Buscar
Podcast

O crediário da exploração

Segundo episódio de CASO K revela como funcionava o esquema de exploração sexual que ocorria dentro da Casas Bahia

Ouça agora:

Podcast

EP 2 O crediário da exploração

12 de novembro de 2024 · Segundo episódio de CASO K revela como funcionava o esquema de exploração sexual que ocorria dentro da Casas Bahia

0:00

A Casas Bahia, adquirida por Samuel Klein em 1957, teve sua primeira loja na cidade de São Caetano do Sul, no ABC Paulista, e no início da década de 1990 já havia se transformado em uma rede com mais de cem lojas. Mesmo em momentos de instabilidade econômica e os altos índices de pobreza no Brasil, o empresário conseguiu manter sua principal estratégia comercial, o sistema de crediário, que possibilitou a expansão de seus negócios.

Por outro lado, era também dentro da própria Casas Bahia que funcionava o esquema de exploração sexual de crianças e adolescentes. Um esquema revelado pela investigação exclusiva da Agência Pública, que é apresentado no segundo episódio do podcast Caso K – A História Oculta do Fundador da Casas Bahia. A investigação constatou também que as primeiras vítimas de Samuel Klein eram quase todas de origem pobre, em busca do homem que dava presentes. Uma estratégia do empresário para atrair meninas jovens, que uma das vítimas nomeou, anos depois, como o “crediário da exploração sexual”.

O segundo episódio desta primeira temporada traz relatos de mulheres que resolveram quebrar o silêncio e expor como sobreviveram a uma série de abusos ocorridos ainda na infância e adolescência. Elas foram vítimas de um esquema que durou ao menos 30 anos e contava com a colaboração de alguns de seus funcionários.

Confira abaixo o roteiro do episódio na íntegra:

[Clarissa Levy]
Oi. Eu queria começar aqui esse episódio com uma aposta. Eu aposto que, em algum momento, você já entrou em alguma loja da Casas Bahia. Não sei se foi recente, ou se foi há muito tempo atrás. Mas já deve ter visto ali os fogões enfileirados, perto das geladeiras, um pouco mais atrás da vitrine dos celulares. 

Então. Ao longo dos anos, o design das lojas foi mudando, o logotipo se atualizou, o azul royal ficou mais presente, a estética das letras que anunciam o saldão também mudou. Mas eu aposto que deve ser minimamente familiar pra você algum cartaz gritando: em até 10 vezes sem juros. 

Uma coisa interessante sobre a Casas Bahia é que é uma empresa, que teve, ao longo dos anos, todas as suas lojas administradas por uma mesma Central. Digo, a sede de São Caetano e a loja X da minha cidade, no interior, tem a mesma cara, as mesmas opções de crediário, o gerente usando o mesmo tipo de uniforme. Porque não são franquias, são lojas filiais de uma matriz. 

Essa uniformidade nas lojas tem a ver com a história que quero contar aqui. Todas as lojas tem um mostruário, tem uma gerência e tem também um caixa. E é nos caixas das lojas das Casas Bahia que começa esse episódio 2. 

[Ex-funcionária]
E de manhã, tocava o telefone e falava: e falava, aqui é o secretário do Dr. Samuel, do Saul e precisa separar tanto para o final do dia. Aí a gente ia no caixa, conversava com as meninas do caixa e elas iam tirando em dinheiro mesmo. O que entrava em dinheiro no caixa, ia separando. E aí, no final do dia, as meninas passavam e retiravam. Tiravam mercadoria no nome dele também. E era autorizado direto pela Central.

[Clarissa Levy]
Essa é Marilena. Uma ex-funcionária das Casas Bahia, que trabalhou em uma loja na Zona Leste de São Paulo, em 2008. O Thiago Domenici, meu colega aqui nessa investigação, encontrou um comentário dela no Facebook, dizendo que os funcionários eram obrigados a separar dinheiro do caixa para meninas, que apareciam autorizadas por Samuel. 

[Ex-funcionária]
Era toda semana, toda semana isso acontecia. Toda semana. Então, era uma vez por semana. Ou era na quarta, ou era na quinta. O dia exato eu não sei te falar. Mas era toda semana que elas iam buscar.Eu acredito que isso deveria acontecer em muitas lojas.

[Clarissa Levy]
O que a Marilena contou pro Thiago, depois foi confirmado por diversas outras fontes e aparece também em processos na Justiça: meninas adolescentes e mulheres adultas chegavam às lojas com bilhetes, escritos supostamente por Samuel Klein, em que ele dava autorização para a retirada de produtos e de dinheiro em espécie. E isso ganhou até nome. Alguns funcionários chamavam isso de: o valinho o Samuel. 

[Vítima]
Elas tinham o direito de escolher o que queriam na loja. Na época a meninada pegava muito celular, né? Porque eram meninas novas, elas pegavam celular, pegavam som, televisão, o que elas quisessem escolher. Às vezes a mãe ia junto para escolher.

[Clarissa Levy]
Isso em muitas lojas, incluindo a matriz em São Caetano. Meninas chegando pra tirar produtos. Várias, adolescentes ainda. 

[Thiago Domenici]
E vocês ali, funcionários na época, vocês sabiam aquela origem daquela retirada de produtos, o que motivou a retirada?

[Vítima]
Sim, porque elas falavam. Elas falavam: ‘Ah, o dono da Casas Bahia que tá mandando a gente tirar, eu tava com o dono da Casas Bahia. Elas falavam. Todo mundo sabia. 

[Thiago Domenici]
Essa série aborda casos de abuso e exploração sexual de meninas e mulheres e pode gerar gatilhos pelo conteúdo descritivo de situações de violência. Tenha cuidado ao ouvir.  

[Clarissa Levy]
Eu sou a Clarissa Levy e se você chegou aqui por agora, eu recomendo voltar no episódio 1, pra não perder o fio.

[Clarissa Levy]
A Primeira vez que você foi você queria ganhar um tênis?

[Vítima]
Eu queria um tênis. Aí ele me deu um bical, um tênis da marca bical que tinha na loja.

[Clarissa Levy]
E já te apalpou?

