EP 1 O homem, a lenda
Quem nasceu entre as décadas de 1980 e 1990 dificilmente nunca ouviu falar de Samuel Klein ou da Casas Bahia. Ele foi o fundador de uma das maiores redes de varejo do país, destacando como o mito do “self-made man”, termo usado no mundo corporativo para descrever alguém que alcança sucesso, riqueza e prestígio por mérito próprio.
O primeiro episódio de CASO K – A História Oculta do Fundador da Casas Bahia resgata o passado e a trajetória de Samuel Klein, um polonês de família judaica, que chegou ao Brasil na década de 1950, após as perseguições sofridas durante a Segunda Guerra Mundial e aqui viveu por mais de 60 anos. Ele começou sua carreira como comerciante vendendo produtos de porta em porta na cidade de São Caetano do Sul, no ABC Paulista e em pouco tempo adquiriu a loja que manteria sob o nome de Casas Bahia.
Como empresário, Klein desenvolveu o conceito de crediário, consolidando uma freguesia fiel entre as camadas C, D e E da população. Embora a empresa tenha mudado de proprietário e de nome ao longo dos anos, ela ainda existe atualmente como Grupo Casas Bahia, com lojas espalhadas por todo o Brasil. Essa é uma história que muitos já conhecem ou ouviram falar. Porém, parte de sua trajetória foi ocultada.
Nos anos 90, enquanto Samuel Klein construía seu império de lojas, um esquema de aliciamento e exploração sexual de crianças e adolescentes, crescia tanto quanto seus negócios. Ele usava sua história de vida e de superação das dificuldades de forma perversa. “Ele adorava exibir [documentários sobre sua vida] para diversas meninas e quando começava a mostrar ele, os judeus e os campos de concentração, ele se excitava. Ele usava aquilo para se excitar”, afirma uma das vítimas do empresário.
Neste primeiro episódio do podcast, você pode conferir esse e os demais relatos de vítimas e testemunhas que foram ouvidas no processo de investigação sobre a rede de abusos mantida por Samuel Klein, o homem, a lenda.
Confira abaixo o roteiro do episódio na íntegra:
[Thiago Domenici]
Você ouvinte deste podcast, talvez você ouvinte que nasceu entre os anos oitenta e noventa, já deve ter escutado por aí o nome de Samuel Klein. Samuel era um homem de estatura média, olhos castanhos, poucos cabelos, testa larga e uma barriga saliente.
[Arquivo voz Samuel Klein]
“Não adianta esconder casas Bahia. Todo mundo conhece e não adianta esconder meu rosto, o Samuel Klein, não adianta, já está registrado, já está mais que registrado.”
[Thiago Domenici]
Essa é a voz de Samuel Klein. No jeito de falar um marcante sotaque polonês. Se você nunca ouviu falar dele, muito provavelmente já escutou falar de sua maior criação, a Casas Bahia, a rede de lojas que se tornou ao longo das décadas um verdadeiro império do varejo no Brasil.
Agora, se você perguntar a pessoas próximas, um amigo, um familiar, vai descobrir que eles não só conhecem a empresa, como já compraram algum produto no seu famoso crediário.
Eu mesmo, na minha adolescência, fui um dos milhares de clientes da rede que inventou essa modalidade de crédito.
[Thiago Domenici]
Minha primeira experiência de parcelar um produto me causou o mesmo sentimento de felicidade eternizado na música do grupo Mamonas Assassinas, que fez sucesso nos anos noventa.
[Trecho de música do Mamonas Assassinas]
“Quanta gente, quanta alegria, a minha felicidade é o crediário da Casas Bahia.”
[Thiago Domenici]
Mas não foram só os Mamonas que eternizaram a rede de lojas de Samuel Klein.
[Arquivo música Chico César – Mama África]
“… e tem que fazer mamadeira, todo dia, além de trabalhar, como empacotadeira, nas Casas Bahia”.
[Thiago Domenici]
Esse é o cantor e compositor Chico César, que também cita a Casas Bahia na canção Mama África, de 1995. Essas referências musicais famosas e que são parte da cultura brasileira, são uma consequência da popularidade que a varejista alcançou no Brasil.
Por isso, eu vou seguir desafiando só mais pouco sua memória.
Você se lembra qual é o mascote da Casas Bahia?
[Thiago Domenici]
Se pensou na figura emblemática e simpática de um “baianinho”, você acertou. Criado em 1970, seu visual incluía chapéu de cangaceiro nordestino e bombachas gaúchas, uma tentativa de representar a integração do Brasil com a rede de lojas de Samuel Klein.
Mas na verdade, era mais uma grande jogada de publicidade para criar laços de afetividade com o público, o que ajudou a Casas Bahia a entrar de vez no imaginário do brasileiro com seus comerciais cheios de ofertas eloquentes.
[Arquivo comercial Casas Bahia]
“Quer comprar móveis e quer pagar quanto? Ah, preço não é problema? É prazo que você quer? Então tá. Quer pagar quanto?”
[Thiago Domenici]
Comerciais com ofertas tentadoras que até hoje tomam conta dos intervalos das novelas, telejornais e jogos de futebol na TV.
[Arquivo comercial Casas Bahia]
“Casas Bahia, onde você encontra sempre as melhores ofertas, com os melhores preços e as melhores condições de pagamento.”
[Thiago Domenici]
E foi justamente com essa versão, com essa imagem positiva sobre Casas Bahia, que seu criador, Samuel Klein, se tornou um homem bilionário. O “rei do varejo”.
[Thiago Domenici]
Sua história de vida ressoa o mito do self-made man, um perfil tão celebrado no mundo corporativo, quando a pessoa alcança sucesso, riqueza e prestígio meio que por conta própria.
E a vida de superação de Samuel, o homem que sobreviveu aos campos de concentração nazista na segunda guerra mundial, que se tornou mascate e virou empresário de sucesso será contada aqui. Mas você já deve imaginar que não é bem sobre isso que vamos falar.
