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O Carnaval do feminicídio

Neste episódio, um passeio pelo Halloween mais famoso do mundo e a história de uma idosa perseguida pelos tribunais

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EP 4 O Carnaval do feminicídio

Neste episódio, um passeio pelo Halloween mais famoso do mundo e a história de uma idosa perseguida pelos tribunais

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Chegamos enfim ao dia do Halloween. Em 31 de outubro de 2023, as jornalistas Natalia Viana e Giulia Afiune caminham pelas ruas de Salém em meio a muita gente fantasiada e celebrando, ao mesmo tempo em que relembram alguns detalhes apavorantes sobre os processos judiciais contra mulheres. E avisam: não havia nenhuma bruxa entre as acusadas. 

Natalia Viana detalha o caso de Rebecca Nurse, uma senhora idosa que corresponde ao perfil de grande parte das mulheres perseguidas como bruxas nos séculos 16 e 17. Com cerca de 70 anos, Rebecca foi acusada pelas meninas de Salém de torturá-las na forma espectral e julgada pelo tribunal do Grand Jury e depois por outro tribunal especialmente formado para os julgamentos das acusadas de Salém, a Corte de Ouvir e Determinar. Nestes meandros judiciais e burocráticos, vamos encontrar detalhes sobre como a sociedade da época via o papel das mulheres, e das supostas bruxas, e como os homens da lei atuavam para tentar condená-las à morte. 

Consulte aqui:

Também vamos ouvir uma entrevista com uma das maiores especialistas no tema, a filósofa italiana Silvia Federici, que usa conceitos do marxismo para explicar a origem da caça às bruxas  

Ouça agora o episódio 4.

Leia abaixo o roteiro do episódio na íntegra:

[Giulia Afiune]
Tudo bem?

[Natalia Viana]
Tudo bom, querida? Tá de florzinha.

[Giulia Afiune]
Eu tô, era pra ser uma hera venenosa, mas eu deixei a hera em casa.

[Natalia Viana]
Mas você tinha uma hera?

[Giulia Afiune]
Eu tinha umas folhas assim que amarrava em volta de mim, só que eu achei que ia ficar um pouco ruim pra gravar podcast com as folhas amarradas. Então eu só vim com esse enfeite de cabeça que é uma flor bonita, tropical, assim, bem Brasil, sabe?

[Natalia Viana]
Você tá vermelha, né? Você tá vestida de vermelho.

[Giulia Afiune]
Eu também tenho um casaco bem felpudinho, assim, vermelho. Tá fazendo 4 graus lá fora.

[Natalia Viana]
4 graus.

[Giulia Afiune]
Tá muito frio, então tem que ficar de casaco, não tem jeito.

[Natalia Viana]
Mas o dia tá lindo, pelo menos, né?

[Giulia Afiune]
Você parece, na verdade, uma raposa.

[Natalia Viana]
Uma raposa?

[Giulia Afiune]
Uma raposa.

[Natalia Viana]
Raposa será?

[Giulia Afiune]
Então tá bom, você tá de raposa e eu estou de hera venenosa.

[Natalia Viana]
Perfeito, consegui.

[Giulia Afiune]
Vamos fazer o nosso podcast.

[Natalia Viana]
E assim, a coisa mais fácil de fazer era a bruxa, né? Que é só comprar um chapéu, mas a gente falando tanto dos julgamentos, eu me senti mal de me vestir de bruxa, sabe? Porque eu falei, ah, não. Tá parecendo mais carnaval do que ontem, quer dizer, a gente tá aqui no café e, sei lá, tem bastante gente fantasiada. Acabou de sair um pirata pela porta, por exemplo.

[Giulia Afiune]
É, andando até aqui, eu vi muitas bruxas, muitas bruxas. É, com certeza, a fantasia mais… É… A fantasia mais popular, com certeza, é a fantasia de bruxa. Tem muitas.

[Giulia Afiune]
A gente tá andando pela rua principal, que é onde estão concentradas as festividades hoje, no dia do Halloween, aqui na cidade de Salém.

[Natalia Viana]
É assim, imagina carnaval, só que sem música e sem bebida. Ou seja, só tem fantasia, né, no caso.

[Giulia Afiune]
E as fantasias são todas. Tem duas pessoas vestidas com uma fantasia inflável de dinossauro. Dinossauro azul. Tem um cara aqui com uma fantasia de um inspetoro. Pera aqui.

[Natalia Viana]
Tem esse cara vestido de bacon.

[Giulia Afiune]
Mais um dinossauro inflável.

[Natalia Viana]
Tem um monte de dinossauro inflável. Lá vem mais um palhaço.

[Giulia Afiune]
Um gato com… Que vai se candidatar pra…

[Natalia Viana]
Prefeito.

[Giulia Afiune]
Prefeito da cidade de Salém. Um gato preto. Agora tem uma grande roda aqui, cheia de gente. E tá acontecendo alguma coisa lá no meio. Vamos ver do que que se trata.

[Natalia Viana]
Finalmente, chegamos à festa de Halloween, na tarde de 31 de outubro de 2023. Eu e a jornalista Giulia Afiune, estamos andando pelas ruas de Salém, no meio de muitas pessoas, pessoas vestidas de bruxa e também de outros seres do além. É o maior festival popular dos Estados Unidos. Um verdadeiro carnaval de rua. E muito do imaginário que temos sobre bruxas vem dessa festa fantasia e dos filmes de Hollywood.

[Natalia Viana]
Eu sou Natalia Viana e este é o podcast Caça às Bruxas: uma história de terror real. Episódio 4: O Carnaval do feminicídio.

[Natalia Viana]
A gente vai passar lá no que é o Town Hall, que é um lugar de um morador importante daqui, logo aqui em cima, de um morador importante que era um mercador, né, e que tinha barcos também. E aqui era onde ficava o, já ficava o mar. Só que o Porto de Salém, ele era muito raso quando começaram a ter embarcações maiores, depois da Revolução Industrial, depois dos barcos a vapor, navios a vapor, então eles resolveram aterrar essa área inteira, fizeram aquela coisa, né, empurraram o mar mais pra longe. A gente tá indo agora pro pier atual, que já é uma coisa reformada bem mais recente.

[Giulia Afiune]
É, como o Sean explicou no tour que a gente fez, quando Salém começou a explorar essa, esse passado, relacionado com as bruxas, muitas pessoas que tinham, que se sentiam, que sentiam alguma conexão com esse mundo esotérico, com esse mundo da magia e tal, começaram a vir pra cá porque se sentiam representadas de alguma forma por isso. Embora, vamos lembrar também o que que ele falou, que não tinha nada de bruxaria nessa, nessa história, né?

[Natalia Viana]
Você que tá me acompanhando desde o primeiro episódio já deve ter percebido, mas nunca é tarde pra esclarecer, essa não é uma história sobre bruxas. Também não é uma história sobre curandeiras, sobre mulheres que sabiam usar ervas da floresta. Nem sobre poderes do sagrado feminino, sobre Wika, ou sobre eventos sobrenaturais. Essa é uma história sobre feminicídio. Feminicídio em massa, aprovado, coordenado, registrado e conduzido pelo Estado em procedimentos estruturados, burocráticos e que faziam sentido pro conhecimento da época.

[Natalia Viana]
Tem uma mulher, uma senhora na verdade, que talvez demonstre melhor do que ninguém a crueldade dessa caça às mulheres e o labirinto burocrático e judicial que se armou contra elas. Seu nome é Rebecca Nurse. E vamos visitá-la. Quer dizer, quem vai visitá-la é um grupo de oficiais da administração local, homens bem reputados na comunidade, que foram no dia 22 de março de 1692 até a casa da família Nurse, nos entornos da Vila de Salém, para contar à matriarca que ela também foi acusada de ser bruxa.

[Natalia Viana]
Estavam na visita o cunhado dela, Peter Cloyce, junto com Daniel Andrew e Israel Porter. Ele veio com a esposa, Elizabeth Hathorne Porter. Suou familiar o sobrenome? Isso mesmo. Ela era irmã do juiz John Hathorne, o principal algoz das mulheres acusadas que conhecemos nos episódios anteriores.

[Natalia Viana]
Os quatro visitantes chegaram ao enorme casarão de três andares feito de madeira, passaram pela larga lareira de pedras onde também se cozinhava e subiram os degraus até o segundo andar, para o quarto de Nurse. Eles estavam um pouco encabulados, mas com a certeza de que tinham que informá-la e que não seria tão fácil, pois além de estar na cama doente, ela era um pouco surda.

[Israel Porter]
Boa senhora Nurse, como está? Parece fraca. Tem estado de cama há mais de um mês.

[Rebecca Nurse]
Eu agradeço a Deus por isso. Enquanto estou quieta em casa, tenho mais da vossa presença durante a doença. Mais do que eu tinha antes, mas não tanto quanto eu gostaria.

[Israel Porter]
Seja abençoada, Boa Nurse.

[Rebecca Nurse]
Com os apóstolos eu sigo em frente. Mais angustiada me sinto pelas meninas da família do reverendo Samuel Parris, por quem tenho sofrido, mas não consegui visitá-las porque eu mesma tenho que me resguardar.

[Israel Porter]
Como resguardar-se?

[Rebecca Nurse]
Senhor Porter, quando era moça, sofri também desmaios. E as pessoas me dizem que os surtos são horríveis de assistir. Eu tenho dó dessas meninas e com todo meu coração pedi a Deus por elas.

[Israel Porter]
A situação é muito grave, Boa Nurse. Muito grave. Mais grave do que imagina.

[Rebecca Nurse]
Eu ouvi dizer que houve pessoas acusadas, mas que são inocentes.

[Israel Porter]
Boa Senhora Nurse, é por isso que estamos aqui. As meninas a acusam de feitiçá-las. Estão falando o seu nome também.

[Rebecca Nurse]
Se assim for, que a vontade do Senhor seja feita,. Você sabe que a esse respeito eu  sou tão inocente quanto as crianças que nem nasceram ainda. Que pecado Deus deve ter encontrado para mim sem penitência para que Ele me envie ao martírio em minha velha idade?

[Natalia Viana]
Esse diálogo que você ouviu aconteceu, segundo os documentos da época. O relato dessa conversa foi usado como uma peça importante no que seria talvez o julgamento mais disputado durante a caça às bruxas.

[Natalia Viana]
Como em todos os episódios vamos deixar o nome do livro e demais documentos históricos no site da Agência Pública para você consultar.

[Natalia Viana]
Diferente de outras vítimas, mulheres pobres, sem uma rede de proteção, o marido e os filhos de Nurse gostavam dela e exauriram todos os recursos disponíveis para tentar inocentá-la. Eles tinham um lugar privilegiado na comunidade. Nurse era membro pleno da Congregação da Igreja Puritana, uma honra permitida apenas a algumas poucas pessoas. Aquelas que eram tão religiosas que poderiam ser tidas como santas visíveis, exemplos a serem seguidos aqui na Terra.

[Natalia Viana]
Um registro assinado pelo pastor Samuel Perris, mostra que três anos antes da caça às bruxas, havia apenas 18 homens e 10 mulheres membros plenos na Congregação. Uma delas era Rebecca Nurse. Por isso, ela tinha um assento reservado nos bancos da frente nos dias de pregação e missas. Era também uma das poucas que podia participar da Ceia do Senhor, ou Lord’s Supper, uma cerimônia fechada, vip, onde os membros da Congregação ajoelhavam-se para receber, quebrar e provar pão e vinho, reencenando a última ceia de Cristo.

[Natalia Viana]
Uma mulher santa. Era ainda uma dona de casa exemplar, puritana fervorosa, mãe de oito filhos, quatro rapazes e quatro mulheres. O marido Francis também era bem visto. Ele era tão respeitado que chegou a ser oficial de polícia, cargo rotativo em um momento em que não existiam forças policiais profissionalizadas. Os xerifes ou condestáveis eram designados pelos homens de bem de cada vilarejo. Ele também foi jurado em diversos julgamentos e chegou a ser contratado para medir terras, entre outras funções públicas importantes.

[Natalia Viana]
Quando as acusações de bruxaria chegaram à porta, os filhos já tinham se casado com outras famílias dos municípios vizinhos e os Nurse tinham adquirido uma propriedade de 300 hectares na zona rural de Salém, onde Rebecca se encontrava naquele dia 22 de março de 1692.

[Natalia Viana]
A primeira a acusar essa senhora, acima de qualquer suspeita, foi Annie Putnam Jr., de quem já ouvimos falar no terceiro episódio, que tinha então 13 anos de idade.

[Natalia Viana]
Era dia 13 de março, durante a missa especial de Shabá aos domingos, dia em que os puritanos não deviam realizar nenhuma atividade em observação ao descanso divino. Algumas das meninas aduentadas tiveram surtos durante a missa.

[Natalia Viana]
À noite, Annie Putnam foi interrogada pela sua mãe, Annie Putnam Senior:

[Annie Putnam Jr.]
Foi ruim a missa, senhora, minha mãe. Não quis interromper.

[Annie Putnam Senior]
Estamos aqui para você, filha. A justiça dos homens e a justiça do senhor vai protegê-la. As bruxas já estão indo para a cadeia.

[Annie Putnam Jr.]
Eu sei. Mas hoje eu fui atacada por um novo espectro. Era um rosto novo. Alguém vagamente familiar.

[Annie Putnam Senior]
Quem? Meu Deus, quem era essa pessoa? Familiar? De nossa companhia?

[Annie Putnam Jr.]
Alguém que eu já vi na igreja, no nosso centro. Alguém que sentava entre os congregados.

[Annie Putnam Senior]
Quem? Sentava com a sua avó?

[Annie Putnam Jr.]
Sentava com a minha avó.

[Annie Putnam Senior]
A senhora Tarbell?

[Annie Putnam Jr.]
Não era a senhora Tarbell.

[Annie Putnam Senior]
A senhora Hannah Holton?

[Annie Putnam Jr.]
Não era a senhora Holton.

[Annie Putnam Senior]
A senhora Deliverance Walcott?

[Annie Putnam Jr.]
Não era a senhora Walcott.

[Annie Putnam Senior]
Nurse? Rebecca Nurse? Anda menina, fala!

[Annie Putnam Jr.]
A senhora Nurse… era a senhora Nurse.

[Annie Putnam Senior]
Ai meu Deus…

[Natalia Viana]
Esse é um fato importante que você vai ter que guardar. A primeira vez que o nome de Rebecca Nurse apareceu na história não foi espontaneamente, mas através de adivinhação. Depois da Annie Putnam Senior, a mãe da menina, sugerir vários outros nomes.

[Natalia Viana]
Cinco dias depois, em 18 de março, a própria Annie Putnam Senior, a mãe, fez as mesmas acusações. Ela disse que foi, abre aspas, “quase esmagada até a morte”, fecha aspas, pelo espectro de Rebecca Nurse e de outra vizinha, Martha Corey, quando estava deitada na cama descansando. No dia seguinte, os espectros voltaram.

[Natalia Viana]
Eis o relato segundo um dos documentos judiciais: “Elas duas me torturaram muitas vezes durante esse dia, com tamanhas torturas que nenhuma linguagem poderia expressar. A aparição de Rebecca Nurse veio mais uma vez até mim de uma maneira tenebrosa, muito cedo pela manhã, assim que estava claro, e trouxe um pequeno livro vermelho nas mãos, mandando eu assinar veementemente, assinar o seu livro. Ela ameaçou arrancar a minha alma do meu corpo”.

[Natalia Viana]
Com o passar dos dias, as acusações se tornaram ainda mais  elaboradas. Diziam que Nurse participava do “Shabat do diabo”, que seria uma espécie de sacramento da Ceia do Senhor, ao contrário. Nele, bruxas e bruxos comeriam pão e beberiam sangue, zombando e profanando a Ceia do Senhor em companhia do próprio Diabo. E ela, a velha Nurse, foi acusada de ser um pilar principal dessa comunhão diabólica, distribuindo a todos o que eles iam comer.

[Natalia Viana]
A situação era desesperadora. E para aplacá-la, entra em cena a justiça dos homens. Ela arrancou Rebecca Nurse da sua cama apenas dois dias depois de ela saber das acusações. Dois guardas a levaram para ser interrogada pelo implacável Juiz John Hathorne.

[Natalia Viana]
Nurse não convenceu o juiz Hathorne e saiu de lá presa, acorrentada, para a cadeia de Salém. Em 12 de abril, ela foi levada com sua irmã, Sarah Cloyce, também acusada, para a cadeia de Boston. Mas o que houve de diferente nesse processo é que o marido e os filhos de Nurse questionaram todos os detalhes falhos que encontraram nos procedimentos. Mais ou menos como movimentos de juízes ou advogados garantistas de hoje em dia.

[Natalia Viana]
Eles apontaram, por exemplo, uma contradição evidente naquela primeira audiência com o juiz Hathorne. Quem serviu de escriba foi… adivinha? O pastor Samuel Parris, aquele mesmo que foi o primeiro a acusar qualquer pessoa de bruxaria ali em Salém. Ele era totalmente parcial. As duas primeiras meninas aflitas moravam na sua casa e ele escreveu acusações contra 35 pessoas e testemunhou contra 17. Segundo a família de Nurse, ele não registrou corretamente o que a mãe e esposa teria dito durante o questionamento do juiz Hathorne. E esse documento, assim como outros registros reunidos pela família Nurse, seriam bem importantes. Eu vou explicar o porquê.

[Natalia Viana]
Como funcionava o sistema judicial inglês vigente nas colônias? Era um processo de três partes. Primeiro, havia dois juízes de instrução na audiência inicial — eram John Hathorne e Jonathan Corwin —, que decidiam se havia evidências suficientes para que a acusada, nesse caso Rebecca Nurse, ficasse presa e o processo seguisse para a próxima fase. Depois, acontecia o Grand Jury, onde uma audiência fechada de 18 homens tinha que endossar as acusações antes que elas prosseguissem para o julgamento em si.

[Natalia Viana]
Então, o caso prosseguia para a fase judicial, onde um juiz-chefe comandava um grupo de nove juízes, homens de bens apontados pelo governador, que zelavam pela obtenção de provas e ordenamento do processo, a ordem e a condução das audiências. Entre eles estavam os mesmos juízes, Corwin e Hathorne, que já conhecemos bem.

[Natalia Viana]
Agora, guarde esse nome nome. O juiz-geral da colônia de Massachusetts era William Stoughton, que servia também como lugar-tenente governador. Como eles viviam em guerra, as maiores autoridades eram também líderes militares. Ele também morava em Boston e havia se formado na escola religiosa de Harvard. E, assim como os demais, ele era um dos líderes da milícia de Massachusetts na luta contra os indígenas.

[Natalia Viana]
Aqui uma pequena pausa. No livro histórico “Uma Bruxa de Salém”, o autor Daniel Gagnon propõe uma teoria interessante: por serem líderes da guerra e estarem perdendo muitas batalhas na fronteira norte, o historiador diz que para esse grupo de juízes, acreditar que havia uma força diabólica castigando a região talvez fosse uma maneira cômoda de colocar a culpa no diabo em vez do próprio fracasso.

[Natalia Viana]
Finalmente, o caso era apresentado a um júri popular composto de 12 homens. Durante o julgamento, a acusação era feita, nesse caso, pelo advogado-geral da sua majestade chamado Thomas Newton. Depois da acusação, a ré podia se declarar culpada ou inocente e, a seguir, eram lidos os depoimentos tanto da acusação quanto da defesa. Os depoentes eram chamados um a um para ouvir seu testemunho e jurar que eram verdadeiros.

[Natalia Viana]
O júri podia fazer perguntas extras e revisavam toda a papelada submetida pela acusação e pela defesa. Como foi o caso daquele relato da primeira visita à casa dos Nurse que eu contei.

[Natalia Viana]
Tudo protocolar, regimental e, pasme, muito parecido com a maneira como acontecem julgamentos ainda hoje nos Estados Unidos.

[Natalia Viana]
A esse respeito, o historiador Bernard Rosenthal escreveu: “Embora imagens populares sobre os julgamentos de Salem dêem conta de uma sociedade às beiras de histeria, não há nada na atenção judicial à ordem e detalhamentos que demonstre que as autoridades legais se comportaram desta mesma maneira”.

[Natalia Viana]
A corte seguia o English Witchcraft Act, a Lei de Bruxaria de 1604 promulgada pelo rei James I e que permitia o confisco de bens, a tortura de prisioneiras para obter confissões e o uso de provas espectrais.

[Natalia Viana]
E isso era respaldado pela jurisprudência. Um dos livros referência mais usados neste e em outros julgamentos se chamava “Country Justice” ou “A Justiça do País”, de Michael Dalton, publicado em 1661. Ele argumentava que, abre aspas, “os juízes de paz não podem esperar evidências diretas de bruxaria, uma vez que o trabalho das bruxas é um trabalho das trevas”, fecha aspas.

[Natalia Viana]
Assim, os juízes tinham que se fiar em provas indiretas e evidências espectrais. Ou seja, os julgamentos foram organizados legais e aceitos socialmente, com muitas salvaguardas jurídicas, inclusive o fato de que cada acusação tinha que convencer juízes e jurados em três fases. E os julgamentos contavam ainda com o apoio e a ordem direta do governador de Massachusetts e do rei da Inglaterra.

[Natalia Viana]
Lembrando, caso você não tenha reparado, eram todos homens.

[Natalia Viana]
Eis o que diz o historiador Daniel Gagnon: “A morte de inocentes ocorreu naquela que era potencialmente a sociedade mais educada da época, em uma corte na qual vários dos juízes tinham diplomas universitários. Essa foi a verdadeira história de terror de 1692.”

[Natalia Viana]
No começo de junho, a Corte de Ouvir e Determinar, ou Court of Oyer and Terminer, foi estabelecida pelo governador de Massachusetts, William Phipps. Suas primeiras audiências tiveram início em 2 de junho. O julgamento de Rebecca Nurse aconteceu em 29 de junho.

[Natalia Viana]
Era um dia quente e o julgamento estava marcado para acontecer no segundo andar de uma casa de madeira usada especialmente para a ocasião, onde se sentavam os juízes atrás de uma mesa elevada sobre um platô. Abaixo ficava o oficial de justiça e havia uma divisória de madeira que separava a área dos espectadores, pois as sessões eram públicas. Diante da divisória havia um espaço para as testemunhas e ao lado dos juízes, mais abaixo, ficavam sentados os homens do júri.

[Natalia Viana]
Antes de começar, o ministro da igreja da cidade de Salém fez uma reza. Eu imagino o silêncio sepulcral enquanto a própria Rebecca Nurse, sentada em um canto, vigiada pelos guardas e com as mãos atadas por correntes, trataria também de conversar com Deus.

[Natalia Viana]
Pra dar início ao julgamento, o oficial de justiça leu o termo de acusação contra a Nurse, e perguntou a ela: “como você será julgado?” Ela respondeu conforme ditava a tradição:

[Rebecca Nurse]
Por Deus e pelo país.

[Natalia Viana]
Então, as testemunhas de acusação foram chamadas uma a uma. Sentadas na plateia, muitas das meninas afligidas caíram em surtos ao longo da tarde.

[Natalia Viana]
Essa cena, assistida pela primeira vez pelos juízes, a poucos metros da sua nobre presença, foi chocante.

[Natalia Viana]
Naquele dia, as acusadoras, em especial a Annie Putnam Jr., mudaram seu depoimento e passaram a acusar Rebecca Nurse também de ter cometido assassinatos sob a forma espectral. Annie Putnam disse que a alma de Nurse tinha confessado o assassinato de várias crianças, em especial, ainda bebês que haviam morrido na comunidade, algo comum na época de péssima higiene e parcos com os conhecimentos medicinais.

[Natalia Viana]
Ela relatou, abre aspas:

[Annie Putnam Jr.]
“Logo depois apareceram para mim seis crianças enroladas em lençóis que me chamaram de tia, o que me deixou muito aflita. Elas disseram que eram os filhos de minha irmã Bakers, de Boston, e que a senhora Nurse, uma senhora surda de Boston, havia assassinado elas.

[Natalia Viana]
A defesa de Nurse, por sua vez, foi feita apenas pela família. Não existia uma defensoria pública nem advogado. Eles entregaram muitos documentos que ficaram para posteridade e que podemos analisar agora. Um documento relata o dia em que o filho de Rebecca e o seu genro foram até a casa dos Putnam para reunir informações. Foi então que eles descobriram que a Annie Putnam Jr. não tinha dito o nome do espectro, mas que os nomes foram sugeridos pela sua mãe e também por uma outra acusadora, a menina Macy Lewis. O documento diz que durante a visita, as duas se acusaram mutuamente de terem sugerido o nome da Rebecca Nurse.

[Natalia Viana]
Outro documento que vale citar relata o que ouviram dois vizinhos que tavam naquela mesma noite bebendo na taverna dos Ingersoll. Estavam ali com eles a dona da taverna, a senhora Ingersoll, e algumas das meninas adoentadas.

[Natalia Viana]
A senhora Ingersoll disse que não acreditava nas acusações e foi só ela falar isso que os surtos das meninas começaram: “ali está ela, a velha bruxa, vou fazer te enforcarem”, etc, etc. A dona da taverna ficou tão irritada que gritou com as meninas e segundo o documento elas pararam na hora. Foi só ralhar. Uma delas ainda disse que fazia isso por diversão porque não tinha outra diversão por ali.

[Natalia Viana]
Há ainda mais um documento impressionante. É uma petição com 39 nomes de vizinhos que defendiam por escrito e a grande risco pessoal a índole de Nurse. As assinaturas foram recolhidas quando ela já estava presa entre 24 de março e 13 de maio, e representavam famílias diferentes, incluindo alguns dos Putnam.

[Natalia Viana]
Os signatários diziam, abre aspas, “podemos testemunhar a quem possa interessar que a conhecemos há muitos anos e de acordo com nossas observações, sua vida e seu comportamento eram de acordo com sua profissão de fé e nunca tivemos nenhum motivo para suspeitar das coisas de que ela é agora acusada”.

[Natalia Viana]
Mas contra Rebecca Nurse havia uma prova. Uma prova concreta que era descrita em detalhes nos livros que compunham a jurisprudência da época. A marca de bruxa.

[Natalia Viana]
A marca de bruxa era conceitualizada em obras como o Malleus Maleficarum e o Countrey Justice que já mencionei. Basicamente, acreditava-se que o diabo deixava uma marca na pele daquelas que eram suas servas. Em especial no lugar onde seres diabólicos sugavam o sangue dessas bruxas para se alimentarem. O autor do Countrey Justice recomendava que fossem realizados exames físicos meticulosos.

[Natalia Viana]
Deveriam, abre aspas, “buscar alguma teta grande ou pequena nos seus corpos em algum lugar secreto onde ele as chupa. E além de as chupar, o diabo deixa outras marcas nos seus corpos, algumas vezes como uma pinta azul ou vermelha, como uma mordida de mosquito. Algumas vezes a carne fica murcha ou oca. Essas marcas do diabo podem desaparecer, mas voltam depois. E essas áreas são insensíveis e se cutucadas não sangrarão e frequentemente ficam nas partes secretas e, portanto, requerem uma busca diligente e cuidadosa”.

[Natalia Viana]
No dia 2 de junho de 1692, Rebecca Nurse foi submetida a esse exame. Para fazer a vistoria, foram selecionadas mulheres dos povoados vizinhos. E eu quero te avisar que o relato histórico é pesado.

[Natalia Viana]
Elas relatam ter descoberto, abre aspas, “uma excrescência da carne preternatural, entre o pudendo e o ânus parecido com uma teta e não comum em mulheres”, fecha aspas. Isso mesmo. Essa idosa foi submetida a uma revista íntima diante da lei.

[Natalia Viana]
Mesmo detida, limitada por correntes e assim violada, ela conseguiu explicar que a protuberância era consequência de problemas que teve nos seus muitos trabalhos de parto. O mais provável é que se tratasse de um caso de útero rebaixado ou caído, algo que pode acontecer entre mulheres que tiveram vários partos. Mas ela não foi ouvida e o pior, naquela mesma tarde, voltou a ser examinada e então as examinadoras encontraram uma marca diferente ali mesmo naquele lugar tão íntimo.

[Natalia Viana]
Agora, em vez de uma protuberância, disseram ter encontrado uma pele ressecada. O que só aumentou sua certeza de que se tratava de uma marca feita pelo diabo. Afinal, era o que dizia o livro. As marcas tentavam se escamotear, ardilosas como o demônio.

[Natalia Viana]
Rebecca Nurse relatou depois que uma das examinadoras, uma enfermeira que conhecia problemas de parto, não concordou com as demais e, com base nisso, a acusada fez uma petição aos juízes pedindo para ser reexaminada. Mas nunca houve resposta.

[Natalia Viana]
Agora, se teve um momento crucial durante o julgamento de Nurse, é o que eu vou te contar a seguir. Aconteceu quando os guardas trouxeram ao tribunal uma mulher que havia confessado ser bruxa e era mantida presa junto com as demais. Seu nome era Abigail Hobbs. Nurse protestou:

[Rebecca Nurse]
Por que vocês estão trazendo ela? Ela é uma de nós. É de nossa companhia.

[Natalia Viana]
O que ela quis dizer, segundo um documento de próprio punho, é que Abigail também era uma prisioneira e, portanto, suas palavras não eram válidas no tribunal. Mas, para aqueles que queriam condenar a anciã, sua frase soou como uma confissão de que eram bruxas.

[Natalia Viana]
Os jurados se retiraram para uma sala adjacente, o que deve ter parecido uma eternidade para Rebecca Nurse. E ela continuou ali, sentada, perdida no seu silêncio estarrecido. Quando voltaram, os jurados sentaram nos bancos um pouco abaixo do juiz William Stoughton.

[Juiz Stoughton]
O júri chegou ao veredito?

[Jurado]
Sim, vossa excelência.

[Juiz Stoughton]
E qual é o veredito?

[Jurado]
Inocente.

[Natalia Viana]
Um grito cortou o ar, depois outro e outro. As afligidas se atiraram no chão e passaram a se contorcer causando um enorme alvoroço. O caos foi tão grande que a sessão foi suspensa por alguns minutos. Um dos juízes disse, ao deixar o recinto, que não estava feliz com a decisão. E outro disse que iriam indiciá-la de novo, aquela velha bruxa.

[Natalia Viana]
Quando a sessão foi reiniciada e os juízes retomaram seus lugares, o juiz William Stoughton tomou para si a tarefa de pressionar os jurados.

[Juiz Stoughton]
Eu não imporei nada ao júri. Mas vocês chegaram a considerar uma expressão bem marcante que a prisioneira disse quando estava na tribuna?

[Jurado]
Que expressão?

[Juiz Stoughton]
Ela disse, e eu repito, sobre a bruxa confessa Abigail Hobbs, “ela é uma de nós”.

[Natalia Viana]
Os jurados, quem sabe, não tinham se atentado para aquela frase que escapou dos lábios de Rebecca. Diante de um homem que representava todo o poder e toda a justiça, pediram permissão para voltarem para a sala de deliberação.

[Juiz Stoughton]
Permitido.

[Natalia Viana]
Minutos depois, um dos jurados foi até a Nurse para pedir à anciã que lhe explicasse o que ela quis dizer. Mas não teve resposta. Só conseguimos entender o que aconteceu ali, porque dias depois, a Rebecca fez outra petição pedindo para se explicar melhor.

[Rebecca Nurse]
Eu, sendo um pouco surda, e cheia de tristeza, e ninguém me informou sobre como o júri estava interpretando minhas palavras, e portanto eu nunca tive uma oportunidade de explicar o que quis dizer, quando disse que elas eram de minha companhia.

[Natalia Viana]
Os jurados voltaram à sala de deliberação, e só depois de mais um longo tempo, retornaram pro seu assento.

[Juiz Stoughton]
Como o júri julga a acusada?

[Jurado]
Culpada, vossa excelência.

[Natalia Viana]
Rebecca Nurse saiu arrastada da corte em grilhões. Mas essa foi apenas a primeira das condenações. Horas mais tarde, ela foi levada pro centro comunitário, onde o pastor da cidade de Salém a excomungaria da igreja. Para uma mulher tão religiosa, essa deve ter sido a dor maior.

[Natalia Viana]
“Em nome da Santa Igreja e do senhor Jesus Cristo eu te pronuncio uma leprosa e pessoa imunda, e eu te proíbo de desfrutar todos esses abençoados privilégios que Deus permitiu à sua Igreja, e dos quais por tanto tempo você abusou. E assim, como uma besta imunda e inadequada para o convívio em sociedade dos filhos de Deus, eu pronuncio a partir deste momento uma pessoa excomungada de Deus e de seus fiéis.”

[Natalia Viana]
Houve um breve momento de pausa nos castigos a Rebecca Nurse. Ocorreu quando uma petição da família chegou às mãos do governador William Phipps denunciando os desmandos da corte de ouvir e determinar. Algo estava acontecendo nos subterrâneos desse processo.

[Natalia Viana]
A essa altura, e provavelmente por causa da história de Nurse, havia já alguns pastores puritanos que questionavam abertamente a admissão de provas espectrais no julgamento.

[Natalia Viana]
O debate era sério, embora pareça surreal nos dias de hoje, e caminhava por uma linha tênue entre a discussão teológica, o debate racional e a loucura.

[Natalia Viana]
Alguns afirmavam que era possível ao diabo tomar a forma do espectro de pessoas inocentes para espalhar a confusão e o mal, e isso poderia explicar as aparições na forma dessa santa senhora. Outros defendiam que isso era impossível até mesmo para o diabo. Era essa a teoria abraçada pelos juízes Jonathan Corwin, John Hathorne, pelo advogado geral Thomas Newton e pelo Juiz-chefe William Stoughton.

[Natalia Viana]
Mas mesmo os homens leigos começavam a questionar as evidências apresentadas contra tantas acusadas. As contradições, mudanças de versão e fraudes descaradas começavam a correr no boca-a-boca.

[Natalia Viana]
Durante uma das audiências, por exemplo, uma mulher chamada Sarah Bibber chegou a se levantar para acusar Rebecca Nurse de estar torturando ela ali mesmo diante de todos. Ela tremia de dor e estendeu as mãos para mostrar o sangue que escorria delas. Mas alguém a viu, apertando umas tachinhas de metal entre as palmas das mãos um pouquinho antes.

[Natalia Viana]
Algo semelhante tinha acontecido durante o julgamento de Sarah Good. Uma das meninas afligidas teve um surto diante de todos. Depois de se recuperar, ela mostrou uma faca quebrada que trazia nas mãos. Ela apresentou o objeto ao júri e disse que a faca havia quebrado quando a bruxa tentou esfaqueá-la. Pouco depois, um jovem rapaz aproximou-se dos juízes e mostrou o cabo da mesma faca, dizendo que ele a quebrara no dia anterior e, por isso, jogou fora a parte de cima, na frente da menina, que, segundo os antes, se contorcia. A menina recebeu uma bronca do juiz William Stoughton, mas ficou por isso mesmo. Ela continuou sendo testemunha em outros julgamentos contra mulheres inocentes.

[Natalia Viana]
Eram informações como essas, assim como uma petição em nome da família Nurse, que chegaram às mãos e aos ouvidos do governador no final de junho.

[Natalia Viana]
A execução da pena chegou a ser suspensa por William Phipps. Entretanto, as meninas voltaram a agitar-se contra Nurse e alguns homens nobres de Salém, provavelmente os juízes que participaram de todos os procedimentos, Jonathan Corwin e John Hathorne, conseguiram convencer o governador a retirar a suspensão.

[Natalia Viana]
Sabe-se que, no dia 4 de julho, eles se reuniram naquele mesmo gramado esverdejante do campus de Harvard, na cerimônia de início das aulas. Velhos compadres, velhos companheiros, sempre encontram um jeito de chegar a um acordo de cavalheiros. Quase como um acordão com Supremo, contudo.

[Natalia Viana]
Bom, a gente está aqui num lugar… Por isso que eu faço…

[Giulia Afiune]
Tá gravando?

[Natalia Viana]
Tá. Por isso que eu faço questão de vir aqui, Giu? A gente está num lugar que é uma dessas avenidas enormes americanas. Tem um Dunkin’ Donuts, tem um Public Storag, uma loja de você guardar, enfim…

[Giulia Afiune]
Guarda móveis.

[Natalia Viana]
Guarda móveis. Você tem o Walgreens, que é como se fosse um supermercado, farmácia ao mesmo tempo. Lugar inóspito, meio vazio, não tem muita gente andando a pé, porque todo mundo só chega de carro. É um lugar bem afastado, não tem mais cara de cidadezinha inglesa, colonial. Agora aqui é onde fica pra mim a marca, o lugar mais importante que sobrevive hoje.

[Natalia Viana]
Por isso que eu te fiz andar até aqui, Giu.

[Giulia Afiune]
Tá bom. Tô curiosa, meu Deus.

[Natalia Viana]
Giu, você viu quantas pessoas tem em Salém, né?

[Giulia Afiune]
Nossa, centenas de pessoas andando na rua, todas fantasiadas, homenageando os seus ícones preferidos da cultura pop, os seus filmes relacionados com qualquer coisa de bruxaria. E aqui nesse lugar que a Natalia tá falando que é o mais importante, eu acredito nela, obviamente.

[Natalia Viana]
Ah! Tem só cinco pessoas. Ninguém vem pra cá.

[Giulia Afiune]
Tem cinco pessoas…

[Natalia Viana]
Nenhum dos tour vem pra cá. Aqui, Giu, aqui foram os enforcamentos.

[Giulia Afiune]
Nossa. Tem uma árvore no meio. É uma árvore que deve ter uns três metros, talvez. A gente tá no outono. A cor das folhas dessa árvore já tá amarela, já tá ficando amarelada, né? Isso acontece aqui na Nova Inglaterra no outono. Embaixo dessa árvore tem as palavras “we remember”, que significa “nós lembramos”.

[Giulia Afiune]
De um lado tem a data escrita numa pedra “1692” e do outro lado, deixa eu ver o que que tá escrito… Eu tô atravessando de um lado pro outro. Agora cheguei do outro lado, tá escrito “Proctor’s Ledge”. Então é só isso. Tem uma árvore no meio, tá escrito “nós lembramos”. E aí tem assim um semicírculo, com um murinho de pedra e o nome das pessoas que foram enforcadas nesse lugar no ano de 1692.

[Giulia Afiune]
E aí por conta do Halloween, eu imagino que isso não seja assim, não tenha esse visual o tempo todo, mas tem algumas flores embaixo do nome de cada uma dessas pessoas, mas assim, algumas mesmo, assim, duas, três flores, tem algumas velas e… E é só isso.

[Natalia Viana]
Vamos passar pelo nome delas, mas antes disso eu queria só te dizer que é interessante a gente ver a distância entre aqui. A gente acabou de caminhar, eram acho que, sei lá, um quilômetro e meio, dois quilômetros entre aqui e onde ficava o Town Hall e onde ficava a casa de um dos julgadores, ou seja, os enforcamentos eram feitos num lugar mais afastado da cidade.

[Natalia Viana]
Nesse pedaço esquecido de Salém, um pouco mais que um montinho de terra, Rebecca Nurse encontrou seu fim. Ela foi enforcada no mesmo dia que Sarah Good e outras três mulheres acusadas de bruxaria. Vamos relembrar seus nomes. Elizabeth Howe, Susannah Martin e Sarah Wildes. Era 19 de julho de 1692. Um mês antes a primeira condenada, Bridget Bishop, havia sido enforcada.

[Natalia Viana]
Já sobre Nurse, a família toda deve ter acompanhado o corte e chorado a matriarca assassinada.

[Natalia Viana]
Historiadores acreditam que o seu corpo, enterrado numa cova de indigentes, foi desenterrado e levado para a propriedade da família. A revolta seguiu por séculos, atravessou gerações. Foram os Nurse os primeiros a exigirem que sua mãe fosse oficialmente inocentada na justiça americana, depois da febre das bruxas de Salém ter acabado, enfim. Porque uma hora, até o pior dos pesadelos acaba.

[Natalia Viana]
Mas eu me adianto. Na verdade, a morte dessas seis mulheres não foi o bastante para que o pânico arrefecesse. As acusações continuaram.

[Natalia Viana]
Naquele ano de 1692, três pessoas foram acusadas no mês de fevereiro e três em março, incluindo Nurse. Depois, 22 pessoas foram acusadas em abril. Os afligidos também se espalharam como fogo.

[Natalia Viana]
Quando começaram os julgamentos da Corte de Ouvir e Determinar, já havia 22 comunidades afetadas, nas quais acreditava-se que bruxas estavam matando os animais, as crianças e os bebês. 75 pessoas afirmaram terem sido enfeitiçadas. Quando chegamos ao primeiro julgamento, no dia 27 de maio, havia 42 pessoas acusadas de serem bruxas. Quando terminaram os julgamentos em julho, eram 71 pessoas acusadas.

[Natalia Viana]
Durante todos esses anos tentando entender o que aconteceu em Salém, nenhum livro, nenhum especialista iluminou meu caminho melhor do que a pensadora feminista italiana Silvia Federici. Na sua principal obra, o livro “Calibã e a Bruxa”, publicado em 2004, Federici adota conceitos marxistas para investigar por que, entre os séculos XVI e XVII, houve tantos feminicídios em massa promulgados pelo Estado em diferentes países europeus e nas colônias.

[Natalia Viana]
A Silvia elaborou uma tese pioneira que associa a caça às bruxas no final da era feudal e o começo do capitalismo. No século XVII, na Inglaterra, ocorreram os cercamentos de terras públicas, uma privatização de terras que eram coletivas e sempre tinham servido a todos. Elas garantiam que todo mundo tinha o que comer.

[Natalia Viana]
Então, a pobreza se espalhou e atingiu principalmente as mulheres, em especial as mais velhas, que não tinham mais uma função social. Elas se tornaram um incômodo.

[Natalia Viana]
Nesse trajeto, ocorreu também um processo de repressão do corpo feminino e da participação das mulheres na esfera social.

[Natalia Viana]
Para que nascesse uma classe trabalhadora assalariada, argumenta Federici, era preciso ter um trabalho doméstico e não recompensado que garantisse a reprodução simbólica e também física dos homens trabalhadores, os futuros proletários. Esse trabalho doméstico não remunerado é feito pelas mulheres até hoje. Foi nessa transição que se deu a caça às bruxas.

[Natalia Viana]
Esse trecho eu retirei do livro “Mulheres e a Caça às Bruxas”, publicado pela editora Boitempo, que é um apanhado mais curto dos principais conceitos de “Calibã e a Bruxa”: ” A caça às bruxas instituiu um modelo de terror contra todas as mulheres, do qual emergiu um novo modelo de feminilidade a que as mulheres tiveram que se conformar para serem socialmente aceitas durante o desenvolvimento da sociedade capitalista: a feminilidade assexuada, obediente, submissa, resignada à submissão ao mundo masculino, aceitando como natural o confinamento a uma esfera de atividades que foram completamente depreciadas no capitalismo”.

[Natalia Viana]
O livro “Mulheres e a Caça às Bruxas” é um livro pequenininho, de bolso. Quem sabe, pensado nos mesmos moldes do Malleus Maleficarum para combatê-lo veementemente 600 anos depois.

[Silvia Federici]
O Malleus Malleficarum foi um texto fundamental, não? É muito importante aqui refletir que o Malleus Maleficarum é publicado no mesmo ano em que os barcos de Colombo saem para a conquista da América. É muito interessante essa coincidência.

[Silvia Federici]
E também o Malleus, outra coincidência é que ele é publicado em um momento no qual se cria a imprensa. Então isso permitiu que ele fosse duplicado em milhares e milhares de pequenos livretos. Eu vi em uma cidade americana uma cópia dele, que poderia ser assim um pocket book.

[Silvia Federici]
Então, ele foi muito importante porque deu como o fundamento de uma visão misógina, certo? E por que são as mulheres mais facilmente seduzidas pelo demônio? Ele diz que é porque as mulheres não são completamente seres humanos. São, assim, quase animais, dominadas pela paixão, pela luxúria, sabe? Não têm razão, racionalidade, são um povo de pessoas sem racionalidade, né?

[Natalia Viana]
Eu conheci a Silvia Federici durante uma visita que ela fez ao Brasil em 2023. Marcamos uma entrevista no restaurante da Bela Gil, na Vila Madalena, por isso você ouve esse barulho no fundo. Como a gente conversou em espanhol, a entrevista é dublada pela Stela Diogo para você poder ouvir melhor as respostas.

[Natalia Viana]
Ela começou me contando como tem se dedicado a pesquisar as histórias de mulheres que foram vítimas da caça às bruxas nos séculos XVI e XVII.

[Silvia Federici]
Então, queremos que haja uma continuidade entre a história das mulheres e a nossa. E por isso compreender também… Temos visto que a história da Caça às Bruxas foi pior do que esquecida. Ela foi transformada em uma lenda, uma coisa… muito grotesca.

[Silvia Federici]
Nos lugares onde mulheres foram torturadas de maneira atroz, tem lojas vendendo bonequinhas, que reproduzem toda a imagem misógina dos séculos 16 e 17. Então decidimos que, olha, basta. 

[Silvia Federici]
Porque a caça às bruxas se dá em um contexto em que há outras leis muito feias, tem leis sobre decapitação ou pena de morte para mulheres que cometem infanticídio. O que se vê no período da caça às bruxas é uma transformação na relação do Estado com as mulheres, e sobretudo com as mulheres pobres, proletárias, as mulheres camponesas, cuja causa da pobreza é parte de um projeto de disciplinamento mais amplo das mulheres.  

[Silvia Federici]
Mas eu acredito nos movimentos feministas, na luta contra a violência machista e a violência estatal, que são muito conectadas. É uma questão muto séria. Algumas companheiras dizem: “o corpo é um território, e defender o nosso corpo é o primeiro passo para defender nosso território”, certo? 

[Natalia Viana]
Eu perguntei a ela especificamente qual era a sua análise sobre a caça às bruxas de Salém. Quais eram os fenômenos sociológicos ou históricos que explicavam o que aconteceu…

[Silvia Federici]
Sim, elas foram, como se diz, foram instruídas né? Para que soubessem o que dizer no tribunal.

[Natalia Viana]
Simples assim. Para Silvia Federici, uma das maiores autoridades no papel histórico da caça às bruxas, as meninas de Salém foram instruídas pelos seus patriarcas para acusarem dezenas de pessoas inocentes que terminariam enforcadas.

[Natalia Viana]
Mas será que existem bases documentais para chegar a essa conclusão? Vamos descobrir no episódio final dessa série.

[Natalia Viana]
Hoje ficamos por aqui, mas na próxima semana vamos entender o que aconteceu a seguir na nossa história de terror real.

[Natalia Viana]
Se você está gostando do podcast, não esquece que você pode consultar todos os documentos no nosso site e você também pode apoiar o nosso trabalho para que a gente possa fazer mais podcasts com apenas 20 reais mensais. Vai lá: apoie.apublica.org

[Natalia Viana]
Caça às Bruxas é uma produção original da Agência Pública de Jornalismo Investigativo.

[Natalia Viana]
Esse podcast foi dirigido por mim, Natalia Viana. Eu fiz a pesquisa histórica e a reportagem em colaboração com a Giulia Afiune, que também captou os áudios em Salém. Eu também escrevi os roteiros dos episódios com a colaboração da Sofia Amaral. A Sofia Amaral também coordenou a produção da série, com apoio da Stela Diogo e da Rafaela de Oliveira.

[Natalia Viana]
Tanto a narração quanto as cenas de dramaturgia foram gravadas no estúdio da Agência Pública, com trabalhos técnicos de Stela Diogo e Ricardo Terto. A Mika Lins fez a direção de narração e de dramaturgia. O desenho de som foi feito por Ricardo Terto, que também fez a edição e finalização dos episódios. A trilha sonora original é de Paulo Sartori, com trilhas adicionais de Epidemic Sound. A identidade visual é do Matheus Pigozzi.

[Natalia Viana]
Nesse episódio tivemos, em ordem de aparição: Bel Kowarick como Rebecca Nurse; Rodrigo Scarpelli como Israel Porter; Gabriela Westphal como Annie Putnam Junior; Silvia Suzy como Annie Putnam Senior; Diego Machado como o Juiz Stoughton; e Ricardo Terto como o Jurado.

[Natalia Viana]
Registro aqui os nossos agradecimentos à Lucretia Slaughter, à Witch City Walking Tours, que liberou o tour com o Sean em Salém para a gente usar nesse podcast, ao Peabody Essex Museum e à Phillips Library, além do Noah Friedman-rudovsky, meu grande amigo que sempre me acolhe quando eu vou para os Estados Unidos, e aos aliados. Graças a vocês, esse podcast e outros podem acontecer.

[Natalia Viana]
Homenageamos também todas as mulheres que morreram como bruxas e as suas filhas, netas e descendentes. A sua memória não será esquecida.

Natalia Viana/Agência Pública
Natalia Viana/Agência Pública
Natalia Viana/Agência Pública

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