[Vítima]
Ele só passou a mão. ‘A bonita, muito linda’ e não sei o quê e passava a mão. Aí ele dava dinheiro. Depois, na ou na outra vez ele levou para o quartinho. E assim sucessivamente a mesma coisa

[Clarissa Levy]
A Luíza nessa primeira vez tinha 9 anos.

No primeiro episódio a gente começou a conhecer com profundidade o Samuel Klein e seus negócios. No episódio de hoje, a gente segue nessa missão, mas agora por um outro caminho. A gente vai se aprofundar nas memórias e relatos de mulheres, que, por razões que vamos entendendo aos poucos, passaram muito tempo convivendo com este homem. 

[Vítima]
Um certo dia, elas falaram pra mim, olha, tem um lugar, né, que levaram a gente, que a pessoa… dá umas coisas pra gente. Aí eu falei, mas dá o quê? Ah, você vai ganhar walkman. E eu fui conhecer.

[Mariama Correia]
Essa série é baseada numa investigação feita por uma equipe de repórteres da Agência Pública ao longo dos últimos 4 anos. Para produzir este material, entrevistamos mais de 60 pessoas e consultamos mais de 5000 páginas de processos judiciais. Eu sou a jornalista Mariama Correia e faço parte desta investigação desde o início. 

[Thiago Domenici]
E Eu sou o Thiago Domenici, jornalista também aqui da agência pública.  Episódio dois: O crediário da exploração.

Ao longo de sua vida, Samuel Klein foi um homem de muitas frases de efeito, de mensagens de superação e recados de perseverança.  Ficou conhecido por jogadas comerciais consideradas geniais por seus concorrentes e admiradores. 

[Arquivo voz Samuel Klein]
“Nós, no Brasil, passamos por diversas fases de governo e de economia. Com esses planos, o pobre ficou menos pobre. E por que pobre ficou menos pobre? Porque a inflação não comeu um pedaço do salário dele. Porque inflação não comendo um pedaço do salário que o pobre ganhava, sobrava para comprar uma cama, um colchão, um fogão, uma geladeira e uma televisão. Como eu tinha mercadoria, eu sempre confiava no estoque, na minha mercadoria, porque eu sempre tinha, dentro da minha mercadoria, uma inflação embutida. Eu peguei e falei: três pagamentos sem juros. Aí o povo: ‘sem juros? sem inflação? Vamos comprar.’”

[Thiago Domenici]
Entre os ensinamentos, muitas vezes associados ao mundo das vendas no varejo, aparecem também reflexões sobre a vida, o amor, a família e as relações que Samuel construiu. Ele diz, por exemplo, que “Nada na vida acontece por acaso”. Você ouvinte pode concordar ou não, vai depender de sua crença. Mas o curioso aqui é que essa frase está registrada junto de tantas outras reflexões em sua biografia oficial, que foi lançada quando ele fez oitenta anos, em 2003.

Neste livro escrito pelo jornalista Elias Awad, o biógrafo traça ao longo de 230 páginas um perfil do rei do varejo. Ali pelo final do livro, nas últimas páginas mesmo, Samuel escreveu um texto, onde deixa uma mensagem pro leitor.  O tom é meio de generosidade, meio de esperança, meio de satisfação. “Viver e deixar viver”, ele finaliza a mensagem. 

É como se sua vida fosse um exemplo a ser seguido apesar de todas as dificuldades pelas quais passou. “Podem ter certeza de que cada passagem, cada situação apresentada no livro, representa a realidade da minha vida. Não existem exageros no que foi passado”. Samuel diz algo similar numa entrevista de 2004 para a Rede Mulher.

[Arquivo voz Samuel Klein] 
“Primeira coisa, tudo que eu falo é verdade, minha vida é uma livro aberto. Eu não tenho receio de falar, porque tudo que eu falo é o que eu faço.”

[Trilha]

[Thiago Domenici]
Bom, acho que nem preciso dizer o óbvio, de que não foi bem assim. Mas esses trechos chamam atenção pela despreocupação com as consequências do “não dito” sobre ele. Talvez ele tivesse alguma segurança de que nada sobre seu passado seria revelado, uma garantia de impunidade.

Como dever de ofício, eu fui tentar falar com o biógrafo de Samuel, que registrou em livro essas falas dele. Pedi pro Elias Awad por e-mail que nos desse um depoimento sobre esse trabalho. Também por email ele respondeu que não daria, e justificou.  Vou ler aqui o que ele escreveu. “Comunico a você que o livro foi lançado em 2003, portanto há mais de 20 anos, e que tudo que havia para ser apresentado e relatado sobre o que foi captado está no livro, sem nada mais ter a acrescentar. Esta é a posição definitiva. Peço que a respeite!”. 

Eu agradeci o retorno, mas insisti mais um pouco com Elias. Perguntei se durante a produção da biografia, nada relacionado a engrenagem de exploração sexual de Samuel e Casas Bahia tinha aparecido na pesquisa. “Ele nunca comentou nada com você? Nada sobre o tema chegou até você por terceiros?” – eu perguntei. A resposta de Elias foi a mesma, de que o livro foi lançado em 2003, há mais de 20 anos, e tudo que havia para ser apresentado e relatado está no livro, sem nada a acrescentar.

Esse contexto é bastante importante para o que vem a seguir. Porque olhando no retrovisor da história, a frase de Samuel, de que nada é por acaso, passa a fazer mesmo algum sentido. Desde os primeiros dias de incerteza da nossa apuração ali em 2020, quando a gente sabia ainda muito pouco e quase ninguém queria falar com a gente, pairava na nossa equipe uma certa esperança de que esse Samuel sem filtros uma hora ia vir à tona. E veio.

[Arquivo voz Samuel Klein]
Esperamos continuar servindo vocês e curtir bastante junto com vocês. A festa ainda não terminou.. A festa ainda não terminou. Estamos aqui prontos para continuar trazendo alegria hoje é vida. Viva a vida. Viva a vida. Viver e deixar os outros viver!

[Mariama Correia]
Durante a apuração, a gente foi entendendo que algumas vítimas, crianças e adolescentes, só conseguiram compreender a dimensão do que viveram já adultas. Isso é comum nesses casos. Algumas chegaram a entrar na justiça contra Samuel, pedindo indenização, mas nenhuma delas teve êxito.