[Mariama Correia]
Essa série aborda casos de abuso e exploração sexual de meninas e mulheres e pode gerar gatilhos pelo conteúdo descritivo de situações de violência. Tenha cuidado ao ouvir.
[Clarissa Levy]
Bem vinda, bem vindo. Este é Caso K – um podcast sobre a história oculta do fundador da Casas Bahia. Essa série é resultado de uma investigação que a gente tem feito, com pausas e retomadas, a gente tem feito aqui na Agência Pública ao longo dos últimos 4 anos.
[Vítima]
A minha terapeuta sempre me disse que eu deveria falar com alguém, que eu deveria contar .
[Vítima]
Mas essa história em Santos, se você conversar em Santos todo mundo sabe. todo mundo. dizem que há muito tempo atrás quando ele começou com isso ele fazia uma mesa de jantar nessa mesa de jantar as meninas iam jantar ainda levava tipo 50 reais.
[Mariama Correia]
Pra essa série, a gente ouviu mais de 60 pessoas. Entre mulheres, ex-funcionários da Casas Bahia,ex-seguranças da família Klein, jornalistas e advogados.
[Vítima]
O Samu, pai, ele gostava de menininha. Menininha que eu falo, assim, pra baixo de 15.
[Mariama Correia]
Além dos meses de entrevistas, também consultamos mais de 5 mil páginas de processos judiciais. Mergulhamos no universo do rei do varejo pelos olhos, ouvidos e memórias de pessoas que conviveram por anos com Samuel Klein.
[Vítima]
Muitas meninas, muitas meninas, muitas meninas e ele ali conversando, sentava ao lado de uma, passava a mão em uma, passava em outra.
[Thiago Domenici]
Aqui você vai ouvir relatos de pessoas que tentaram contar suas histórias no passado e não foram ouvidas. E de pessoas que, antes, nunca tinham nem se aberto a falar sobre o caso.
[Clarissa Levy]
Bem por isso, preciso explicar uma coisa: nessa série, nós precisamos alterar as vozes de denunciantes, para proteger as suas identidades. Ao longo da narrativa, foi necessário também alterar seus nomes. Então, os relatos que você vai ouvir são reais, genuínos, mas sofreram uma alteração sonora por questões de segurança.
[Vítima]
Enfim, foram 5 anos da minha vida. Entende.
[Mariama Correia]
Eu sou a Mariama Correia. Repórter e editora da Pública e trabalho com coberturas de gênero. Nessa investigação, trabalharam muitas pessoas. Participaram da apuração, além de mim, os jornalistas Ciro Barros, Rute Pina, Andrea Dip. Também Clarissa Levy e Thiago Domenici, que me acompanham aqui.
[Vítima]
E a primeira coisa que ele perguntou pra mim, se eu era virgem. Você é virgem? E eu já sabia o que era ser virgem, não, e eu falei pra ele, sou! Aí ele falava: Samuel adora menina virgem.
[Mariama Correia]
É. A história é longa e, acredite, precisa de respiros. Por isso, aqui vamos juntos em 3 vozes.
[Thiago Domenici]
Eu sou o Thiago Domenici, jornalista, diretor da Pública e chefe da sucursal de Brasília.
[Clarissa Levy]
E eu sou a Clarissa Levy, na Pública.
Apresentações feitas, Vamos então começar então.
Episódio 1 : O homem, A lenda.
[Clarissa Levy]
Só mais uma coisa: só foi possível fazermos essa série graças às pessoas que doaram em nossa campanha de financiamento e aos 1700 Aliados da Pública que apoiam o nosso jornalismo independente.
[Thiago Domenici]
Aliados que foram essenciais para que a nossa equipe tivesse tempo e liberdade necessária para apurar como as engrenagens de poder, silêncio e impunidade permitiram que um dos maiores escândalos empresariais do Brasil perdurasse durante tanto tempo. Esse podcast não deixa de ser também uma história sobre a imprensa e sobre o judiciário brasileiro.
[Clarissa Levy]
Era dezembro de 2020, quando fui contratada para trabalhar na Pública. A gente tava em meio a pandemia de Covid-19.
[Arquivo TV]
“A organização mundial da saúde declarou que a evolução do novo coronavírus chegou ao estado de pandemia.”
“O Brasil inteiro está mobilizado contra a doença que ganhou as manchetes de todo o planeta, a COVID 19.”
[Clarissa Levy]
Naquele momento de tensão mundial, não era só a Pública que estava trabalhando em esquema remoto para respeitar o isolamento necessário para diminuir o contágio pelo vírus.
A maioria dos veículos de jornalismo também estava em isolamento. Logo em dezembro de 2020, mais de cem mil brasileiros já haviam morrido, quando eu recebi um chamado do editor Thiago Domenici, dizendo que aquele isolamento teria necessidade de ser quebrado seguindo todos os protocolos de segurança. Tinha chegado uma pauta que só podia ser discutida presencialmente.
Eu lembro de descer de bicicleta a avenida Angélica vazia, tentando imaginar qual seria o assunto da reunião. Tava óbvio que era algo importante, delicado, mas a mensagem que Thiago tinha enviado não revelava nada.
Na redação da Pública em São Paulo, que fica no bairro da Barra Funda, a gente chegou máscara para esse encontro presencial.
[Clarissa Levy]
Éramos seis pessoas sentadas com distância umas das outras. Estava eu, Andrea Dip, Ciro Barros, Mariama Correia e Rute Pina. Lembro que Thiago tava meio tenso, em pé, segurando alguns envelopes pardos com nossos nomes escritos. Começou a reunião entregando um envelope pra cada um de nós.
Ele explicou em linhas gerais o motivo daquela reunião. Se formava ali um núcleo de investigação pra uma pauta específica e não poderíamos falar pra ninguém do que se tratava.
