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Reportagem

Obama entre nós: Por que os Estados Unidos apostam no Chile

Em janeiro passado, Barack Obama surpreendeu com o anúncio de sua primeira viagem oficial à América Latina. Mais surpreendente era que Chile estava entre os três países eleitos.

Reportagem
22 de março de 2011
17:04
Este artigo tem mais de 13 ano

O telefone da presidente Michelle Bachelet tocou quando ela estava em Pucón, rumo à sua casa de veraneio no lago Caburgua. Era 30 de janeiro de 2009 e do outro lado da linha ela foi surpreendida por Barack Obama. A ligação foi divulgada pelo palácio de La Moneda através de um comunicado oficial e virou notícia tanto nos meios chilenos quanto estrangeiros: o novo presidente dos EUA convidava Bachelet a Washington.

No entanto, os telegramas obtidos Wikileaks relatam que o que foi percebido como uma honraria pode ter sido na verdade um mal entendido. “Os chilenos parecem haver interpretado um simples telefonema entre os presidentes Bachelet e Obama como um firme convite para que Bachelet se reúna com Obama em Washington no futuro próximo”, descreve o telegrama Nº 193.428, que resume a visita do subsecretário-adjunto do Departamento de Estado para o Hemisfério Ocidental, Christopher McMullen, em fevereiro de 2009.

O documento afirma que o Chile estava ansioso por concretizar a visita, mas o diplomata americano sugeriu aos seus anfitriões adiá-la um pouco, tentando demonstrar que Obama estava concentrado na crise financeira. A mensagem não foi compreendida, porque o diretor de América do Norte do Ministério do Exterior, Carlos Appelgren, respondeu que a ligação havia sido tão positiva que os chilenos não queriam parecer mal-educados diante do convite de Obama.

Ao final, Bachelet viajou aos EUA em junho daquele ano e o mal entendido não passou de uma anedota.

Mas a verdade é que ao analisar os 1.600 telegramas do Departamento de Estado sobre o Chile, aos quais o Ciper teve acesso, se entende que não era descabido esperar isso de Washington. Os mesmos documentos dão pistas sobre a pergunta que muitos analistas têm feito esses dias: por que Obama elegeu o Chile entre os três países que visitará na sua primeira viagem oficial à América Latina – junto com Brasil e El Salvador?

Embora a relação tenha sido historicamente boa, não é óbvia a importância que a Casa Branca dá ao Chile.

Para além das palavras paternalistas, os documentos secretos revelam que o Chile tem sido para os Estados Unidos algo mais que um país pequeno que soube consolidar sua democracia e a estabilidade econômica.

Um informe preparado pela embaixada em Santiago para a participação do vice-presidente de Obama, Joe Biden, na Cúpula Progressista de março de 2009, em Vinha del Mar, resume bem a missão da diplomacia americana no país:

-Um de nossos principais objetivos no Chile tem sido impulsionar seu papel de liderança na América Latina e para além do hemisfério – através de instrumentos diplomáticos, militares e econômicos. O Chile tem sido pró-ativo e útil nas questões nucleares relativos ao Irã na Agência Internacional de Energia Atômica e um valioso colaborador nos fóruns da APEC y OMC. O Chile também é um importante sócio nos esforços de manutenção da paz.

O documento elogia a polícia chilena e a sua grande capacidade de treinamento, o que poderia ser replicado “desde o Paraguai até a América Central – e eventualmente mais longe-, no Afeganistão e no Oriente Médio”. Também diz que Bachelet buscava mudar a política dos Estados Unidos em relação a Cuba, trabalhando por uma abertura maior deste país, pois ela sabia “de primeira mão as dificuldades de lidar com o regime de Castro” – o documento se refere à polêmica pela divulgação de uma conversa privada entre ela e o líder cubano.

Inovação, educação, energia e meio ambiente aparecem como os “desafios do século 21” na agenda bilateral.

No se trata de uma declaração isolada, e tampouco foram estes os únicos âmbitos nos quais os Estados Unidos têm buscado potencializar a liderança do Chile.

Se o telegrama anterior leva a assinatura do embaixador Paul Simons, já em 2006 o embaixador Craig Kelly havia comentado na Academia Nacional de Estudos Políticos e Estratégicos do Ministério da Defesa que o Chile deveria buscar uma liderança mais ativa na região e no resto do mundo.

“O acordo recente com o Peru para estabelecer forças de paz conjuntas e a defesa que faz o chanceler Foxley de maiores laços econômicos e comerciais entre a América Latina e Ásia são bons exemplos de liderança chilena. Mas se pode alcançar ainda mais e o embaixador e os oficiais da embaixada voltarão ao tema nos próximos meses”, diz o telegrama Nº 85.794.