Nas nossas contas, procuramos ao menos trinta mulheres para as reportagens e para este podcast. Muitas fontes apontaram razões distintas para não querer tocar no assunto.  Algumas tinham medo e diziam querer esquecer o passado. Mas outras toparam quebrar o silêncio.  Era o que a gente precisava.  

Por tudo isso a gente vai apresentar novas camadas dessa história, como a experiência de cinco mulheres sobreviventes do esquema. São relatos difíceis. Como estamos fazendo em toda a série, elas terão os nomes trocados e  vozes modificadas por motivos de segurança. 

É importante dizer que elas representam períodos distintos do funcionamento da engrenagem de exploração sexual. Nós descobrimos que esse esquema durou ao menos trinta anos.  

[Thiago Domenici]
E não é por acaso que todas apontam o mesmo lugar onde tudo começa. A primeira vez de cada uma. A cidade de São Caetano do Sul, na sede da empresa. 

[Vítima]
Era lá onde tudo começava. Todas elas começaram dali, direto na Casas Bahia, ali no centro de São Caetano. Então eu fui, né, a primeira vez, eu me recordo perfeitamente que quando eu cheguei lá, eu vi ele, eu me assustei, assim, porque eu não imaginava a idade da pessoa. 

[Mariama Correia]
Samuel tinha aproximadamente 70 anos. 

[Vítima]
E nem sabia exatamente. Só sabia que eu ia lá, ele ia me conhecer, ia me dar um Walkman. Chegando lá, eu me recordo muito bem que eu vi ele atrás da mesa, e quando ele me viu, ele falou ‘nossa, que menina linda! Olha os olhos dela, vem aqui, menina! Vem aqui!’ Eu me recordo, eu escuto perfeitamente a voz dele, ‘vem aqui, menina!’ Aí eu encostei assim, perto da mesa, ele falou ‘vem mais perto.’

Aí eu olhei pras meninas, e elas ‘vai lá, ele é bonzinho’, sabe esse tipo de coisa? E eu me aproximei, no que eu me aproximei dele, ele falou, senta aqui, no colinho de Samuel, senta! E eu sentei. E ali ele começou a acariciar o meu rosto, o meu cabelo, dizendo que eu era uma menina, uma menina muito bonita, e a primeira coisa que ele perguntou pra mim, se eu era virgem. ‘Você é virgem?’ E eu já sabia o que era ser virgem, e eu falei pra ele, sou! Aí ele falava, ‘Samuel, adora menina virgem’. E foi ali que tudo começou.

[Ciro Barros]
Você tinha quantos anos? 

[Vítima]
Acredito que 12, 11 pra 12. Era muito novinha. 

[Mariama Correia]  
Isso foi entre 1991 e 1992.  

[Vítima]
Aí eu saí de lá, com dinheiro, como eu te falei, passei na perfumaria, comprei meu primeiro desodorante Rolon.

[Ciro Barros]
Isso logo na sua primeira visita, já.

[Vítima]
Isso, eu já saí com dinheiro.

[Ciro Barros]
Tá, e ele falou essa coisa de você sentar no colo dele e tal, mas houve já alguma…

[Vítima]
Então, ele acariciou meu rosto, meu cabelo, aí falou, ‘já tem peitinho, já tem peitinho.’

[Ciro Barros]
Lá dentro da sede da Casa Bahia?

[Vítima]
Isso, lá dentro mesmo, na sala dele, no quarto andar, tinha a sala dele, e ao lado tinha uma porta, que era tipo drywall hoje, que todo mundo pensava que era uma parede, e abria aquela porta tinha um quarto, uma cama. E era isso que acontecia lá.

[Thiago Domenici]
Na época dos fatos narrados por Fabrícia, no começo da década de noventa, o país havia colocado no poder seu primeiro presidente pós-ditadura Militar, Fernando Collor de Melo. Entre medidas econômicas desastrosas, o Brasil vivia momentos de turbulência com o chamado Plano Collor, com confisco monetário, congelamento de preços e salários. A moeda da época, o cruzado novo, ganhava novo nome, cruzeiro. 

[Arquivo TV]
“Com o plano cruzado, a inflação foi controlada, o crescimento voltou. A população consumiu euforicamente, mas logo veio a frustração. Com o fracasso, o Brasil caia numa nova crise.”

[Thiago Domenici]
Apesar do momento de instabilidade, Casas Bahia e Samuel Klein conseguiram achar uma saída comercial, que foi narrada em detalhes no livro de Elias Awad.  Naquele início de noventa, o grupo faturou mais de 800 milhões de dólares em vendas brutas com as cem lojas que já existiam até ali. Naquele período Samuel disse que seguiu o que sua cabeça mandou.  “Por isso cheguei até aqui. Hoje em dia, isso fica mais fácil. Tenho poder de compra e poder de venda. E mais: quer saber como fiquei rico? Com o dinheiro dos outros.”

[Clarissa Levy]
A gente segue ali no começo dos anos 90. Duas irmãs que moravam no bairro de Santa Paula, em São Caetano do Sul, ficaram sabendo, por uma parente, que no centro da cidade, o dono das CB distribuía dinheiro para crianças no escritório da sua empresa. A irmã mais velha, Izadora, resolveu ir até as Casas Bahia, acompanhada de uma amiga. Ela conta que passou pela loja, foi até os elevadores, subiu até o andar da presidência e ficou sentada esperando uma secretária levá-la para falar com o empresário. Ela tinha 12 anos. 

[Vítima]
Quando ele me conheceu, ele gostou muito de mim e já me apalpou assim,  apalpou meu corpo…Dava um selinho e apalpou meu peito, minha bunda e depois mandou eu ir embora. Ele me deu um dinheiro, jogou um dinheirinho em cima da mesa, perguntou onde eu morava e tal, jogou o dinheiro em cima da mesa e eu fui.

[Clarissa Levy]  
Seguindo o que o empresário falou, na semana seguinte, Izadora voltou ao escritório.

[Vítima]
Até hoje eu não entendo como aconteceu. Foi tudo rápido né? Parecia um robô.. eu entrei assim e ele falou, ‘ah tira a calcinha’, colocou o dedo em mim aquilo machucou no dia, mas aí a gente não podia parar porque parecia que tinha essa obrigação por ele ter dado o dinheiro no dia anterior então… aí aconteceu.