[Clarissa Levy]
Dentro do envelope, havia resumos de uma apuração já iniciada por ele com alguns processos judiciais recheados de depoimentos e fotos que indicavam que crimes sexuais poderiam ter sido cometidos por um grande empresário.
Thiago pediu que lêssemos com calma todo o material, denúncias implicavam principalmente dois homens, Saul Klein, empresário que é filho de Samuel, herdeiro da Casas Bahia. Mas o pior é que as denúncias implicavam principalmente seu pai, o fundador da rede, o icônico Samuel Klein.
Eram umas 50 páginas mais ou menos. Na primeira folha vinha escrito Caso K com algumas informações, e ao folhear o material fui me deparando com muitas fotos numeradas, imagens de adolescentes de biquíni em iates, algumas abraçadas a Samuel, um senhor, além de inúmeros trechos de processos judiciais, relatos chocantes.
[Clarissa Levy]
Eu lembro que ali no cabeçalho dos processos aparecia uma informação que me chamou a atenção: alguns dos processos não estavam em segredo de justiça. Ou seja, estavam disponíveis nos arquivos da justiça comum pra qualquer pessoa que procurasse por Samuel Klein e até por Casas Bahia como palavra chave. Os processos tinham fotos, descrições, eram de anos atrás mas mesmo com tudo aquilo ali, absolutamente nada sobre essas ações nunca havia sido publicado. Mas também é isso que contaremos ao longo desse podcast. Tô aqui só dando um spoiler.
[Clarissa Levy]
Porque até o jeito como a história chegou na Pública envolve uma espécie de crime de omissão. Naquela reunião a gente logo percebeu: a nossa investigação exigiria da gente uma cautela ainda maior: a gente não podia cometer erros.
Essa nossa reunião realizada na sede da Pública, é importante dizer aqui, aconteceu sete anos depois da morte de Samuel, que faleceu em novembro de 2014. Com ele morto, nossa apuração teria de ser ainda mais robusta, precisaríamos ouvir muita, muita gente. Ter registros, encontrar provas, documentos, quem sabe vídeos…
Samuel era uma figura conhecida, respeitada. Nas manchetes sobre sua morte os jornais deram um tom de lamento sentido pela morte, afinal, Klein era um grande empresário de sucesso que montou um império oferecendo crédito para as camadas mais pobres da população, permitindo que elas tivessem acesso facilitado a bens de consumo. Ele era famoso.
[Arquivo TV Brasil]
“Morreu nesta madrugada, aos 91 anos, o Fundador da rede de varejo Casas Bahia, Samuel Klein / começou a carreira, vendendo de porta em porta em São Caetano do Sul.”
[Arquivo TV]
Semana passada faleceu aos 91 anos, o empresário e fundador das Casas Bahia, Samuel Klein.
[Arquivo TV]
Mas ele deixou uma história muito bonita aí, uma grande lição para todos nós, porque o cara teve uma juventude muito sofrida. Passou por muita coisa ruim..”
[Arquivo TV]
Aprendi muito com ele, dentro dessa simplicidade, dessa inteligência intuitiva que ele tinha. Ele ensinou e deixou um legado de valores muito importantes pra todos nós. É uma perda muito grande, porém é a ordem natural da vida.
[Clarissa Levy]
Samuel morreu com uma reputação quase heróica e irretocável, mas acontece que sua história não se encerrou com a sua morte. Tanto é que saímos daquela primeira reunião com alguma noção do tamanho de Samuel, mas muito longe da real dimensão de sua história.
Até aquele envelope chegar pra gente, muita coisa tinha acontecido antes. Muita gente tinha passado pela vida de Samuel. E a gente precisava entender de fato quem tinha sido aquele homem, aquele empresário, e para isso fomos fazer o dever de casa, resgatar a trajetória que o transformou em mito aos olhos da mídia nacional.
[Mariama Correia]
Na época em que soube das denúncias contra Samuel, eu estava apenas na função de repórter e morando em São Paulo a pouco tempo. Eu não sabia que essa história seria uma das mais desafiadoras investigações de crimes sexuais da minha carreira até agora. A história que sempre foi contada sobre o empresário Samuel Klein tem tons de epopeia.
[Arquivo TV – voz Samuel Klein]
Um homem que veio de nada e montou um império para dar exemplo para o mundo (sic). A Casas Bahia foi pesquisada, que entregou pra ONU, que existe uma firma no Brasil que se chama Casa Bahia, que consegue vender para pobre e ficar rico.
[Mariama Correia]
Esse é o Samuel, em uma entrevista para a Rede Mulher, em 2004, aos 80 anos. Ele nasceu em 1923. Era de uma família judaica que morava numa cidadezinha na Polônia, com pouco mais de três mil habitantes.
A infância dele foi rodeada por um clima de insegurança. A família Klein era parte dos 30% de judeus que habitavam o povoado de maioria cristã católica. Dentro de casa, a comida era pouca. Leite com cevada, pão de alho ou cebola e às vezes um ovo mexido.
[Mariama Correia]
Na rua, os Klein precisavam lidar com a perseguição aos judeus, que crescia nos anos anteriores a II Guerra Mundial.
Na escola, Samuel não tinha nome. Era sempre chamado de “o judeu” ou “judeuzinho”.
E as agressões escalaram. Quando estava na quinta série, apanhou de um colega. Samuel não reagiu, mas nunca mais voltou pra escola.
[Arquivo documentário]
“Um velho provérbio chinês diz que o valor de um homem pode ser medido pelas batalhas que ele é capaz de sustentar. Nosso personagem jamais passou pela China, mas venceu os mais difíceis desafios impostos aos homens de sua origem e geração”.
[Mariama Correia]
Esse áudio é de uma reportagem de TV, que feita em um tom de documentário, foi exibida na Bandeirantes, em rede nacional aberta, no dia em que Samuel Klein completava 80 anos. Em pouco mais de uma hora, o programa Retrato Especial, com Roberto Cabrini, contava a vida de Samuel.
