Tem policiais que participaram da chacina e não foram presos. Eles aparecem na comunidade para ameaçar as testemunhas. Dizem que agora vão matar sem [touca] ninja”, conta.
Num começo de tarde de uma quarta-feira, Rita de Cássia prepara uma carne de panela na cozinha de um sobrado no litoral paulista, onde passou a morar após a morte de Brunno. A casa está cheia de fotos do menino gordo e alegre, morto aos 17 anos, formado em instalação de som automotivo pelo Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), que já havia instalado equipamentos de som inclusive nos carros de policiais do bairro. O celular toca. Ao atender, Rita comenta: “Sabia que hoje é o aniversário de 19 anos do Brunno? É dia de festa no céu”.
Após o almoço, ela comenta com o repórter, num tom calmo e preciso: “Meu filho não morreu. Eles tiraram a vida dele. Morrer é uma coisa. Ser matado é outra. Não morreu no tempo dele”. Hoje, para seguir vivendo, Rita se agarra à esperança de ver punidos todos os assassinos de Brunno. “Vou continuar lutando até que me matem ou até que se faça justiça.”
Pessoas como Rita de Cássia ou Daniel Eustáquio fazem parte de uma multidão de vítimas invisíveis da violência, que carregam dentro delas as marcas deixadas pelos tiros que atingiram seus familiares e amigos. Gente que não aparece nas estatísticas, os parentes e amigos dos mortos são vítimas ocultas que têm as vidas transformadas pela violência.
“Essas pessoas relatam que a vida acabou. Não sentem mais felicidade e vivem com medo. Há relatos de pessoas que perderam a fé e deixaram de frequentar seus lugares de culto. Elas mudam de casa, largam o trabalho. Perdem os vínculos sociais que tinham”, relata a psicóloga Clodine Janny Teixeira, doutoranda do Instituto de Psicologia da USP, que estuda os efeitos da atuação dos grupos de extermínio na zona sul de São Paulo.
Clodine lembra que um estudo feito pelos pesquisadores Dayse Miranda, Doriam Borges, Glaucio Ary Dillon Soares, publicado no livro As vítimas ocultas da violência na cidade do Rio de Janeiro (Record, 2006), calculou que cada morte violenta gera outras 30 dessas vítimas “ocultas”. Essa conta revela que a guerra de 2012 deixou milhares de traumatizados. Gente que, conforme Clodine, passa a conviver diariamente com “uma sensação de desproteção, o medo de que podem ser mortos a qualquer momento só porque são negros e moram na periferia”.
E o medo, lembra Clodine, é uma importante ferramenta de controle. “Minha hipótese é de que isso é intencional. Manter as pessoas com medo é uma forma de impedir que se articulem e lutem por seus direitos.”
Na luta contra PCC, governo cometeu ilegalidades
As duas décadas de conflitos entre o governo tucano e o Primeiro Comando da Capital não se parecem nada com uma história de mocinhos contra bandidos, ou de lei versus crime. Ao contrário. Lembram mais uma espiral de vinganças entre dois grupos rivais, em que ambos cometem ilegalidades e matam inocentes. Pior: na matemática da morte, é o Estado quem carrega mais mortes nas costas.
A própria origem do PCC está ligada a um dos piores crimes cometidos pelo Estado brasileiro após a redemocratização: a execução de 111 presos no pavilhão 9 da Casa de Detenção, em 2 de outubro de 1992, durante o governo de Luiz Antonio Fleury Filho (PMDB). A facção surgiu no ano seguinte, numa reação tanto à violência do massacre quanto às práticas sistemáticas de tortura que estariam sendo praticadas no Anexo da Casa de Custódia de Taubaté, o Piranhão, onde nasceu o PCC.
“O PCC foi criado por nove pessoas: oito presos e o senhor”, disse Idemir Carlos Ambrósio, o Sombra, uma das principais lideranças do PCC, assassinado em 2001, para Ismael Pedrosa, que dirigia o Piranhão em 1993 e a Casa de Detenção na época do massacre. A afirmação está no livro Cobras e Lagartos (Objetiva, 2005), do jornalista Josmar Jozino.
Nos anos seguintes, o governo iniciou um jogo de esconde-esconde com o PCC, em que as autoridades volta e meia desmentiam a existência da facção, dizendo que era invenção da imprensa. Negar que o PCC fosse real, contudo, ficou impossível depois de fevereiro de 2001, quando o grupo coordenou uma megarrebelião que ocorreu simultaneamente em 29 unidades prisionais do Estado de São Paulo.
Encarnando o espírito da vingança, o governo Geraldo Alckmin (PSDB) reagiu contra o crime organizado com uma ação que, segundo o Ministério Público, teria sido ela própria criminosa: a morte de 12 criminosos na Rodovia Senador José Ermírio de Moraes, a Castelinho, em Sorocaba (SP). Segundo a denúncia do MP, na época policiais militares haviam recrutado bandidos com a missão de convencer os membros do PCC a participar do roubo a um avião pagador que, na verdade, nunca existira. Os informantes da polícia teriam até fornecido armamento para o bando, sem contar que se tratava de balas de festim. Era uma emboscada. No dia combinado, a PM cercou a quadrilha, que estava num ônibus, e matou todos em um suposto confronto.“A Operação Castelinho foi a maior farsa já protagonizada pela polícia de São Paulo”, afirmou, na época, o promotor Carlos Cardoso, assessor de Direitos Humanos do Ministério Público de São Paulo. Viriam outras.
A próxima vendeta do PCC, os ataques de maio de 2006, também foram provocados por uma ação ilegal de representantes do Estado: um grupo de policiais, liderados pelo investigador Augusto Peña, que teria sequestrado e torturado um enteado do principal líder da facção, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, em troca de um resgate de R$ 300 mil, conforme o relatório “São Paulo Sob Achaque”, produzido pela Clínica Internacional de Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Harvard em parceria com a ONG Justiça Global.
A reação de Marcola foi ordenar uma onda de violência dentro e fora dos presídios, com 82 rebeliões e a morte de 43 agentes públicos. Também dessa vez a reação do Estado ao crime foi pior do que o crime. Entre 12 e 20 de maio, 493 pessoas foram assassinadas, tanto por policiais militares, em “resistências seguidas de morte”, como por grupos de extermínio. O relatório “São Paulo sob Achaque” identificou indícios da participação de policiais em 122 execuções do período.
Ao contrário do que ocorreu no episódio da Operação Castelinho, o Ministério Público esteve mais próximo de apoiar do que de denunciar as possíveis violências policiais. Logo após a semana dos ataques, em 25 de maio de 2006, 79 promotores criminais da capital assinaram documento em que reconheciam “a eficiência da resposta da Polícia Militar, que se mostrou preocupada em restabelecer a ordem pública violada”.