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Como a cidade erguida em torno da maior hidrelétrica de São Paulo exemplifica os conflitos pelo uso da água em tempo de estiagem

Reportagem
10 de março de 2015
09:41
Este artigo tem mais de 9 ano

As usinas hidrelétricas, instaladas em grandes cursos de rio por todo o País, representam a maior fatia da geração de energia no Brasil, com 62,8% de toda a capacidade instalada. Com a estiagem que acomete o País, principalmente a região Sudeste, 85% dos reservatórios estão mais baixos que em 2001, quando o país sofreu um apagão que atingiu três regiões. Afinal, quanto menos água, maior a dificuldade de produzir eletricidade: as hidrelétricas usam a força da água para movimentar suas turbinas, similares a cata-ventos, que acionam os geradores quando giram.

No ápice da crise hídrica do Sudeste – a pior “em mais de 200 anos”, segundo o professor de Hidráulica e Saneamento na Engenharia Civil da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Ilha Solteira, Jefferson Nascimento de Oliveira -, os limites da opção preferencial pelas hidrelétricas no modelo energético brasileiro se revelam. O apagão momentâneo que atingiu doze estados no último 19 de janeiro – o sistema energético é integrado, ou seja, as usinas distribuem energia para todas as regiões do país – está relacionado não apenas ao pico concentrado de consumo que teria provocado uma sobrecarga no sistema, segundo especialistas – ou uma “falha no sistema de transmissão”, de acordo com o governo – mas também ao baixo nível dos reservatórios. É o que diz o diretor do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós Graduação e Pesquisa de Engenharia, o físico Luiz Pinguelli Rosa, que defende o racionamento de energia durante a crise. “Rápido, só o racionamento, que já devia estar sendo adotado há muito tempo”, afirma.

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Segundo a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), a energia que move o país – que tem capacidade instalada de 133,9 mil MW – é proveniente de 202 usinas hidrelétricas, 1.935 termelétricas, 228 usinas eólicas, 2 usinas nucleares, 487 pequenas centrais hidrelétricas, 497 centrais geradoras hidrelétricas e 311 usinas solares.

Usina Hidrelétrica de Ilha Solteira. Foto: Agência Pública/Greenpeace/Thais Aleixo
Usina Hidrelétrica de Ilha Solteira. Foto: Agência Pública/Greenpeace/Thais Aleixo

Nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, os reservatórios estão com 17,43% de sua capacidade. No noroeste paulista, a Usina Hidrelétrica de Ilha Solteira, entre as cidades de Ilha Solteira, em São Paulo, e Selvíria, no Mato Grosso do Sul, é uma das mais atingidas. De acordo com a Área de Hidráulica e Irrigação da Unesp de Ilha Solteira, o município localizado a 680 quilômetros acumulou 36 milímetros de chuva até 22 de janeiro de 2015, ou seja, aproximadamente 15% da média histórica para o mês, que é de 232 milímetros. É a pior média pluviométrica desde 1992, quando o levantamento dos índices de chuva em Ilha Solteira começou a ser feito.

A queda do nível da água no rio Paraná levou o volume útil do reservatório a zero, ou seja, inferior a 323 metros acima do nível do mar, a cota mínima para operação, desde junho de 2014 de acordo com o site do ONS (Operador Nacional do Sistema), órgão responsável por gerenciar a produção e transmissão de energia elétrica no Brasil. O projeto de Ilha Solteira permite que essa cota desça a até 314 metros, limite mínimo de profundidade para não danificar os equipamentos. Segundo a CESP (Companhia Energética de São Paulo), a empresa estatal que administra a usina, a Hidrelétrica de Ilha Solteira gerou 1.117 megawatts (MW) em dezembro de 2014. O valor é 55% menor do que a energia gerada no mesmo mês de 2013 (2.026 MW). No mesmo período, o nível do reservatório, que era de 326,31, caiu para 320 metros. Em dezembro de 2014 e no primeiro mês de 2015, baixou ainda mais, para 318,77 metros.

Parte interna da barragem de Ilha Solteira_José Eduardo Bernardes
Parte interna da barragem de Ilha Solteira. Foto: Agência Pública/Greenpeace/José Eduardo Bernardes

Concluída em 1978, a Usina Hidrelétrica de Ilha Solteira tem capacidade de geração de 3.444 MW e é composta por 20 turbinas – hoje, por causa da estiagem, parte delas está desligada. A hidrelétrica é a maior do Estado de São Paulo e a terceira maior do Brasil. A barragem no Rio Paraná mede 5.605 metros de comprimento e o reservatório tem quase 2 mil km² de área, estocando a água do rio para a produção de energia. Nem todas as hidrelétricas utilizam reservatórios; as usinas a “fio d’água” aproveitam a velocidade do rio para gerar energia. É o caso da Usina de Jupiá, que fica a 66 quilômetros de Ilha Solteira, entre os municípios de Castilho (SP) e Três Lagoas (MS).

Juntas, a Usina de Jupiá e a Hidrelétrica de Ilha Solteira integram o Complexo Urubupungá com capacidade instalada total de 4.995 MW. As duas usinas foram construídas quase simultaneamente pela empreiteira Camargo Corrêa e ambas são geridas pela estatal paulista. À época da construção, a CESP ainda não existia, e quem tocou as obras foi a CELUSA (Centrais Elétricas de Urubupungá S.A), mais tarde incorporada a outras cinco companhias estaduais, que dariam origem à Companhia Energética de São Paulo.