[Arquivo documentário]
“Uma vida de provações, desafios. Batalha contra o preconceito, contra discriminação.”
[Mariama Correia]
Essa narrativa de homenagem, resume bem a construção do mito Samuel Klein na mídia, durante os 60 anos em que o empresário viveu no Brasil.
[Mariama Correia]
A imagem dele sempre esteve associada a de sobrevivente de um genocídio. Tudo que é contado sobre a origem de Samuel Klein passa por esse passado sombrio..
[Arquivo documentário]
“Hitler queria acabar com a Polônia, como uma entidade política para todo o sempre. Isso significava eliminar qualquer um que pudesse ser um líder polonês.”
[Mariama Correia]
Quando a Polônia foi invadida por alemães na Segunda Guerra Mundial, em novembro de 1939, a família Klein foi separada.
Sua mãe e três irmãos morreram em campos de concentração, enquanto Samuel e o pai foram levados para outro campo de trabalho forçado, na Polônia.
Pai e filho permaneceram no campo de trabalho por dois anos até o enfraquecimento das tropas alemãs e a vitória dos soviéticos.
Com a derrota iminente, os soldados alemães precisavam escapar. Foi nesse momento que Samuel Klein conseguiu fugir sozinho. Seu pai ficou para trás.
[Arquivo documentário]
“Eu ouvia o cachorro latindo e ia ao encontro do cachorro porque onde tem cachorro tem gente e fiquei cinco dias no meio do mato até os russos entrarem”.
[Mariama Correia]
Este é outro trecho do documentário da Band, que acompanha uma sequência de imagens que mostram as tragédias da guerra. Assistindo a essas cenas, vemos Samuel Klein já idoso, numa sala escura, sentado em frente a um telão.
Ali vendo a versão audiovisual de sua vida, Samuel tem um semblante satisfeito, talvez um orgulho de ter conseguido passar pelo que passou.
[Vitima]
Ele adorava contar essa história. Como ele fugiu na trilha e tal. Quantos dias ele ficou na trilha. Mas daí, o que que tu comeu? Mas daí, tipo, eu tinha essas coisas. E ele gostava de contar isso. A maior parte das conversas era disso. Ou de negociar coisa de dinheiro”.
[Mariama Correia]
Essa é Stefany. Ela assistiu o mesmo documentário, numa sala com Samuel, várias vezes, mas em outro tipo de situação.
[Vítima]
Esse documentário. Quando começava a mostrar ele, os judeus, campo de concentração, ele se excitava. Ele usava aquilo para se excitar. Eu não sei se ele lembrava das origens ou o quê. E qualquer uma vai lembrar que ele se excitava. Porque a gente meio que se assustava. Porque, tipo, tu via…
[Vítima]
Tinha umas meninas que eram puras de coração. Tu olhava para uma ponta e tinha alguém chorando. E ele excitado. Entendeu? E tanto que… Quando ele se excitava, todo mundo se assustava. Porque as pessoas meio que se emocionavam. E ele estava excitado. E ninguém entendia. Thiago – Quer dizer, a cena totalmente trágica, triste. Você com vontade de chorar. De, sei lá, de coitadinho, de dar um colo para ele. E ele se excitava sexualmente, eu me lembro.
[Mariama Correia]
Muita coisa aconteceu na vida de Samuel Klein entre o momento em que ele fugiu dos soldados alemães e as tardes em que ele escolhia passar o documentário de sua própria vida em encontros privados, rodeado de meninas e de mulheres. Mas vamos seguir mais um pouco na história de sua vida.
[Arquivo documentário]
“A rádio de Hamburgo, depois de transmitir o crepúsculo dos deuses durante muitas horas, acaba de anunciar: o Hitler morreu. Terminou a guerra, terminou a guerra.”
[Clarissa Levy]
A guerra acabou, Samuel sobreviveu. Num cenário caótico de pós Guerra Mundial, ele começou a desenvolver sua habilidade comercial.
Faltava muita coisa nas prateleiras dos comércios e mercadinhos. Foi nesse vácuo que ele encontrou, no leva e traz de mercadorias, uma maneira de sobreviver.
Ele viajava entre os países europeus buscando produtos que faltava no outro, assim conseguia vender, a maioria das vezes pelo dobro do preço, itens como açúcar, vodka, farinha, salames e carnes.
O jovem polonês negociava com soldados alemães, soviéticos e norte-americanos. O importante era ganhar. No futuro, essa capacidade de negociar seria a semente da criação das Casas Bahia e da construção do seu império do varejo.
[Arquivo TV / voz Samuel Klein]
“Comigo é como comprar por 100 e vender por 200. Outra coisa eu não sei fazer.”
[Arquivo TV]
“Diariamente chega a São Paulo o denominado Trem do Norte. Ele traz algumas centenas de migrantes em busca de trabalho. De 1952 a 1962 migraram para São Paulo mais de um milhão de nordestinos…”
[Clarissa Levy]
Samuel Klein chega então ao Brasil, primeiro pelo Rio de Janeiro. Mas, logo é alertado por amigos para “não se empolgar com a beleza e qualidade de vida do Rio, que o dinheiro e a força econômica” estavam em São Paulo.
Mas antes de vir a São Paulo, ele tentou a sorte com a família na Bolívia, onde um grande amigo o aguardava para iniciarem um negócio juntos.
Mas a Bolívia vivia na instabilidade política e a adaptação familiar dos Klein não deu certo lá.
Em pouco tempo, Samuel resolveu voltar ao Brasil de vez. No bairro judeu do Bom Retiro, em São Paulo, Samuel encontrou um amigo antigo que era mascate.
[Clarissa Levy]
Esse amigo o convidou para acompanhá-lo em um dia de trabalho em São Caetano do Sul, que na época tinha cerca de 60 mil habitantes, grande parte de operários das indústrias da cidade, como a fábrica da General Motors. Vender produtos de porta em porta deu certo. Então, Samuel decidiu se estabelecer ali com a família.