[Clarissa Levy] 
Esse era o começo de uma série de abusos que tomaria conta de quase toda adolescência de Izadora. Sem entender muito bem como, ela diz que se viu totalmente imersa em um ciclo de repetições que incluía ir à sede da empresa em São Caetano a cada semana, pegar uma cesta básica e sair de lá com um dinheiro para comprar um lanche no Mc Donalds.

Nesse fluxo, meses depois de começar a frequentar o escritório das Casas Bahia, a Izadora convidou uma prima para ir com ela. Essa prima também caiu no esquema. Uns poucos meses depois, a prima levou a irmã caçula, a Luíza. Luíza conta que conheceu a violência sexual aos 9 anos de idade. Assim como a irmã, ela fala que sofreu seu primeiro abuso na sede da empresa. E da mesma maneira, ela se viu emaranhada na rotina de ir até o escritório da Casas Bahia, sair de lá com algum dinheirinho, pra algum lazer, algum desejo de criança a cada semana… A gente entrevistou Izadora e Luiza juntas, numa mesma tarde. Então, essas vozes se somam aqui nos relatos

[Vítima]
Nossa, depois que aconteceu o fato, eu comecei toda semana. Quase todos os dias pra pegar dinheiro. Tinha vezes que ele só dava o dinheiro porque ele estava com pressa para assinar os documentos ele falava, ‘tá, toma, toma, toma dinheiro. Vai embora, vai embora, pode ir.’ Era isso que ele fazia.  Então era rápido às vezes a gente passava lá só pra pegar mesmo pra ir no Mc Donald’s que era ali na fundação, ah ‘eu estou sem hoje, vamos lá no Mc.’

[Vítima]
Eu não ia no Mc [Donald’s], eu ia pra favela, pra usar droga. A parte da **** foi mais pesada. A nossa foi mais leve porque a gente ia gastar com bobeira a **** não, ela começou a usar drogas.

[Clarissa Levy]
As visitas a Samuel levaram Luiza a abandonar a escola ainda na terceira série, como a gente checou no seu histórico escolar. 

[Vítima]
Eu ia lá buscar dinheiro pra ficar fumando crack.

[Clarissa Levy]
Isso mexe com a cabeça né?

[Thiago Domenici]
Você tinha quantos anos?

[Vítima]
Eu comecei aos 9, depois que eu passei a ir. Porque como meu pai me batia muito, eu tinha que matar a aula, e tinha que ficar em algum lugar. Aí comecei a conhecer gente também da pesada. Comecei a me envolver com droga, ia lá buscar dinheiro. Toda hora eu ia lá, toda hora eu queria dinheiro.

[Clarissa Levy]  
Luiza não sabe precisar, mas estima que a relação de dependência emocional e financeira por meio da exploração sexual exercida por Samuel, ocorreu de 1989 até meados dos anos 2000. “Eu vejo agora que eu não tive estudo, não tive infância, não tive meios, não tive ninguém pra cuidar de mim. Se uma pessoa tira a sua infância, seus estudos, a sua casa, você fica sem chão.”

Existe um um perfil comum entre as primeiras vítimas de Samuel Klein. Quase todas elas vieram de famílias de origem empobrecidas, vindas de bairros populares de São Caetano em busca do “homem rico que dá uns presentes”. Samuel usava essa imagem de generoso para atrair as jovens. Isso confundia a cabeça delas.

[Thiago Domenici]
Durante muitas décadas desde a sua fundação, a Casas Bahia manteve uma estrutura de administração em que as principais decisões eram centralizadas no clã familiar, sobretudo, na figura de Samuel Klein.  Não havia um conselho societário que deliberasse sobre as ações econômicas da empresa, o que deu a Samuel liberdade plena de tomar decisões financeiras que eram convenientes para ele. Segundo a biografia de Elias Awad ele tinha aversão a ideia de ter sócios. O próprio Samuel confirma isso em uma entrevista de 2004.

[Arquivo TV]
O senhor detesta sócio também né?”

[Arquivo voz Samuel Klein]
Como, que sócio? Quem tem sócio tem patrão. Sem sócio, sem sócio.” 

[Thiago Domenici]
Até por isso, retirar dinheiro diretamente do caixa das lojas era uma atitude permitida nessa lógica de uma empresa de um homem só. 

[Thiago Domenici]
Porque, assim, eu ouvi dizer que tinha, assim, cachês de 500, de mil reais.

[Ex-funcionária]
Eu vou falar pra você. Lá elas chegavam a receber 3 mil cada uma. 3 mil cada uma? 3. Então, toda semana era, enfim, quase 10… 3 mil reais que saía da loja. Fora as mercadorias, né? Fora. Que eram mercadorias altas”.

[Trilha] 

[Thiago Domenici]
Essa é a Marilena, que trabalhou em uma loja da zona leste de São Paulo, em 2008, e aparece no começo do episódio. O que ela fala sobre a liberação de dinheiro nos caixas é confirmado em diversos processos judiciais que consultamos. Em uma ação trabalhista,  uma outra ex-funcionária da empresa declara: “por diversas vezes, fui constrangida perante os demais colegas da empresa ao ter de entregar dinheiro a mulheres desconhecidas, por ordens expressas do proprietário da empresa, o Sr. Samuel Klein”. 

Ela diz mais:“mulheres chegavam na loja com bilhetes assinados pelo proprietário da empresa, e exigiam a entrega de valores altíssimos, em moeda corrente, dizendo que se a funcionária demorasse a conseguir os valores seria imediatamente despedida, pois tinham autorização expressa do Sr. Samuel Klein”. 

[Thiago Domenici] 
Segundo os relatos e documentos que consultamos, fica então explícito que o esquema de exploração sexual se valia diretamente da estrutura da empresa.  Mas além do escritório com o quartinho, dos pagamentos em produtos e no caixa, o esquema dependia também de outras engrenagens. E uma delas, era externa.

[Vítima] 
Não tem quem, em Santos, não conheça a Kátia da hérnia.