Apesar de ser recorrente o elogio à presença chilena nas forças de paz, isso não reduziu o interesse dos EUA em manter a parceria no negócio de armamentos. Em 2009, a embaixada calculava que o potencial de gastos em aquisições militares pelo Chile para os anos seguintes poderia chegar a 1 bilhão de dólares.

Tudo contra Chávez

Por que interessa aos EUA a liderança chilena? Em grande parte porque durante a última década, Washington tem visto como governos de esquerda têm se consolidado na região, ameaçando um valor fundamental para os americanos: o livre comércio.

Ao mesmo tempo, os Estados Unidos consideram o Chile um “líder global em liberalização comercial” e vêem o tratado de livre comércio que entrou em vigor em 2004 como “a pedra angular” da relação bilateral, graças à qual as trocas comerciais entre os países tem aumentado em mais de 200%.

É esse modelo que os Estados Unidos querem promover no resto da região.

Em um almoço com o conselheiro político da embaixada em 2006, o diretor para América do Norte do Ministério do exterior, Carlos Appelgren, e outro diplomata chileno comentaram que o Chile preferia uma “liderança passiva”, discreta, para não incomodar os países vizinhos. O interlocutor americano respondeu que “as propostas de livre mercado do Chile, o modelo democrático – e as soluções que trouxeram ao seu povo – se contrapõem às apostas populistas falidas e dificilmente podem ser qualificadas de intervencionistas. O Chile pode liderar com seu exemplo e com suas ações”.

Como pano de fundo sempre aparece a o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, como o modelo oposto, negativo.

Sob o título “O modo Chileno de fazer as coisas”, um telegrama confidencial de 2007 reproduz uma conversa na qual o embaixador Kelly diz ao então ministro de Defesa José Goñi que “os Estados Unidos crêem que Chávez é uma preocupação, devido à sua péssima políticas econômica, sua proximidade com o Irã, à repressão à liberdade de expressão e à oposição. Isso reforça a importância de Chile como um líder regional”. Ele conclui que, ao melhorar suas relações com os países vizinhos, a liderança do Chile promove a estabilidade regional.

A relação com Chávez foi particularmente dura durante a administração Bush.

Em junho de 2006, o embaixador Kelly enviava o telegrama  Nº 112.480 a todas as embaixadas do Cone Sul, para enfrentar ao presidente venezuelano: “Temos que convencer não só os líderes de governo, mas a sociedade civil – as pessoas comuns – de que estamos comprometidos com uma visão progressista e democrática das Américas e queremos ajudá-los a vencer seus desafios. Se pudermos, faremos ações rápidas para minar a influência de Chávez, reforçar a democracia e reafirmar a nossa própria liderança na região”, diz o documento.

Depois de fazer duras críticas ao governo de Chávez, Kelly faz uma análise sobre a importância de cada país na estratégia para enfrentá-lo, destacando-se o Brasil e o Chile, que ele vê como “alternativas exitosas”:

-Foxley busca integrar mais plenamente o Chile na economia global. O Chile não somente tem afirmado como também tem demonstrado – por exemplo, com a carta de Bachelet à líder da Câmara de Deputados Nancy Pelosi expressando o apoio chileno à ratificação dos tratados de livre comercio com Peru, Colômbia e Panamá.- a sua disposição em ajudar a elevar outros países da América Latina à esfera da economia global. Deveríamos buscar outras formas de entregar ao Chile a liderança de iniciativas importantes, mas devemos evitar que isso seja visto como se eles fossem nossas marionetes ou substitutos.

Na época, os Estados Unidos já sabiam que não podiam contar com o Chile para todas as horas. Ainda mais depois que o ex-presidente Ricardo Lagos se opusera no Conselho de Segurança da ONU, em 2003, à intervenção no Iraque proposta por Bush. Foi um dos episódios mais duros da relação bilateral recente.

No entanto, a sucessão de ministros democrata cristãos no Ministério das Relaciones Exteriores assegurava a Washington certa aversão às políticas de Chávez. O telegrama Nº38.327, de outubro de 2005, afirmava que embora Bachelet fosse de centro-esquerda, “o governo do Chile compartilha nossa frustração com o comportamento do líder da Venezuela, particularmente com suas ações não democráticas, e está preocupado de que sua retórica e suas ações (especialmente em relação à Bolívia) possam ser desestabilizadoras para a região”. Como exemplo, o telegrama relata que o chanceler Ignacio Walker havia se reunido com um grupo de opositores de Chávez em Santiago.

Dois anos mais tarde, em um telegrama que relata as despedidas do embaixador Kelly, Foxley – considerado pró-americano pela embaixada- assinala que Bachelet está reticente a criticar Chávez ou Castro, “mas está cada vez mais convencida de que o Chile tem um papel a cumprir mostrando que o caminho para a democracia e a prosperidade é digno de emulação no hemisfério”.

Segundo o documento, isso foi reconhecido pela própria Bachelet, que disse que o “Chile tem sido menos tímido ao falar sobre como a sua trajetória econômica tem funcionado” e depois relatou como o governo chileno tem promovido o livre comércio na região. Essa postura, segundo o embaixador, é fortemente apoiada pelos Estados Unidos.

Bachelet era considerada uma esquerdista moderada por Washington, uma dualidade que poderia ser muito útil na hora de exercer um papel de liderança na região, pois despertava simpatia em presidentes como Chávez, Evo Morales e Rafael Correa. Mas esse papel era também exercido em sentido contrario, tentando fazer entender aos Estados Unidos que não devia demonizar a todos os governantes de esquerda. Uma prova disso foi registrada em janeiro de 2009, durante um almoço com o secretário de Estado adjunto para Assuntos do Hemisferio Ocidental, Arturo Valenzuela, no palácio de La Moneda:

-A presidenta Bachelet destacou a necessidade de entender os matizes dos líderes da América Latina e seus países em lugar de classificá-los como “populistas” ou “pró-ocidente”.

Piñera: “Um esqueleto no armário”

A posse de Barack Obama diminuiu as fricções que a Casa Branca teve com os governos de esquerda na América Latina, mas não as eliminou. É por isso que o informe preparado para Arturo Valenzuela, em janeiro de 2010, destaca que durante a administração Bachelet se desenvolveu um compromisso conjunto em temas regionais e que como presidenta temporária da Unasur ela conseguiu abaixar o tom para o primeiro encontro que entre Obama e os líderes regionais antes da Cúpula das Américas de abril de 2009.

Naqueles dias, outro telegrama relatava que quando nasceu a Unasur, no ano anterior, Bachelet havia evitado que esse organismo se transformasse em um fórum anti-EUA, algo altamente valorizado por Washington.

Ainda assim, o governo de Obama estava consciente de que o apoio de Bachelet não era incondicional: “Chile e Estados Unidos compartilham do mesmo ponto de vista em muitos temas, mas Bachelet deixou claro que o Chile não segue cegamente os Estados Unidos aonde vá. Durante a assembleia geral da ONU de 2008, Bachelet disse que os Estados Unidos e o Chile eram ‘amigos políticos’, mas criticou os Estados Unidos pelo seu papel em precipitar a crise financeira. Ela repetiu a mesma coisa em outros eventos públicos”.

Durante os últimos meses da administração Bachelet, a embaixada dos Estados Unidos enviou a Washington numerosos telegramas analisando a campanha presidencial e prevendo a vitória de Piñera. Em um deles, perfilou duramente o candidato, dizendo que tinha “um esqueleto no armário”, ao recordar a multa por ter vendido suas ações na companhia aérea LAN, as acusações de mau uso de fundos no Banco de Talca, e o episódio de espionagem (“Piñeragate”). Ele também é retratado como alguém que assume riscos.

No final de fevereiro de 2010 a embaixada enviou um informe ao Departamento de Estado para preparar a visita de Hillary Clinton, que chegou no Chile pouco depois do terremoto. No telegrama Nº 250.820, um dos últimos do WikiLeaks, se reflete a confiança de que a nova administração manterá os laços criados até então:

-Os parâmetros gerais da política externa chilena devem se manter estáveis com Piñera, quefala inglês com habilidade, tem experiência no exterior, expertise econômica e uma postura pró-EUA/pró-livre comércio na sua diplomacia. Os assessores de Piñera nos disseram que a nova administração priorizará sua relação com os Estados Unidos e a América Latina. Alguns observadores têm especulado que Piñera tem menos paciência com os populistas da região do que Bachelet.

As coisas têm saído conforme o esperado. É provável que a influência de Piñera junto aos seus colegas na região seja menor do que a de Bachelet, já que as diferenças ideológicas são maiores. Mas de todo modo o presidente tem mantido relações cordiais com os países vizinhos, e só tem criticado Hugo Chávez.

Na sua primeira visita oficial à região, Obama tenta mostrar que a América Latina é importante para os Estados Unidos. Ao incluir o Chile, dá sinal de que o país segue sendo uma peça prioritária nesta estratégia. Ele se reuniu com Piñera pela primeira vez em abril do ano passado, na Cúpula de Segurança Nuclear, em Washington. Paradoxalmente, o uso de energia atômica para a geração de eletricidade é o tema que ameaça roubar os holofotes nesta visita, em Santiago.

Em janeiro passado, Barack Obama surpreendeu com o anúncio de sua primeira viagem oficial à América Latina. Mais surpreendente ainda era que Chile estivesse entre os três países eleitos, ao lado de Brasil e El Salvador. Desde então, diversos analistas têm tentado responder à mesma pergunta: Por que o Chile? Os 1.600 telegramas do Departamento de Estado obtidos pelo WikiLeaks revelam que o Chile tem sido mais que um país pequeno e democrático.

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