[Clarissa Levy]
Nesse momento, a família Klein, era formada por Ana, alemã que Samuel conheceu em Munique e com quem havia se casado poucos anos antes, e o primeiro filho do casal, Michael.
Ali a gente tava nos anos cinquenta, o Brasil tinha Juscelino Kubitschek na presidência, acelerando a industrialização.
[Arquivo JK]
“É verdade, vou construir a nova capital e assim o Brasil caminhará 50 anos em 5 de governo. Esse passou a ser o slogan da minha campanha, que graças a Deus foi plenamente realizado, fazendo com que realmente o Brasil andasse em muitos setores, não apenas os 50 que eu anunciei, mas um ou dois séculos.”
[Clarissa Levy]
Entregando mercadoria de porta em porta, mesmo com um português limitado, as vendas de Samuel cresciam exponencialmente. Ele tinha talento pra vender.
Sua carteira de clientes, que era de 200 pessoas no início, passou para mais de cinco mil em cinco anos. Ali ele já havia identificado que a melhor forma de fazer venda era parcelando o valor a ser pago, pois quase ninguém conseguia pagar à vista.
Surgia a ideia do crediário: vende o produto oferecendo ao cliente possibilidade de pagar em pequenas parcelas. A cada nova visita para receber o pagamento parcelado, Samuel tinha a chance de oferecer novos produtos, e assim as pessoas permaneciam comprando.
Samuel foi criando uma freguesia fiel nas camadas C, D e E da população. Durante toda sua vida, ele sempre dizia que as “pessoas pobres são as mais honestas no momento de pagar”.
[Arquivo TV / voz Samuel Klein]
“O Brasil é muito bom, muito grande. Não tem um brasileiro que pode falar, eu já tenho tudo, não quero mais nada. Não existe no Brasil que pode falar que não quer mais nada… tem uma palavra minha que é bom (sic) gravar: pobre e mercadoria nunca vai faltar (sic).”
[Thiago Domenici]
Esse é o próprio Samuel falando, mais uma vez. A constatação pragmática demonstra como Klein via os negócios. A principal estratégia de crescimento da sua empresa foi basicamente focar nas classes mais pobres.
Enquanto os concorrentes não concediam créditos às pessoas que aparentemente não tinham condições de honrar o compromisso, Samuel adotou uma postura contrária. E isso foi uma grande sacada comercial.
[Vítima]
Eu fiz crediário, no Brasil não tinha isso…. Ele falava muito errado. Então eu tô tentando traduzir pra te falar.
[Thiago Domenici]
Com o sucesso nas vendas de porta em porta, o mascate Samuel queria aumentar seus negócios. Em novembro de 1957, comprou uma loja chamada “Casas Bahia”, localizada a uns quatrocentos metros da estação ferroviária de São Caetano, onde passava muita gente.
[Thiago Domenici]
Nessa época, a família já havia crescido e tinham agora quatro crianças: Michael, Saul, Eva e Oscar. O nome da nova loja, Casas Bahia, gerava uma identificação com seus principais clientes, aqueles migrantes nordestinos que viviam na região, chamados pejorativamente de “baianos” a despeito de virem de nove estados diferentes.
[Arquivo TV/ voz Samuel Klein]
“Eu queria manter esse nome, por quê?Porque naquele tempo, em 55, 56, 57, 52, a maioria dos nortistas vieram procurar trabalho no São Paulo, no Rio (sic). A maioria, quem construiu São Paulo, Rio, não foram os paulistas, foram os nortistas. E os primeiros fregueses que eu vendia para eles”.
[Thiago Domenici]
Para Samuel, era mais uma estratégia de ganhar confiança da sua clientela. A Casas Bahia reunia tudo isso: estava próxima dos clientes e ainda oferecia condições facilitadas para o pagamento. O negócio foi dando certo. Foi crescendo.
Em maio de 1970, Samuel mandou construir um prédio de seis andares na rua Francisco Matarazzo, número 100, que passou não só a ser a sede administrativa das Casas Bahia e também como a loja matriz até 2022.
[Thiago Domenici] O prédio de linhas contemporâneas que ocupava quase todo o quarteirão tinha uma fachada espelhada com detalhes metálicos e uma paleta de cores que reforçava a identidade corporativa da empresa, o azul, o vermelho e o amarelo.
Ali Samuel passaria algumas décadas trabalhando no quarto andar. E foi justamente nesse edifício do ABC paulista, nesse quarto andar, que grande parte da história investigada pela nossa equipe aconteceu.
[Carla Jimenez]
“E ele era o sinônimo do homem de negócios, né, assim como o Eike Batista, já foi um dia, né, então ele era o homem, muito embora com mais consistência, óbvio. Ele tinha sempre outra narrativa que a gente, jornalista de economia, gostava sobre a questão do crédito para o pobre, né, ou seja, tinha uma função social as Casas Bahia também nesse sentido de ser, de criar essa empatia com esse público. E essa história comove a qualquer veículo de jornal”.
[Mariama Correia]
Essa que você acabou de ouvir é a jornalista Carla Jimenez. Ela foi na sede das Casas Bahia em São Caetano do Sul para fazer uma matéria sobre o balanço anual da empresa em dezembro de 2001.
[Mariama Correia]
Era uma matéria de rotina, sem grandes complicações.
A gente conversou com Carla porque, entre outros motivos, ela foi no escritório de Klein na sede da empresa e viu alguns elementos importantes pra essa história que estamos contando aqui.
[Carla Jimenez]
Fui nesses almoços de final de ano, que era um balanço que todas as empresas fazem e ele tava lá, eu me lembro que assim acabou o almoço e ele teve essa iniciativa de levar, de me convidar eu tava junto com a minha colega, mas para conhecer o escritório dele a gente foi, lógico, né? Ah daí mostra, tinha uma réplica da carrocinha que ele tinha onde ele vendia e os produtos então nossa, que legal e tal e ele abriu uma sala, né? E se falou. Acho que ele falou, eu durmo aqui, né, mas me chamou atenção um anexo, eu falei nossa quando estica a jornada. Puxa vida e tal, não sei o quê, né? Assim foi uma coisa muito marcante porque enfim não é todo mundo que deu na cama no escritório.
[Mariama Correia]
Guarde essa informação. Porque esse detalhe da cama no escritório é importante e a gente vai voltar nesse assunto logo mais.
[Thiago Domenici]
Bom, lá no começo deste episódio, comentei com vocês que foi uma das apurações mais difíceis que já fizemos. Até o finalzinho de 2020, quando saímos daquela reunião, nada ligando os Klein a crimes sexuais havia sido publicado.
Naquela circunstância, nós combinamos com a equipe sigilo total sobre o tema. Não comentamos nem com o restante dos nossos colegas de redação, que só vieram a saber da nossa apuração pouco antes da reportagem ser publicada, ali em 15 de abril de 2021.
[Thiago Domenici]
A gente não sabia que tipo de pressão poderia vir de fora, se haveria algum risco, além disso, a gente queria ganhar tempo pra conseguir fontes que pudessem contar o que sabiam.
O problema é que muito antes, ainda em 22 de dezembro, na beirada do Natal de 2020, a coluna da Mônica Bergamo na Folha de S. Paulo publicou as primeiras denúncias contra um Klein, no Saul.
A manchete dizia assim, “Filho do Dono das Casas Bahia é acusado de estupro e aliciamento por 14 mulheres”.
Poucos dias depois, uma reportagem publicada no UOL pelo repórter Pedro Lopes com o título “O Harém do Príncipe”, trouxe ainda mais detalhes do funcionamento da suposta rede de aliciamento, prostituição e abusos de Saul Klein. O que se lia na reportagem era chocante.
[Arquivo TV]
“Festas animadas por grupos musicais, encenações de teatro, grupos musicais e com a presença de muitas mulheres. A grande maioria jovens, algumas menores de idade. Essas reuniões eram realizadas na casa e no sítio do empresário paulista Saul Klein. O que acontecia antes e durante as festas está sendo investigado pela polícia e pelo Ministério Público de São Paulo.”
[Thiago Domenici]
Foi só depois dessa investigação de Pedro Lopes no UOL que o caso apareceu em rede nacional de televisão. Foi uma matéria do Fantástico, da Rede Globo.
[Arquivo TV]
“Saul tem 66 anos e é filho de Samuel Klein, fundador das Casas Bahia, a Via Varejo, atual proprietária das Casas Bahia, informou que Saul nunca teve vínculo com a companhia.”
[Thiago Domenici]
As denúncias eram impressionantes. Mas havia um buraco nessa história, faltava algo, faltava Samuel Klein. Se existiam processos na justiça que acusavam pai e filho de crimes sexuais, porque só haviam relatado as denúncias contra o filho?
Eu já sabia de alguns bastidores sobre colegas jornalistas que estavam investigando a história de Saul ao mesmo tempo que a gente o investigava. Mas a gente suspeitava, o que se confirmou, que nenhum veículo da imprensa falaria com todas as letras sobre o patriarca da família, o fundador da rede.
[Thiago Domenici]
E aqui cabe mencionar que a Casas Bahia foi e ainda é uma das grandes anunciantes dos principais veículos de comunicação do país, mas isso é um papo que ainda vamos ter neste podcast.
Bom, a verdade é que as denúncias sobre o pai não eram algo tão escondido assim. Em uma postagem do facebook que comentava justamente uma reportagem sobre Saul, eu achei um comentário num perfil chamado “Larga de ser curioso”, ele já não existe mais. Era dia 28 de dezembro de 2020.
E o comentário dizia o seguinte:
[Mensagem de Facebook lida por IA]
“Fato, o pai já fazia isso. Tinha cafetinas particulares trabalhando só para eles que levavam menores, algumas virgens, preferência do pai dele. Ninguém me contou. Eu vi. Eu fui uma das meninas levadas pelo pai dele”.
[Thiago Domenici]
O perfil dizia mais…
[Mensagem de Facebook lida por IA]
“Eu tinha 17, fui chamada para “fazer presença” no aniversário do pai dele, eu era muito velha e ele não quis nada comigo. O pai dele era famoso em Santos por gostar de meninas com “15 pra menos”, de preferência virgens, quem é de Santos conhece essa história. E quem acha que eles pagavam muito, ele dava 500 reais. Se fosse virgem davam mil”.
[Thiago Domenici]
Lembro que li esses comentários e fiquei bastante incrédulo. Afinal, estava ali na minha frente um comentário aberto com informações explícitas sobre Samuel.
Eu imediatamente mandei uma mensagem no privado e me apresentei como jornalista. Pedi uma conversa.
[Thiago Domenici]
A dona do perfil, vamos chamá-la aqui de Valentina, me respondeu horas depois e disse que falaria comigo.
Eu fiquei confiante, porque nesse início de apuração, esse depoimento poderia ajudar muito no nosso trabalho.
Combinei então uma ligação com ela para o dia seguinte, 29 de dezembro de 2020.
[Vítima]
O povo acha que é muita coisa esse número que apareceu do filho dele. Gente, o velho Samu era no mínimo dez mulheres por dia.
[Thiago Domenici]
Com esse depoimento de Valentina, ela se tornou a nossa primeira fonte a falar abertamente sobre o caso.
[Vítima]
Quando eu fui a primeira vez, eu fui já num carro cheio de meninas. Quando eu cheguei tinha um carro cheio saindo… Aí a gente entrou, tinha uma mesa de café normal. A gente tomou um café, geleias e tal, na mesa grande. Enquanto a gente tomava café, ele ficava alisando uma das meninas. Quando subia com as meninas, ele já estava deitado. Ele gostava realmente de menininhas de 14, 13 anos. A gente tá falando de criança.