[Mariama Correia]
A gente encontrou uma nova pista sobre essa mulher chamada Kathia. Kathia Lemos. Esse nome apareceu pra gente, pela primeira vez, quando Thiago entrevistou uma das vítimas do esquema de exploração sexual de Samuel Klein. Ela sempre aparecia nas conversas das sobreviventes e foi um mistério durante muito tempo da nossa investigação. Como contamos no primeiro episódio dessa série, Kathia era apontada como a pessoa que levava meninas e mulheres para os encontros privados com Samuel. O nome dela também surgiu várias vezes nos processos judiciais. 

Muitas mulheres que frequentavam os encontros com Samuel se referiram a Kathia como uma espécie de agenciadora, uma loira articulada. Uma peça fundamental na estrutura dessa grande engrenagem, movida a dinheiro e poder, que sustentou décadas de abusos sexuais e de impunidade. A imagem que eu tinha na cabeça era a de uma mulher poderosa, até encontrar com ela em Santos, no Litoral de São Paulo, em janeiro de 2021.

[Áudio ligação Mariama Correia]
Kátia? Oi, tudo bom? Desculpa chegar assim, sem avisar. Eu tentei te ligar em alguns vezes, eu não consegui. 

[Thiago Domenici]
Pra esse podcast, a gente queria muito ouvir a Kathia sobre as alegações que pesam contra ela. E se ela topasse falar, poderia esclarecer o que presenciou, se defender de algumas acusações. Então, nesse primeiro contato, que você acabou de ouvir, a repórter Mariama Correia gravou a conversa sem que Kathia soubesse que estava sendo gravada. Nesse momento da investigação, nosso foco era apenas checar a veracidade das acusações contra Samuel Klein. 

Em 2024, para a produção desse podcast, Mariama, voltou a procurar a Kathia, mas ela não só se negou a falar com a gente como ameaçou a Agência Pública de processo. Diante dessa situação, e apesar de não ser uma prática editorial comum na Agência Pública, a gente decidiu utilizar um áudio de Kathia gravado em 2021. É um material que nunca foi ao ar porque Kathia foi gravada sem saber. Para essa decisão, a gente considerou não só a negativa de um depoimento oficial, mas o o claro interesse público das revelações que Kathia faz, que indicam práticas ilegais de Samuel Klein. Por isso decidimos usar a gravação.

[Kátia Lemos]
Vocês querem falar de prostituição. Eu não vou falar disso, porque as putas que iam lá só enganavam ele. Se for pra mim falar, eu vou falar isso. Eram mulheres mãe, com marido, que falavam que era virgem, que eram santas… Se for pra falar a verdade, eu falo, e trago um monte delas pra falar.

[Mariama Correia]
Meu encontro com Kathia aconteceu na frente da casa dela. Aquela mulher tinha trabalhado por mais de trinta anos como uma espécie de faz tudo de um dos empresários mais ricos do país. Aquela figura glamourosa que eu tinha construído na minha cabeça, que talvez tivesse ganhado muito dinheiro a partir de um grande esquema de exploração sexual, não foi a mesma pessoa que encontrei em Santos. Ali, na frente de uma casa simples, havia apenas uma mulher comum, na faixa dos seus 50 anos, que vendia tapeçarias para sustentar sozinha a mãe doente e idosa. 

Essa dualidade, entre a figura astuta, que orquestrava o esquema, e a mulher que terminou sozinha, sem direitos trabalhistas, dinheiro ou rede de apoio. Uma mulher entre a vítima e o algoz, estava presente em todos os momentos do nosso encontro. Era tudo muito contraditório. Durante toda a conversa, Kathia negou ter agido como aliciadora do esquema, apesar de ter sido apontada por várias das nossas entrevistadas como uma das pessoas que exercia esse papel. Ela também disse que não havia menores de idade nos encontros privados com o empresário, outra contradição. Por outro lado, Kathia admitiu que Samuel, ‘tinha uma predileção por meninas mais novas’. E que inclusive ela também teria sido assediada por Samuel quando tinha entre 13 e 14 anos.

[Kátia Lemos]
Um dia ele tentou. Eu falei, você nunca mais faz isso. Porque eu tô aqui pra trabalhar e se você quer minha amizade, vai ter. Ele pediu perdão e desse dia em diante ele virou meu melhor amigo. Eu tinha 13, 14 anos e eu trabalhava pra ele. Eu limpava, fazia comida, fazia segurança, fazia tudo o que ele precisava fazer. Eu fazia serviço de loja, de buscar material, levar material pra loja.

[Mariama Correia]
Um assistente pessoal, uma coisa assim?

[Kátia Lemos]
É, pessoal. Eu era menina. Eu tinha 13 anos de idade e eu fui fazer café da manhã para ele aos domingos. Tem muitas pessoas pra falar e vão te falar a mesma coisa. Moças que conviveram, tiveram caso com ele.

[Mariama Correia]
Não tinha meninas menores [de idade]?

[Kátia Lemos]
Não. A verdade, todas são maiores. Elas mentem, são maiores, são mãe, tem marido, e elas mentiam que era o menor pra agradar eles, entendeu? As fantasias deles, mas era mentira.

[Mariama Correia]
Porque eles queriam meio que essas meninas mais novinhas? 

[Kátia Lemos]
Eles queriam meninas de 18 anos. As meninas tinham 30, mas era pequenininha, baixinha, parecia que tinha 18, Entendeu? Aí falavam assim, ‘ah, tenho 17 para fazer 18’, mas era mentira. Tinha várias cafetinas que levavam as mulheres pra lá.

[Mariama Correia]
Kathia contou que em alguns momentos mais de 100 meninas e mulheres, de vários lugares do Brasil passavam pelo quartinho secreto do empresário na sede da Casas Bahia ou nas suas residências. Kathia  também disse que o esquema sexual era quase como um negócio que passava de pai para filho. Isso porque, algumas mulheres participavam tanto dos encontros com Samuel como com seu filho mais velho, Saul Klein. 

[Kátia Lemos]
A necessidade né? As moças precisavam.

[Mariama Correia]
Sim, meninas vulneráveis, né? E rolava assim de ter algum acordo financeiro? Tipo, tu já chegou a pagar alguma menina, assim, do tipo, pra ela parar de procurar, alguma coisa assim?

[Kátia Lemos]  
Não, eles sempre davam. Elas iam mesmo. Por que elas iam ficar com uma pessoa idosa? Por causa do dinheiro? Sim.

[Mariama Correia]
Recebia presente lá da Casa Bahia também, tal coisa? E era muita menina, todas aqui de Santos?

[Kátia Lemos] 
Meninas de todo lugar, filha. De todo lugar que você imaginar, do Brasil, vinha.

[Mariama Correia]
Tu chegou a acompanhar ele lá na Casas Bahia e ele também chegava a receber alguém lá na Casas Bahia?

[Kátia Lemos]
Era mais de 100 por dia.

[Mariama Correia]
Mais de cem meninas lá na suíte dele? Ele não tinha relações sexuais com todas?

[Kátia Lemos]
Não, nem tinha como. Nem tinha como, né?

[Clarissa Levy]
Ouvir Kathia também foi fundamental para entender uma outra face de Samuel Klein. A gente já conhecia a imagem dele de sobrevivente da guerra e de comerciante pobre, que conseguiu se transformar em bilionário, admirado por sua capacidade empresarial. Mas ouvindo Kathia, a gente começou a entender que a imagem de “benfeitor” foi essencial para Samuel manter seu esquema oculto. Por trás do homem caridoso, que dava dinheiro para quem precisasse, estava um negociante que sabia barganhar a admiração e a lealdade das pessoas.

[Kátia Lemos]
O seu Samuel, ele adorava ir na favela. Eu ia com ele na favela e tomava café lá. Depois a gente doava mais de 3 mil cestas básicas. É, tem várias moças que namoraram ele que eu acredito que hoje elas têm casa, têm carro, elas não tinham onde morar, sabe? Não tinham o que comer, não tinham o que vestir. Hoje elas têm uma vida digna graças a ele.

[Clarissa Levy]  
Quando a gente encontrou com a Káthia, a vida dela não ia tão bem assim. Ela acabou sendo afastada da rotina de  Samuel Klein, antes mesmo da sua morte e reclamava da falta de dinheiro. Mas Kátia não atribuía a sua má sorte ao empresário. A pedra no sapato dela tem outro nome: Lúcia Amélia Inácio. 

[Kátia Lemos]
E ela não gostava de mim, porque eu debatia com ela que ela não tinha que pegar dinheiro das meninas. No final da vida dele, a praga dessa Lúcia conseguiu me afastar dele. Ela pegava 10% de todas elas. Ela é daqui de Santos? Não, é de São Caetano. É Lúcia Amélia Inácio. Ela é uma praga. 

[Thiago Domenici]
Lúcia Amélia Inácio. Quando esse nome surge em nossa apuração pela primeira vez, a gente não sabia exatamente qual era seu papel na história. Os depoimentos que foram surgindo em nossa pesquisa iam citando Lúcia como peça fundamental da engrenagem de exploração de Samuel.

Lembro que alguém da equipe comentar que uma tal de Lúcia era citada na biografia de Elias Awad como “a fiel enfermeira”. E a realmente estava lá, citada na biografia. “Tudo passa pela análise da fiel enfermeira e responsável pelo departamento de benefícios, Lúcia Amélia, que começou na empresa em 1973, contratada como enfermeira da unidade médica montada por Samuel em São Caetano para atender os funcionários”. 

A biografia cita que eles se conheceram na própria Casas Bahia e dali nasceu uma grande simpatia e confiança entre os dois O nome do seu cargo se torna ainda mais relevante, “departamento de benefícios”, por que na prática, os depoimentos mostram Lúcia extrapolava, em muito, o trabalho como enfermeira dos funcionários.  Entre várias características e funções atribuídas a Lúcia, ela foi apontada mais de uma vez como a pessoa que controlava o fluxo de caixa do esquema de exploração sexual de Samuel.

[Vítima]
“A Lúcia sabia de muita coisa. A Lúcia via muita coisa. A Lúcia acabava de uma certa forma sendo cúmplice de algumas coisas. Mas ao mesmo tempo, pelo menos comigo, algumas vezes ela falava pra mim, ‘você é muito bonita, você não precisa disso’.

[Thiago Domenici]
Essa é mais uma vez, Fabrícia, que caiu no esquema quando tinha 11 pra 12 anos de idade. 

[Vítima]
Embora eu estivesse lá, sabendo de tudo o que acontecia, era nítido em algumas atitudes eu ficar assustada. Então acho que por ela perceber, algumas vezes, algumas vezes até eu chorando. E ela falava. ‘O que aconteceu?’ E eu falava, aconteceu isso, isso e isso. ‘Mas por que você está aqui? Não vem mais’.

[Thiago Domenici]
Durante boa parte de nossa apuração, Lúcia era apenas uma pessoa sem rosto, uma personagem enigmática dessa história. É como se fosse um arquivo vivo de quase tudo que aconteceu. A gente comentava na equipe que se ela falasse o que sabia, a história ganharia uma nova dimensão. 

[Vítima]
Um imagem de santarrona, assim. Ela tava sempre com um coque, saia longa, uma aparência bem velha, zero vaidade, abaixo de zero vaidade era a vaidade dela. Imagina uma senhora de idade magra, um pouco alta e com menos zero de vaidade

[Thiago Domenici]  

Essa é a Stefany, que conviveu com Lúcia durante um bom tempo.  

[Vítima]
“Ela era firme e brava e nos últimos dias, quando ele estava doente, ele sempre estava com ela. 

[Thiago Domenici] 
Stefany é quem aparece no primeiro episódio dessa nossa série com um depoimento forte. Você deve se lembrar, quando ela diz que Samuel se excitava ao assistir o documentário que narra sua própria vida. Ela foi uma das meninas que passou muitas tardes reassistindo esse documentário, colocado pelo empresário. 

[Thiago Domenici] 
Você com vontade de chorar. De, sei lá, de coitadinho, de dar um colo para ele. E ele se excitava sexualmente, eu me lembro”.

[Thiago Domenici]
Quando Stefany me procurou a primeira vez, nossa reportagem já tinha sido publicada em 2021. E eu não fazia ideia de que Stefany traria tanta informação nova para este podcast.

[Vítima]
A minha terapeuta sempre me disse que eu deveria falar com alguém, que eu deveria contar. Só que são coisas tão, não sei se eu falo absurdos, loucos ou inacreditáveis, as que eu vivi que eu não sei se alguém humano acreditaria. Nunca consegui falar porque não sei como a pessoa vai me tratar depois, foram cinco anos da minha vida, entende? Eu vi que talvez você seria uma pessoa para eu contar, e isso me entusiasmou muito, entendeu?

[Thiago Domenici] 
Stefany e eu nos encontramos presencialmente em 2023. Foram oito horas de gravação durante dois dias. Sai do nosso encontro muito impressionado com o quanto ela tinha conseguido elaborar tudo o que  viveu.  Stefany sabe muita coisa, viu muita coisa. Você vai ouvir muito dela por aqui. Mas neste momento, vamos entender mais da Lúcia pelo olhar da Stefany. 

[Vítima] 
Eu já ouvia as histórias dela, de que ela era muito bruxa, que ela era isso, que ela era aquilo, então eu já sempre me preparava para quando eu conhecia ela, para que ela gostasse de mim, entendeu? E o que funcionava? Quando tinha dias que ele recebia mais de 100 meninas…

[Thiago Domenici] 
Eu pedi a ela que tentasse me explicar quem era essa Lucia sem rosto.

[Vítima]
Eu tinha uma boa relação com a Lúcia. Ela não se dava bem com ninguém. Porque ela era dessas igrejas… Ah, eu não sei o nome das igrejas que usam saia, que não sei o quê. E eu contei uma história pra ela, menti que a minha mãe também era da igreja, que eu era da igreja. Quando a pessoa gostava de alguma coisa, eu procurava aprender aquilo e me tornar aquilo que a pessoa queria. Então, eu fazia muito bem isso com ela e a gente tinha um bom relacionamento.

[Thiago Domenici] 
Com tudo que presenciou, eu perguntei pra Stefany se no dia a dia, se nessa convivência com Lúcia, ela demonstrava alguma consciência do que se passava ao seu redor… 

[Vítima]
Também penso, como será que funcionava a consciência dela, a cabeça dela, se é que ela tinha, né? Não tenho a resposta pra isso. Eu sei que muitas vezes ela se demitiu, ela foi embora, quando ela presenciava alguma situação que para ela era muito discrepante, não sei. Ela ia embora e ele voltava. Já teve história de que ele próprio foi na casa dela buscar ela, pra ela voltar. E era assim que funcionava a relação. Ele ia atrás dela, buscava ela. Era como se ela não tivesse escolha também. Ela também era um pouco refém daquela situação. Entende? Porque se tu deixar uma vez se tu ver alguma coisa uma vez que eu não fizer nada tu já não tem como sair porque se tu não ficar preso pela tua consciência tu fica preso por chantagem.

[Clarissa Levy]
Os documentos que a gente consultou, relatos e processos, indicam que para manter o esquema funcionando sempre com alta rotatividade de mulheres, além de contar com os trabalhos de lucia, Samuel criou uma espécie de pirâmide: além das agenciadoras, as próprias vítimas traziam novas meninas para participar dos encontros. 

[Vítima]
Era aquele negócio, ‘ai, você não tem uma amiguinha? Traz uma amiguinha diferente que eu te dou um presentinho’. E era uma coisa assim, tão automática, que você falava assim, ai, ‘você não tem uma amiguinha bonita?’ Ai, eu tenho, tenho. Ai, olha, Samuel, eu tenho uma amiguinha, assim, assim… ‘Cadê foto? Mostra foto’. E mostrava foto, e ele ‘traz ela, traz ela, menina. Traz ela que eu te dou um presentinho’. E era isso que acontecia, por isso que tinha um fluxo muito grande de meninas. Porque ela acabava não só dando dinheiro pra pessoa que estava ali fazendo o ato, mas ele acabava de uma certa forma atraindo para que as outras meninas trouxessem outras meninas.

[Clarissa Levy]  
Quanto mais novas as meninas, maior a recompensa. E assim o esquema crescia. 

[Vítima]
A gente sempre levava, porque quando ele perdia interesse na gente a gente levava Levava uma para encantar mais ele. Porque quando você levava, ele ficava mais bonzinho. Aí ele agradava mais a gente. Ele dava mais dinheiro pra gente. A gente podia pegar mais coisas, um armário… Eu com 15, já levei uma menina de 12 porque ele já perdeu interesse em mim e a minha irmã de 12 levou eu. Toda semana, a Lúcia me ligava e falava, ****, tem um presentinho para você aqui aí eu ia lá buscar. E aí depois quando a ****levou ela a **** também. Ela tinha 9, então para ele, ela era a menina dos olhos dele. 

[Clarissa Levy]
Esse modus operandi, Stefany nomeou, anos depois, como o  “crediário da exploração sexual”.

[Vítima]
O vale eu acho que era um clone do crediário ou um irmão gêmeo, sei lá.. algo do tipo que a pessoa colocava ali, né? A gente colocava o que a gente queria de produto e de dinheiro e aí ele negociava os itens que estavam ali listados, né que a gente escrevia no Vale, ele negociava o que ele tava lendo ali, ele gostava dessa negociação. Então eu acho que ele fez esse vale para isso,para negociar como se fosse um crediário para gente.

[Clarissa Levy]  
Tinha sempre uma menina nova chegando. Mas acontece que para aquelas que eram escolhidas por ele, o quartinho na sede da empresa viraria só a porta de entrada. Muitas meninas contaram pra nós que, depois de frequentar o escritório, na sede da empresa, começaram a receber convites para ir ao encontro do empresário em outros locais. 

[Mariama Correia] 
E com isso o esquema se ampliou. Ultrapassou as paredes do prédio da Casas Bahia e cresceu para outros municípios, com mais meninas e mais violência.  Para atrair adolescentes e crianças, fora de São Caetano, surgiram novas estratégias.  A gente encontrou um recorte de jornal da Tribuna de Santos. Na manchete dizia o seguinte: “Empresário Samuel Klein distribui dinheiro aos pobres na praia da Enseada”. 

