Para julgar se os serviços de inteligência estão fora de controle no Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que tribunais de contas de estados e municípios informassem parte das compras recentes de programas espiões, em uso ou não, até o último dia 31 de maio. Passado mais de um mês do fim do prazo, ao menos oito tribunais ainda não responderam – quatro deles de estados com contratos de compra de programas espiões já publicados em Diário Oficial.
A Agência Pública analisou o material já recebido pelo Supremo e encontrou contradições e dados imprecisos nas respostas. Contratos firmados nos últimos anos por governos estaduais com ao menos uma empresa de inteligência, a israelense Cognyte, por exemplo, foram omitidos dos relatórios de no mínimo quatro estados ao STF. A companhia ficou famosa após o escândalo conhecido como caso First Mile, sobre o uso desse programa espião para vigilância ilegal pelo governo Bolsonaro.
O Tribunal de Contas do Estado de Goiás, por exemplo, relatou que “não participou” da compra de “sistemas de intrusão virtual remota e de ferramentas de monitoramento secreto e invasivo” e que “não guarda, utiliza ou gerencia” programas do tipo.
Mas a Pública revelou como o governo goiano, já sob a gestão do bolsonarista Ronaldo Caiado (União), comprou 10 mil acessos ao software espião First Mile entre 2021 e 2022 – o mesmo programa na mira da Polícia Federal por uso ilegal no governo Bolsonaro. À época, o governo Caiado escondeu gasto de R$ 7,6 milhões com a ferramenta do grupo israelense, descrita genericamente como “solução de interceptação telefônica e telemática” para a Polícia Civil do estado.
À Pública, o tribunal de contas goiano reafirmou sua manifestação ao STF, sem informar a compra do First Mile pelo governo Caiado, e até mesmo colocou em dúvida a aquisição do programa do grupo israelense. Segundo a corte de contas, “ainda que possa ter havido referida contratação”, a aquisição do programa First Mile “não foi objeto de análise no âmbito da atividade de controle do TCE-GO”.
4 estados omitiram compras; SC admitiu “equívoco”
O tribunal de Goiás não é o único com respostas questionáveis na ação em curso no STF. As cortes de contas de Amazonas, Espírito Santo e Santa Catarina se manifestaram sem relatar compras recentes de produtos da Cognyte.
Mas os três estados adquiriram produtos do grupo israelense desde 2017, ano da primeira compra de ferramentas da empresa pelo governo federal, via Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
O Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina, estado governado pelo bolsonarista Jorginho Mello (PL), informou ao STF a aquisição e uso de apenas dois programas espiões: o software brasileiro Guardião, usado para grampear telefones celulares e obter outros dados, e o israelense Cellebrite, usado para desbloquear celulares, acessar mensagens e dados apagados de dispositivos apreendidos.
A corte de contas catarinense, no entanto, não fez menção às compras recentes do governo local à Cognyte. Entre 2021 e 2022, na gestão do ex-governador Carlos Moisés (Republicanos), o estado investiu, sem licitação, pelo menos R$ 490 mil para “suporte e manutenção” da ferramenta espiã Webint do grupo israelense, segundo o Diário Oficial do estado.
Questionado pela reportagem, o tribunal admitiu o erro e alegou que “a ausência de menção ao referido contrato […] se deu em razão de um equívoco”. Somente após contato da Pública, o tribunal catarinense atualizou as informações prestadas ao STF, enviando cópia do contrato assinado com o grupo Cognyte – que, ao todo, custou R$ 3,3 milhões ao estado, considerando a aquisição de “licenças perpétuas” da ferramenta Webint, instalação, uso, suporte e manutenção deste programa.
Silêncio impera sobre contratos com a Cognyte
Ao todo, secretarias de Segurança de pelo menos nove estados compraram produtos da Cognyte desde a primeira aquisição do First Mile pela Abin, como revelado pela Pública em outubro de 2023. São eles: Amazonas, Alagoas, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Pará, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo.
Os governos de Alagoas, Mato Grosso, Pará e Rio Grande do Sul, quatro que ainda não se manifestaram, noticiaram em seus diários oficiais aquisições de programas do grupo israelense nos últimos anos. Além dos quatro, Amapá, Piauí, Sergipe e Tocantins também não responderam ao pedido do STF, enquanto Bahia e Acre enviaram seus relatórios apenas nesta última semana.
Sob a gestão do bolsonarista Mauro Mendes (União), Mato Grosso gastou R$ 4,6 milhões na compra de outro programa da Cognyte em 2022 – o GI2-S, que usa uma técnica patenteada pelo grupo israelense chamada IMSI Catcher, para invadir telefones celulares e rastrear quem utiliza os aparelhos. Essa técnica foi citada pelo ministro Cristiano Zanin no pedido de esclarecimentos do STF aos tribunais de contas em maio passado.
A compra do GI2-S pelo governo Mauro Mendes teve o aval da Procuradoria-Geral do Estado (PGE-MT). O Ministério Público estadual investigou a aquisição do programa, mas deixou pontas soltas na apuração – sem ter pedido, por exemplo, a íntegra do contrato assinado com a Secretaria de Segurança Pública ou especificações técnicas da ferramenta, como revelado pela Pública.
A reportagem procurou o Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso para saber quando relatará ao STF a compra do GI2-S, mas não recebeu resposta até o momento.
*Atualização às 14h27 de 08/07/2024: atualizamos a reportagem com os estados que ainda não responderam, até o momento, o pedido do STF.