Buscar
Nota

Escola sem partido 2.0? Cavalo de Tróia em projeto propõe filmar professores no DF

21 de outubro de 2025
15:29

A professora Patrícia Ramiro, com três décadas de experiência na rede pública do Distrito Federal, em Brasília, narrou à Agência Pública um episódio de espionagem. “Esse ano, um aluno de oito anos foi enviado pelo pai à escola com um gravador escondido no casaco.” O motivo era trivial: o menino havia mordido um colega e recebido uma repreensão pedagógica, uma medida comum no sistema de ensino. A professora que fez a repreensão agia dentro do esperado. O pai, no entanto, não via assim.

“Depois que o pai revelou o gravador, ele procurou a direção e ameaçou processar a professora, tentando transformar uma medida educativa adequada em abuso de autoridade”, relembra Patrícia Ramiro. A situação, que ela classifica como “absurda”, agora pode se institucionalizar e virar regra com o Projeto de Lei 944/2024, que tramita na Câmara Legislativa do Distrito Federal.

Se aprovado, a lei pretende instalar um “Sistema de Monitoramento e Registro de Atividades” (SIMRA) em todas as escolas públicas do DF. A proposta, do deputado Thiago Manzoni (PL), prevê câmeras com captação de áudio e vídeo em cada sala de aula. O argumento oficial é a segurança de alunos e professores. Para muitos educadores, porém, a medida é um “cavalo de troia legislativo”, uma reedição da agenda “Escola sem Partido” sob o disfarce da proteção.

“Enquanto se investe em câmeras, nossas escolas seguem sem ar-condicionado, sem internet funcionando direito e até sem água potável”, critica a professora Ramiro, contrapondo a prioridade da vigilância à precariedade da infraestrutura. A preocupação dela encontra eco no campo jurídico. O advogado criminalista Amaury Andrade vê uma afronta direta à Constituição. “O monitoramento contínuo dentro das salas de aula afronta o artigo 206 da Constituição e contraria decisões do Supremo Tribunal Federal”, afirma. Ele se refere ao princípio da liberdade de cátedra, a garantia de que professores podem ensinar e expressar ideias sem censura.

O deputado Fábio Félix (PSOL) é mais direto. “O que vemos aqui não é apenas uma preocupação com proteção, é uma tentativa de controlar e censurar professores”, disse ele à Pública. “É uma cortina de fumaça para restringir o trabalho docente e intimidar a categoria.” Para Félix, a segurança, embora essencial, não pode justificar a invasão do espaço pedagógico.

O debate não é novo. O STF já declarou inconstitucionais leis municipais e estaduais inspiradas no movimento “Escola sem Partido”. Em março deste ano, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) derrubou uma lei similar, de autoria da deputada Ana Carolina Campagnolo (PL), que proibia professores de tratarem de temas políticos em sala. O tribunal, alinhado ao Supremo, entendeu a norma como uma violação ao pluralismo de ideias e uma forma de perseguição política.

Andrade, o advogado, levanta outro alerta: a dos dados. “As imagens gravadas são dados pessoais, e, no caso de menores, a lei é ainda mais rigorosa.” A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) impõe regras estritas sobre a privacidade e o consentimento dos responsáveis, um emaranhado jurídico que o projeto de Manzoni parece ignorar.

A votação do PL 944/2024, que estava prevista para a última semana, foi adiada. A expectativa é que o texto, junto com um substitutivo do deputado Roosevelt (PL), entre na pauta da Câmara Legislativa nesta terça-feira, dia 21. Caso aprovado, o texto seguirá para sanção do governo distrital.  

Do lado de fora, sindicatos e entidades de direitos humanos prometem se mobilizar contra a proposta, que, para muitos, reabre o debate sobre o papel da escola pública e os limites entre segurança e vigilância, entre liberdade e controle. O gravador escondido no casaco do menino de oito anos pode ter sido apenas o começo.

Edição:
Duda Souza/Agência Pública

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Se você chegou até aqui é porque realmente valoriza nosso jornalismo. Conheça e apoie o Programa dos Aliados, onde se reúnem os leitores mais fiéis da Pública, fundamentais para a gente continuar existindo e fazendo o jornalismo valente que você conhece. Se preferir, envie um pix de qualquer valor para contato@apublica.org.

Vale a pena ouvir

EP 188 Criminalização da cultura periférica

Autor do Livro Vermelho do Hip-Hop analisa a histórica perseguição à cultura negra e periférica na história do Brasil

0:00

Notas mais recentes

Escola sem partido 2.0? Cavalo de Tróia em projeto propõe filmar professores no DF


Jorge Messias no STF acena para evangélicos, mas levanta dúvidas sobre direito ao aborto


Lula e Trump na Malásia, IR até R$ 5 mil em pauta no Senado e STF julga Núcleo 4 golpista


PL da devastação: governo ganha tempo para defender vetos, mas impasse segue, diz analista


Lei “Anti-Oruam” já foi aprovada em pelo menos três cidades paulistas, aponta relatório


Leia de graça, retribua com uma doação

Na Pública, somos livres para investigar e denunciar o que outros não ousam, porque não somos bancados por anunciantes ou acionistas ricos.

É por isso que seu apoio é essencial. Com ele, podemos continuar enfrentando poderosos e defendendo os direitos humanos. Escolha como contribuir e seja parte dessa mudança.

Junte-se agora a essa luta!

Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes