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Forças de paz da ONU no Haiti, comandadas pelo Exército brasileiro, não dão assistência a garoto de 14 anos estuprado repetidamente por policiais paquistaneses. “Os soldados precisam ter vergonha do que fizeram”, diz irmã

Reportagem
25 de novembro de 2014
09:00
Este artigo tem mais de 9 ano

Por Amy Bracken*

A Place d’Armes, praça localizada no centro da cidade de Goinaves, no norte do Haiti, é movimentada por comerciantes e grupos de amigos reunidos para descansar e socializar. Mas ali perto há uma área é menos frequentada – um trecho de tijolos cheios de arame farpado e pilhas de lixo.

“Foi ali que aconteceu, por lá”, diz meu companheiro.

O local abrigava um posto do contingente das tropas de paz paquistanesas – uma unidade policial das Nações Unidas que faz parte da missão de paz comandada pelo Brasil. Eles deixaram o lugar desde a chegada das tropas argentinas, que se instalaram em outra parte da cidade.

Segundo o relato de moradores da região foi ali que, no início de 2012, eles testemunharam o estupro de um garoto de 14 anos, portador de deficiência mental. O adolescente foi violentado por policiais das Nações Unidas em um carro oficial. Os fatos foram esquecidos por algumas pessoas na Place d’Armes. Para outros, a história ainda está viva.

Atrás desse arame farpado, na Place d’Armes na cidade de Gonaives, no Haiti, Jean, 14, foi abusado sexualmente durante anos por policiais da ONU
Atrás desse arame farpado, na Place d’Armes na cidade de Gonaives, no Haiti, Jean, 14, foi abusado sexualmente durante anos por policiais da ONU

O jovem Adler Delismat conserta telefones celulares. Segundo ele a vítima – vamos chamá-lo de Jean – era “um dos garotos que andam por aqui”. “Foi abandonado pela família. Os soldados sempre davam a ele algo para comer. Ele lustrava sapatos dos oficiais e eles lhe davam um pouco de dinheiro. Até que em uma manhã, nós soubemos que Jean havia sido estuprado pelos soldados. É inaceitável. Eu sei que a lei haitiana não permite isso.”

Tecnicamente, a lei haitiana não se aplica a missões de paz estrangeiras, de acordo com a Convenção sobre Privilégios e Imunidades da ONU.

A disciplina é uma responsabilidade do país pacificador, a menos a imunidade seja suspendida pelo Secretário Geral, o que não acontece com militares e quase nunca com policiais.

Há pouco mais de uma década, as Nações Unidas intensificaram as medidas de formação e investigação para tentar resolver problemas de exploração e abuso nas suas forças de paz. Assim foi criada a Unidade de Conduta e Disciplina (CDU). Sylvain Roy, da CDU, insiste que a soberania do Estado-Membro não significa que a ONU é impotente quando se trata de disciplina. “Existe a necessidade de uma parceria”, diz ele, “que seja reconhecida pelo Estado-Membro e que nos permita abordar e tentar encontrar uma solução de forma mais abrangente.”

Em outras palavras, mesmo que a disciplina seja responsabilidade do país pacificador, a ONU pode tentar influenciar nessa decisão.

Foram anos de abusos sexuais

No caso de Jean, a ONU trouxe especialistas de Brindisi, na Itália, e de Nova Iorque para trabalhar na investigação. De acordo com oficiais das Nações Unidas que pediram para não serem identificados, o que os investigadores encontraram é muito pior do que se pensava: o abuso ocorreu por anos. Jean era passado de um contingente para o próximo.

Além disso, segundo os oficiais, foi descoberto que, quando soube que investigadores da ONU estavam a caminho, o comandante do contingente contratou um homem haitiano para levar Jean para outra cidade para escondê-lo dos investigadores.

Após a investigação, o Senado haitiano aprovou uma resolução pedindo que a ONU suspendesse a imunidade do país-membro. Os ministros da Justiça e das Relações Exteriores fizeram o mesmo pedido formalmente. “Estávamos abertos a todas as negociações para resolver o problema amigavelmente”, diz Arsene Dieujuste, o advogado da família de Jean.

Ele diz ter pressionado funcionários do governo para que eles pressionassem os agentes da ONU. Os agentes da ONU negociaram com autoridades paquistanesas, pedindo que os soldados fossem submetidos a um julgamento no Haiti com a condição de que o condenado ficasse em acomodações alternativas, e não na prisão local.

Um oficial da ONU que pediu para não ser identificado relatou estar presente em uma reunião com membros do alto escalão da organização na qual os participantes concordaram que algo dramático deveria ser feito. Suspensão de imunidade, condenação efetiva do comandante… alguma coisa. O oficial lembrou que havia um senso de determinação – alguns soldados batiam os punhos na mesa na reunião. Mas, segundo ele, a reunião foi seguida por um jantar entre o representante paquistanês para as Nações Unidas e o chefe das missões de paz da ONU. Depois disso, os esforços para que medidas exemplares fossem tomadas foram abandonadas. Seguiu-se a mesma rotina de sempre.

Afinal a corte marcial foi realizada no Haiti, com o acusado julgado e sentenciado por seus pares. O principal acusado confessou, foi expulso da corporação e condenado a um ano de prisão no Paquistão. Outros dois policiais também foram expulsos.

Nenhuma das pessoas contatadas pela reportagem, tanto na ONU quanto representantes do Paquistão, aceitaram o pedido de entrevista.

Daria para responsabilizar comandantes, diz CDU

Roy, da CDU, só comenta as ações da ONU para casos como este quando um comandante está envolvido. “Eu não vejo porque não se poderia solicitar responsabilização contra os comandantes das tropas” diz ele, “se temos provas… havia ordens e medidas tomadas por comandantes para interferir em uma investigação”.

Eu pergunto, “você pode ir além de solicitar?”

“Aí teríamos que entrar no relacionamento entre a ONU e o Estado-membro”, diz ele. “Mas a responsabilização pode não ser aplicada sempre, apesar da nossa crença de que poderia ser.”

Se a ONU não está satisfeita com um Estado-membro, ela pode expulsá-lo de uma missão. No entanto, segundo um oficial da organização, as missões de paz paquistanesas fazem um ótimo trabalho. Eles também são os maiores contribuidores para missões de paz, com mais de 8 mil policiais, tropas e peritos militares implantados. Embora a ONU pague os governos que contribuem em missões de paz, um funcionário diz que há uma resistência em dizer algo que ofenda aqueles que colocam seu pessoal em risco.

Para o advogado Dieujuste, não faz sentido que a ONU não seja responsabilizada. “Nós não conhecemos o Paquistão”, diz Dieujuste. “Quando vemos um carro com o símbolo da ONU, nós não sabemos se é francês ou o que é.  A ONU é a instituição. Portanto, cabe à ONU acertar as contas.”

Dieujuste está pedindo uma indenização de 5 milhões de dólares para a família de Jean. Ele considera a quantia uma maneira de iniciar as negociações e diz que o dinheiro deve corresponder à hediondez do crime. Mas cerca de 20% seria o pagamento do seu trabalho como advogado.

Sem indenização

Néumie Joseph trabalha para uma agência de proteção cidadã haitiana em Gonaives e está familiarizada com o caso de Jean. Ela diz que se os autores do crime fossem haitianos comuns, provavelmente Jean não teria uma representação adequada e o caso teria fracassado. Para ela, o público quer manter a ONU em um padrão mais elevado. “As ações de um ou dois indivíduos prejudicam a imagem da instituição”, afirma. “Os indivíduos podem ser presos, mas no caso de Jean, as pessoas precisam ver que a justiça foi feita pela instituição. A vítima precisa ser indenizada.”

De acordo com Roy, a ONU não dá indenizações em dinheiro, mas tem uma política de conectar as vítimas aos serviços da organização.

Agora Jean está sob custódia do governo haitiano, morando em um abrigo de uma organização sem fins lucrativos fora e Porto Príncipe e sem relações com a ONU. Não está claro se o Paquistão fez alguma contribuição para a família de Jean ou para o abrigo.

Com Diejuste e Junie Adain, a meia-irmã mais velha de Jean, dirigimos quatro horas para encontrá-lo. É um local pacífico, com pequenos prédios dispersos, decorado com esculturas de animais e árvores floridas. Esperamos em um quarto comum arejado e alegre, então Jean chega, sorrindo desconfiado.

Adain se aproxima do irmão cautelosamente, comentando sobre os quilos que ele ganhou. É uma coisa boa, e ele parece dizer em poucas palavras que está feliz ali. Mas Adain não está sorrindo. “Os soldados precisam ter vergonha do que fizeram”, ela diz. “Eles se aproveitaram da deficiência mental dele. Sabiam que não falaria.

E fizeram isso várias vezes. Mesmo que eles nunca paguem uma indenização, vão pagar no dia do juízo final.”

Adain diz que a família merece uma indenização por ter sido tão envergonhada. Insiste que gastaria o dinheiro para garantir que o irmão tenha uma vida boa.

Por enquanto, esse abrigo financiado por fundações parece estar finalmente proporcionando a Jean a proteção e a segurança alimentar que lhe faltaram quando criança, quando polia os sapatos dos soldados das missões de paz em troca de comida, dinheiro e amizade.

Essa reportagem foi produzida pelo site 100Reporters, em parceria com o programa The World da Public Radio International. Clique aqui para ler o original, em inglês.   

* Amy Bracken é uma jornalista freelancer baseada em Boston que sobre questões relacionadas com o Haiti

 

 

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