[Thiago Domenici]
Esse relato deu pra genteuma dimensão concreta das denúncias. Era como se, pela primeira vez, a gente ouvisse a voz de uma das sobreviventes do esquema, que até ali a gente só conhecia em relatos judiciais.
[Clarissa Levy]
Depois que o Thiago conseguiu conversar com ela, a gente ficou com a impressão de que não seria tão difícil encontrar pessoas que pudessem revelar as outras partes do esquema. O relato da Valentina confirmou que estávamos apurando a história certa. Mas isso também trazia muitas outras perguntas.
[Vítima]
Essa história é conhecida de todo mundo em Santos. Era um carro da Kátia de manhã, mais outro carro da outra mulher à tarde, mais um carro da Kátia à noite. Todo dia.
[Clarissa Levy ]
A cada informação da Valentina, novas perguntas – e fatos pra checar – apareciam pra gente.
Quem era essa Kátia, que segundo ela, levava as meninas? Quantas meninas iam? Onde estariam essas meninas agora?
Dava pra entender que muita gente tinha passado, de alguma forma, pelo esquema. Muita gente devia ter informações. E a gente se dividiu pra ir atrás de possíveis fontes.
Só que aí, o que a gente não sabia naquele momento, é que seria bem mais complicado. A Valentina tinha sido um ponto fora da curva. Ninguém mais queria falar. A gente passou semanas procurando mulheres que tinham aberto processos contra Samuel Klein. Processos em que as palavras “abuso”, “violência sexual” e “Casas Bahia”, se repetiam.
Quando a gente localizava o telefone dessas mulheres e a gente conseguia a sorte de alguma atender a ligação, a conversa não evoluía. Não queriam falar na história. Foram muitos nãos.
[Vítima]
Eu não sei, eu vou conversar com ela mais uma vez, vou falar pra ela, pra não expor nome, não expor cara, né, mas assim, tem coisas que a pessoa realmente não quer tocar no assunto. Entendeu? Outra pessoa também que eu falei, a pessoa falou, não, não vou falar nada, não quero saber desse assunto, pra mim tá morto, enterrado. Eu já conversei com umas quatro pessoas sobre isso e elas estão se negando a falar. Eu fui a única, entendeu, faladeira que acabei falando. Mesmo porque elas falaram, a gente não vai ganhar nada com isso, vai se expor na mídia, a gente não vai ganhar nada com isso, pra que tu tá se expondo, não sei o que.
[Clarissa Levy ]
Depois da virada de 2020 pra 2021,pós recesso de fim de ano, voltamos com tudo pra apuração da história. Como a gente tinha dividido os processos entre a equipe para acelerar a procura de novas informações, nossa rotina nos primeiros dias de janeiro era de tentativa e erro nessa busca por gente que tivesse testemunhado o esquema e topasse conversar.
[Clarissa Levy ]
E foi no meio a tantas tentativas frustradas que a sorte parecia que enfim virava a nosso favor. Uma das mulheres que localizamos num dos processos contra Samuel resolveu falar com o repórter Ciro Barros.
[Ciro Barros]
Eu tentei, por cerca de 2 meses mesmo, contatar mulheres. Eu lembro que o que a gente mais ouvia desta apuração foi não. No começo de 2021, eu consegui a primeira das mulheres que topou falar, que nos deu entrevista em off. E o relato dela era muito terrível e eu acho que é o primeiro relato concreto que confirma o padrão que a gente já via nos processos.
[Vítima]
A primeira vez, quando ele me conheceu ele gostou muito de mim e já me apalpou assim, tal apalpou meu corpo. Ele dava um selinho , dava um selinho e apalpou meu peito minha bunda, assim e depois, mandou eu ir embora, me deu um dinheiro, jogou um dinheirinho em cima da mesa, perguntou onde eu morava e tal jogou o dinheiro em cima da mesa fui marcou, volta aqui, volta na quarta-feira. Aí voltei na quarta-feira, aí foi onde aconteceu, né, fui pro quartinho com ele. E tudo. Aí aconteceu tudo aquilo.
[Clarissa Levy ]
Essa é Izadora. Ela tinha 12 anos quando foi levada para conhecer Samuel Klein. Como o Ciro falou, demorou muito tempo pra que ela topasse marcar essa entrevista com a gente. Até que deu certo. Eu lembro que quando a gente chegou, a gente teve uma surpresa. A Izadora estava com a irmã, Luíza. Que era outra sobrevivente.
[Clarissa Levy ]
Lembro muito da cena: as duas, mulheres adultas nesse começo de 2021, sentadas de frente pra uma mesa. Meio tímidas. Falando baixo, mas firmes, passaram horas descrevendo pra nós o que tinham vivido, há mais de 20 anos. Eles tinham fotos, anotações da época, tinham muito material.
[Clarissa Levy ]
Como é que foi, desde o começo, a primeira vez que você foi lá, com 9 anos?
[Vítima]
Eu não tinha um tênis para pôr, eu pedia para ela pegava meus pés todos tortos até porque o número dela é 33. Eu fui lá ganhar para pegar um tênis, meus dedos eram todos encolhidos. Queria um tênis, ele me deu um Bical, da marca Bical que tinha na loja, assim passei do mesmo jeito que elas. Só passou a mão é a mesma coisa? sim aí dava o dinheiro aí depois na outra vez ele levou para o quartinho, e assim sucessivamente a mesma coisa.
[Mariama Correia]
Esta é Luíza. Ela tinha 9 anos. Na entrevista ela e a irmã revelaram uma peça fundamental desse quebra cabeças.
Esse quartinho, que Izadora e Luíza falam, ficava no último andar da sede das Casas Bahia, em São Caetano do Sul. O coração da empresa. O quartinho era um anexo da sala da presidência.
E você lembra da jornalista Carla Jimenez, que apareceu antes nesse episódio? Então, quando ela visitou o escritório de Samuel, ele fez questão de mostrar para ela esse quartinho.
[Mariama Correia]
O mesmo quartinho onde Izadora e Luiza, com 12 e 9 anos, na época, sofreram o que seria o primeiro de uma série de abusos sexuais.
Um quartinho, dentro da sala da presidência de uma das maiores empresas de varejo do país.
Mas a gente descobriria que esse lugar era só o ponto de partida.
A peça inicial de uma engrenagem muito maior.
Disclaimer: O outro lado
[Thiago Domenici]
Quando a gente publicou as primeiras reportagens em abril de 2021, nós fomos buscar a versão dos representantes da família Klein e da holding da Casas Bahia, que naquele momento se chamava Via Varejo. Todas as respostas foram publicadas na íntegra em apublica.org.
E agora, em 2024, nós tentamos falar com eles novamente// para este podcast. Da família Klein, a manifestação veio do filho mais velho de Samuel, o empresário Michael Klein. Ele disse o seguinte, abre aspas. “Infelizmente, meu pai não está aqui para se defender”, fecha aspas.
Do grupo Casas Bahia, antiga Via Varejo, a resposta foi, abre aspas, “O Grupo Casas Bahia, como constituído hoje, esclarece que não possui qualquer relação com os fatos mencionados na reportagem. As informações da publicação referem-se ao período anterior a 2010, quando a empresa ainda era controlada pela família Klein. Em 2011, com a formação da Via (anteriormente conhecida como Via Varejo), foi constituída uma nova sociedade, responsável exclusivamente pela operação de varejo, incluindo a marca Casas Bahia. Já em 2019, o Grupo Casas Bahia tornou-se uma empresa de capital aberto, sem acionista controlador e é regida pelos mais altos padrões de governança corporativa”, fecha aspas.
E a gente também procurou o outro filho, Saul Klein, que é citado no podcast e na investigação, mas sua defesa não foi localizada. Nossa equipe enviou e-mails, tentou contato telefônico, mas ninguém retornou.
É isso, semana que vem, estamos de volta.
[Mariama Correia]
Qualquer relação sexual com menores de 14 anos é estupro de vulnerável pela lei brasileira. Exploração sexual de crianças e adolescentes é crime. Para denunciar casos de abuso, violência ou exploração sexual procure qualquer delegacia, o Conselho Tutelar ou o Centro de Referência Especializado de Assistência Social da sua cidade. Vítimas ou testemunhas também podem fazer uma denúncia anônima pelo Disque 100.
Créditos do Podcast:
[Mariama Correia]
Caso K – A história oculta do fundador das Casas Bahia é uma produção original da Agência Pública de Jornalismo Investigativo.
Se estiver nos ouvindo no Spotify ou na Apple, aperte seguir, para ser avisado quando sair o novo episódio. E se estiver no Spotify, você pode deixar seu comentário. Vamos gostar de ler vocês por aqui.
E se você não conhecia esta história e acha que mais gente precisa saber disso : nos ajude. Mande este episódio pra uma amiga, um amigo.
Na investigação dessa história trabalharam: eu, Mariama Correia, Andrea Dip, Ciro Barros, Clarissa Levy, Rute Pina e Thiago Domenici.
O desenvolvimento foi feito por Luana Rocha. Roteiros por Clarissa Levy, Luana Rocha, Mariama Correia, Stela Diogo e Thiago Domenici.
Na produção, Stela Diogo. Pesquisa de arquivo por Thiago Domenici. Na revisão do roteiro e coordenação de podcasts da Agência Pública, Claudia Jardim.
O tratamento de sonoras das entrevistadas foi feito por Ricardo Terto. No design de som, edição e finalização, Pedro Pastoriz. As artes foram feitas por João Ito.
[Mariama Correia]
Na estratégia de divulgação: Marina Dias, Letícia Gouveia e Renata Cons. Nas Redes sociais, Karina Tarasiuk, Lorena Morgana, Ethieny Karen, Raquel Okamura, Fernanda Diniz.
A direção geral de Caso K é de Thiago Domenici.
Toda essa série só existe graças a contribuição das aliadas e aliados da Pública, pessoas que apoiam financeiramente o nosso trabalho. Se você também quiser e puder fazer parte da nossa base aliada é simples: é só acessar apoie.apublica.org e escolher como contribuir.
Neste episódio, usamos áudios da música Chopis Centis, do Mamonas Assassinas, disponível em seu canal oficial no Youtube. Mama África, de Chico César, disponível no canal Musicalidade.
Áudios do comercial das casas Bahia, disponível no canal Mvintage Cultura. Áudios do jornal O Globo e BBC News sobre o coronavírus. Áudio do Canal History Brasil sobre a invasão da Polônia, do Repórter Esso, disponível no canal ralefar, e áudio de Juscelino Kubitschek, disponível no canal HSS TV.
Muito obrigada por acompanhar a gente até aqui. Até o próximo episódio.
Equipe
Investigação: Andrea Dip, Ciro Barros, Clarissa Levy, Mariama Correia, Rute Pina e Thiago Domenici.
Desenvolvimento: Luana Rocha.
Roteiro: Clarissa Levy, Luana Rocha, Mariama Correia, Stela Diogo e Thiago Domenici.
Produção: Stela Diogo.
Pesquisa de arquivo: Thiago Domenici.
Revisão de roteiros: Claudia Jardim.
Tratamento de sonoras das entrevistadas: Ricardo Terto.
Design de som, edição e finalização: Pedro Pastoriz.
Artes: João Ito.
Estratégia de divulgação e programa de Aliados da Agência Pública: Marina Dias, Letícia Gouveia, Renata Cons e Bruno Penteado.
Redes sociais: Lorena Morgana, Ethieny Karen, Raquel Okamura, Fernanda Diniz.
Coordenação de podcasts da Agência Pública: Claudia Jardim.
Direção geral de Caso K: Thiago Domenici.