[Vítima]
Lá em Angra era um lugar muito pequeno. Todo mundo sabia de tudo. Agora faz muitos anos, mas no shopping de Angra todo mundo nos conhecia e sabia. Eu lembro que a gente passava e as pessoas das lojas saiam pra fora pra ver: ‘Oh, elas estão passando’. 

E é isso que vamos contar no próximo episódio.

[Thiago Domenici] 
Quando a gente publicou as primeiras reportagens em abril de 2021, nós fomos buscar a versão dos representantes da família Klein e da atual holding controladora da Casas Bahia, que naquele momento se chamava Via Varejo. Todas as respostas foram publicadas na íntegra em apublica.org e agora, em 2024, nós tentamos falar com  eles novamente, para este podcast. Da família Klein, a manifestação veio do filho mais velho de Samuel, o empresário Michael Klein, ele disse o seguinte, ‘‘Infelizmente, meu pai não está aqui para se defender’’.

Do grupo Casas Bahia, antiga Via Varejo, a resposta foi “O Grupo Casas Bahia, como constituído hoje, esclarece que não possui qualquer relação com os fatos mencionados na reportagem. As informações da publicação referem-se ao período anterior a 2010, quando a empresa ainda era controlada pela família Klein. Em 2011, com a formação da Via (anteriormente conhecida como Via Varejo), foi constituída uma nova sociedade, responsável exclusivamente pela operação de varejo, incluindo a marca Casas Bahia. Já em 2019, o Grupo Casas Bahia tornou-se uma empresa de capital aberto, sem acionista controlador e é regida pelos mais altos padrões de governança corporativa”.

A gente também procurou outro filho, Saul Klein, que é citado no podcast e na investigação, mas sua defesa não foi localizada. Nossa equipe enviou e-mail, houve contato telefônico, mas ninguém retornou. 

Além disso, procuramos outras pessoas citadas neste episódio, como a Kathia Lemos, que não quis falar. Também tentamos contato com Lúcia Amélia Inácio, apontada como secretária pessoal de Klein na Casas Bahia, que teria sido responsável pelo aliciamento e pagamento de meninas, mas ela também não deu retorno. 

É isso. Semana que vem, estamos de volta.  

[Mariama Correia] Qualquer relação sexual com menores de 14 anos é estupro de vulnerável pela lei brasileira. Exploração sexual de crianças e adolescentes é crime. Para denunciar casos de abuso, violência ou exploração sexual procure qualquer delegacia, o Conselho Tutelar ou o Centro de Referência Especializado de Assistência Social da sua cidade. Vítimas ou testemunhas também podem fazer uma denúncia anônima pelo Disque 100.

Créditos do Podcast:

[Mariama Correia] Caso K – A história oculta do fundador das Casas Bahia é uma produção original da Agência Pública de Jornalismo Investigativo.

Se estiver nos ouvindo no Spotify ou na Apple, aperte seguir, para ser avisado quando sair o novo episódio. E se estiver no Spotify, você pode deixar seu comentário. Vamos gostar de ler vocês por aqui.

E se você não conhecia esta história e acha  que mais gente precisa saber disso : nos ajude. Mande este episódio pra uma amiga, um amigo.

Na investigação dessa história trabalharam:  eu, Mariama Correia, Andrea Dip, Ciro Barros, Clarissa Levy, Rute Pina e Thiago Domenici.  O desenvolvimento foi feito por Luana Rocha. Roteiros por  Clarissa Levy, Luana Rocha, Mariama Correia, Stela Diogo e Thiago Domenici.  Na produção, Stela Diogo.  Pesquisa de arquivo por Thiago Domenici.  Na revisão do roteiro e coordenação de podcasts da Agência Pública, Claudia Jardim. O tratamento de sonoras das entrevistadas foi feito por Ricardo Terto. No design de som, edição e finalização, Pedro Pastoriz. As artes foram feitas por João Ito.  Na estratégia de divulgação: Marina Dias, Letícia Gouveia, Renata Cons e Bruno Penteado. Nas Redes sociais, Karina Tarasiuk, Lorena Morgana, Ethieny Karen, Raquel Okamura, Fernanda Diniz. A direção geral de Caso K é de Thiago Domenici. 

Toda essa série só existe graças a contribuição das aliadas e aliados da Pública, pessoas que apoiam  financeiramente o  nosso trabalho. Se você também quiser e puder fazer parte da nossa base aliada é simples: é só acessar apoie.apublica.org e escolher como contribuir. 

Neste episódio, usamos áudios da entrevista de Samuel Klein para a rede mulher, disponíveis no Youtube pelo canal Pedro Barros e também Áudios da série Economia Brasileira, disponíveis no canal Louise Sottomaior.

Muito obrigada por acompanhar a gente até aqui. Até o próximo episódio.

Este podcast foi financiado graças a milhares de apoiadores que acreditam no jornalismo investigativo da Pública. Seja uma dessas pessoas e nos ajude a continuar trazendo histórias que precisam ser contadas. Faça parte em apoie.apublica.org.

Equipe

Investigação: Andrea Dip, Ciro Barros, Clarissa Levy, Mariama Correia, Rute Pina e Thiago Domenici.
Desenvolvimento: Luana Rocha.
Roteiro: Clarissa Levy, Luana Rocha, Mariama Correia, Stela Diogo e Thiago Domenici.
Produção: Stela Diogo.
Pesquisa de arquivo: Thiago Domenici.
Revisão de roteiros: Claudia Jardim.
Tratamento de sonoras das entrevistadas: Ricardo Terto.
Design de som, edição e finalização: Pedro Pastoriz.
Artes: João Ito. 
Estratégia de divulgação e programa de Aliados da Agência Pública: Marina Dias, Letícia Gouveia, Renata Cons e Bruno Penteado.
Redes sociais: Lorena Morgana, Ethieny Karen, Raquel Okamura, Fernanda Diniz. 
Coordenação de podcasts da Agência Pública: Claudia Jardim.
Direção geral de Caso K: Thiago Domenici.

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Se você chegou até aqui é porque realmente valoriza nosso jornalismo. Conheça e apoie o Programa dos Aliados, onde se reúnem os leitores mais fiéis da Pública, fundamentais para a gente continuar existindo e fazendo o jornalismo valente que você conhece. Se preferir, envie um pix de qualquer valor para contato@apublica.org.

Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes