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Empresas americanas de fotos de satélite borram imagens para ajudar Israel

Decisão de empresas americanas reflete como a geopolítica da tecnologia interessa cada vez mais aos EUA

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14 de novembro de 2023
06:00
Este artigo tem mais de 1 ano

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O leitor não se assuste, mas nesta coluna vou conectar três eventos aparentemente desconexos, mas que fazem todo o sentido se olhados juntos, pois se referem à conexão de que tanto falamos neste espaço, entre tecnologia e democracia, tecnologia e poder, e, nesse caso, poder global.  

Uma parte da guerra entre Israel e Palestina em Gaza está sendo travada há milhares de quilômetros dali, nos escritórios elegantes de Manhattan ou de São Francisco. Há algumas semanas, estive com a diretora de um site noticioso de Nova York que me disse haver uma insurreição na sua redação – não dos repórteres, mas dos trabalhadores judes de outras áreas, como da contabilidade e do jurídico. Eles exigiam uma cobertura mais pró-Israel. “Claro que não vamos fazer isso, mas tenho que acolher e explicar para eles como é feito o jornalismo”, ela me disse. 

Talvez seja esse o mesmo tipo de pressão que levou algumas empresas de tecnologia do Vale do Silício a decidir alterar seu principal serviço para dar uma vantagem às forças israelenses. Ou talvez elas tenham recebido uma ligação “amistosa” do governo. 

Nos últimos anos, empresas privadas de satélite passaram a vender imagens em alta qualidade para veículos noticiosos de todo o mundo, possibilitando um tipo de jornalismo que hoje é conhecido por “open source intelligence” (OSINT) ou investigação visual. 

Como as imagens de satélite permitem a análise quase instantânea do que acontece em qualquer lugar – como no teatro de guerra –, isso significa que jornalistas conseguem checar o que está ocorrendo de fato através de cruzamento de dados, topografia, horário e padrões arquitetônicos, em vez de confiar apenas nas fontes oficiais. 

Hoje, esses veículos têm acesso a imagens tão detalhadas quanto apenas as agências de inteligência e defesa tinham alguns anos atrás. Aproveitando-se disso, grandes jornais como New York Times, Washington Post, BBC e Guardian montaram equipes de investigação visual que usam fartamente essas imagens. Vale dar uma olhada em tudo o que tem sido produzido, da redução de reservas de água na Ucrânia à destruição dos bombardeios em Gaza.

Foram técnicas de investigação de imagens, aliás, que levaram o New York Times a pedir desculpas por ter publicado que o míssil que atingiu o hospital al-Ahli, em Gaza, fora lançado pelas forças de Israel. Jornalistas que tiveram acesso a imagens de TV e satélite alertaram que a destruição causada não condizia com a de um míssil, mas sim de um foguete, jogando suspeita na Jihad Islâmica, aliada do Hamas. 

Empresas como Planet Labs e Maxar Technologies expandiram sua reputação e seus contratos durante a guerra na Ucrânia, ao permitir a clientes do mundo inteiro observar as movimentações da invasão russa quase em tempo real. No final de 2022, as imagens deram corpo às declarações do presidente americano, Joe Biden, sobre uma invasão russa iminente, por exemplo.

O diretor da Maxar chegou a publicar um texto no site da empresa dizendo que as imagens comerciais de satélites representaram uma “virada do jogo” na guerra, dando mais informações ao governo ucraniano, ampliando a cobertura da imprensa global e desmentindo campanhas de desinformação (russas).  

Agora, com o invasor alinhado ao governo americano, a coisa muda um pouco de figura. Uma reportagem do site Semafor revelou que essas mesmas empresas decidiram “borrar” imagens do norte de Gaza que mostravam a localização de tanques israelenses e que vinham sendo usadas por jornais para relatar o que se passava no terreno. Aparentemente, a mudança aconteceu depois de uma reportagem do New York Times detalhar o posicionamento das forças invasoras. 

O nível de detalhamento das imagens “preocupou oficiais de segurança do governo americano”, diz a reportagem. 

Segundo a Semafor, as empresas passaram a entregar para seus clientes imagens de Gaza com vastos trechos borrados, em baixa resolução ou com atraso de alguns dias. Uma imagem vista pelo site mostrava áreas ao redor de Gaza em detalhes, mas na faixa costeira viam-se grandes blocos de uma só cor.  

Procurada pelo repórter, a empresa Planet Labs assumiu que, durante conflitos, pode modificar imagens publicadas no seu arquivo. 

A mudança de postura demonstra que, embora na teoria a tecnologia seja neutra, não existe uso neutro da tecnologia.   

A nova guerra “tem forçado as empresas a um equilíbrio delicado: tentar fornecer informações úteis para sites noticiosos sedentos enquanto se mantêm em bons termos com o governo federal, que também é um grande cliente”, escreve o repórter Max Tani. 

Mas o governo americano, claro, é muito mais que um grande cliente. Afinal, o mesmo governo segue pedindo a extradição para os EUA de Julian Assange, sob acusação, precisamente, de ter permitido que informações sensíveis chegassem a mãos “inimigas” ao serem publicadas no site do WikiLeaks dez anos atrás. Um dos fatos que fundamentam a acusação, aliás, relata que foi encontrado no bunker de Bin Laden uma carta pedindo informações sobre os documentos da Guerra do Afeganistão e sobre os documentos diplomáticos publicados pelo WikiLeaks e disponíveis a qualquer ser humano.  

Imagina se em algum computador do Hamas forem encontradas essas imagens de satélite? 

Está claro que a geopolítica da tecnologia é, cada vez mais, uma prioridade para o governo dos EUA, e essas empresas se alinharem a ele é apenas uma das expressões disso. 

Ainda na semana passada, o Departamento de Estado publicou uma nota bastante incomum, acusando, sem muitos detalhes, sites latino-americanos de participarem de uma operação de influência russa para mudar a opinião regional em relação à guerra na Ucrânia. 

Segundo o release, sites do Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Cuba, México, Venezuela, Equador, Panamá, Paraguai, Peru e Uruguai publicam informações fornecidas pela Agência de Design Social, uma agência russa para “a cooptação aberta e encoberta de meios de comunicação locais e de ‘influencers’”, nas palavras dos diplomatas estadunidenses.

Com a ação, o Departamento de Estado tentou fazer o papel de jornalistas investigativos, mas sem publicar os documentos que embasam a investigação. Soou estranho demais. 

Nessa intersecção entre geopolítica, tecnologia, desinformação e disputas de narrativas, estamos vendo diante de nossos olhos como serão travadas, no futuro, as guerras (frias e quentes) que determinarão quem são os vencedores e que mundo eles vão criar para todos nós.

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