Em 24 de abril de 1964, atracou no porto de Santos (SP) o maior navio-prisão da ditadura, o Raul Soares, um antigo navio de transporte de imigrantes. Há registros de que pelo menos 263 pessoas estiveram presas na embarcação. Para manter o aparato de repressão do regime, o apoio da Companhia Docas de Santos, empresa da família Guinle, que tinha a concessão do Porto de Santos desde 1886, ainda no Império, era fundamental. E o apoio foi muito maior do que servir de atracadouro para um navio-prisão.
É o que aponta o relatório de pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) sobre a cumplicidade da companhia e de sua sucessora, a estatal Codesp, com a ditadura empresarial-militar que comandou o país entre 1964 e 1985. O documento serve de base ao Inquérito Civil do Ministério Público Federal (MPF) em Santos que apura como a Docas e a Codesp apoiaram a ditadura.
Nesta sexta-feira (16), vítimas da repressão e seus familiares, trabalhadores do porto, pesquisadores e representantes do MPF e do Ministério Público do Trabalho (MPT) se reunirão no Sindicato dos Petroleiros, em Santos, a convite do Comitê Popular de Santos por Memória, Verdade e Justiça, para debater como pode ser feita a reparação dos danos decorrentes da colaboração do Porto de Santos com a ditadura.
À época, com o golpe militar consolidado em abril de 1964, os militares voltaram seus arsenais contra os sindicalistas e os “melancias” (militares de esquerda e nacionalistas, “verdes por fora e vermelhos por dentro”). Antes disso, desde a década de 1930, a força do movimento operário, notadamente dos estivadores do porto de Santos, deu à cidade do litoral paulista o apelido de “Moscouzinha brasileira”, em especial pela forte presença do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).
Com recursos provenientes do acordo entre a montadora Volkswagen (outra empresa que apoiou a ditadura militar) e o MPF, assinado em 2020, a Unifesp coordenou um trabalho de pesquisa sobre outras 13 empresas brasileiras e sua relação com a ditadura. O trabalho sobre o apoio das Docas e da Codesp à ditadura foi coordenado pela doutora em história da PUC-SP Vera Lúcia Vieira.
A pesquisa aponta a prisão e demissão em massa de trabalhadores, a perseguição sistemática do sindicato, proibido até de fazer vaquinhas para ajudar as famílias dos trabalhadores presos ou demitidos. Torturas e cárcere privado eram realizados em pleno porto l, comandados pelo Departamento de Vigilância Interna, o DVI, órgão criado em janeiro de 1966 que trocava informações diretamente com o Dops, conforme já revelou a Agência Pública.
É a primeira vez desde o caso Volks que uma discussão sobre reparações a violações de direitos humanos perpetradas por uma empresa investigada pelo MPF será discutida em público. A presença do MPT, especializado para atuar na Justiça Trabalhista, é vista com bons olhos por representantes dos trabalhadores, segundo apurou a reportagem da Pública.
Em maio deste ano, o MPF deu os passos iniciais de negociação com a Autoridade Portuária de Santos (APS), empresa que administra o porto, para a compensação dos danos decorrentes da perseguição aos trabalhadores. O objetivo é a assinatura de um termo de ajustamento de conduta (TAC), o que evitaria uma ação que poderia se arrastar por anos na Justiça Federal.
Segundo o MPF, “a expectativa é que a empresa assuma compromissos para reparar os prejuízos causados tanto às vítimas quanto à sociedade”, alegou em nota divulgada na terça-feira (13). À Pública, a APS disse apenas que “já manteve diálogo com procuradores do MPF a respeito e se colocou à disposição para colaborar”.
Compensações em pauta
Segundo José Luiz Baeta, coordenador do Comitê Popular de Santos por Memória, Verdade e Justiça, há várias ideias de reparação em discussão, entre as quais as apresentadas pelo coletivo em projeto de lei protocolado na Câmara de Vereadores de Santos, que cria a legislação santista de locais de memória.
Uma das propostas prevê a preservação da área ao lado do antigo armazém 8 do Porto de Santos, onde atracam as barcas para Vicente de Carvalho, distrito de Guarujá. Era nesse local que os presos políticos e seus familiares embarcavam nas catraias que os levavam até o navio Raul Soares. “É preciso ter ali um local próprio, como uma praça, com um marco indicando o que ocorreu”, diz.
No relatório entregue ao MPF, os pesquisadores indicaram outras medidas que deveriam ser tomadas para preservar a memória das violações de direitos humanos dos trabalhadores do Porto de Santos, entre as quais o reconhecimento das violações pela APS e um pedido de desculpas, “a criação de sítios de memória, tais como placas indicativas sobre fatos, pessoas, coletivos, tanto sobre abusos de legalidade, quanto resistências dos trabalhadores” e que a gestão das medidas que venham a ser acordadas seja feita por um órgão autônomo.