O profeta das águas

A construção da Usina de Ilha Solteira modificou para sempre o rio Paraná, que passou a ser regido pela dinâmica de produção da hidrelétrica, e também a região atingida pela barragem. Segundo o Observatório Sócio-Ambiental de Barragens da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), não há relatos de pessoas que foram atingidas pela construção da barragem em Ilha Solteira, mas isso porque os impactos foram absorvidos por cidades próximas como Santa Fé do Sul e Rubinéia, esta alagada quase em sua totalidade pela barragem em 1973. O cineasta Leopoldo Nunes, que nasceu em Santa Fé do Sul conta que muitas das pessoas atingidas pelas águas do rio Paraná foram “indenizadas com merreca e se não gostou, amém”.

Ruínas da cidade de Rubinéia/SP. Foto: Agência Pública/Greenpeace/Thais Aleixo
Ruínas da cidade de Rubinéia/SP. Foto: Agência Pública/Greenpeace/Thais Aleixo

Para Leopoldo, o “impacto social, ambiental e econômico da usina foi todo negativo”, trazendo alterações “absurdas” para o microclima na região. “As chuvas não precipitam mais por ali, somente mais à frente, porque não existe mais vegetação. Acabaram com o rio, que era extremamente caudaloso, um dos sistemas mais ricos de piscicultura”, diz, contabilizando as perdas. “Só hoje, com o lago inundado, fizeram um levantamento de diversos sítios arqueológicos”, conta o autor do documentário O profeta das Águas, que narra a saga de Aparecido Galdino Jacintho, o “profeta e curandeiro” que liderou camponeses contra a barragem de Ilha Solteira e a destruição de Rubinéia e do ecossistema do rio Paraná.

Galdino acabou preso pela ditadura em 1970, acusado de curandeirismo, e grande parte da população afetada pelas cheias se deslocou para a cidade de Americana (SP), dando lugar à construção da cidade de Ilha Solteira que até hoje vive em função da usina. “Hoje, a produção de energia dá mais ou menos 80% do nosso ICMS, então o impacto de uma interrupção seria violento”, diz o prefeito de Ilha Solteira e ex-engenheiro da CESP, Bento Carlos Sgarboza (DEM).

O prefeito, os técnicos envolvidos com o funcionamento da usina, os pesquisadores que se instalaram no município, junto com a Unesp e os cidadãos locais, preocupam-se constantemente com os índices pluviométricos. O nível do reservatório tem caído cada vez mais, prejudicando também as outras atividades econômicas do município: o turismo nas praias artificiais em torno do lago, a piscicultura baseada na criação de tilápias em tanques-rede por cerca de 40 produtores (pequenos, médios e grandes) e a pesca artesanal, além de faltar água para a irrigação de plantações.

“A gente tem notado esforço da CESP para manter o controle. Até março, abril, é época de chuva, de recuperação do lago, mas provavelmente não vamos conseguir chegar no mesmo nível de outros anos. Espera-se que isso seja um fato periódico, historicamente não ocorrem duas estiagens”, diz o prefeito de Ilha Solteira Bento Carlos Sgarboza.

Em 2012, o Produto Interno Bruto (PIB) do município foi de quase R$ 1,4 bilhão, mas sua participação no PIB do Estado de São Paulo foi de apenas 0,09%. As indústrias de médio e pequeno porte (incluindo a pesqueira) respondem por 74,9% do PIB municipal e a agropecuária com apenas 2,36%. O setor de serviços contribui com 22,6% do PIB: além do turismo, o comércio é movimentado pelos mais de 3 mil estudantes instalados na cidade para frequentar os cursos da Unesp. Segundo a pesquisa “A Contribuição da Unesp para o Dinamismo Econômico dos Municípios”, realizada em 2013 por José Murari Bovo, esses alunos consumiram mais de R$ 37 milhões no município. De acordo com a Fundação Seade, Ilha Solteira despendeu R$ 22 milhões em educação e R$ 20 milhões em saúde em 2011.

Assista o vídeo e saiba mais sobre as dificuldades enfrentadas em Ilha Solteira

Sem turistas nem peixes

Segundo a Secretaria Municipal de Turismo, houve uma redução de 70% do público esperado para o verão. Com a estiagem, a água recuou 100 metros e a cidade perdeu sua principal atração: as praias artificiais com seus quiosques e atividades aquáticas.

“O turismo está parado, você não vê um jet ski andando, um barco andando, as marinas todas paradas, então o prejuízo para a região, cuja base da economia é o reservatório, torna-se incalculável. As lojas de pesca, manutenção para jet-ski e ranchos já estão sentindo”, aponta o biológo e piscicultor Emerson Esteves, que reside à margem do reservatório de Ilha Solteira, na cidade de Rubinéia.

Criação de alevinos da Piscicultura Peixe Vivo_José Eduardo Bernardes
Criação de alevinos da Piscicultura Peixe Vivo. Foto: Agência Pública/Greenpeace/José Eduardo Bernardes

O prejuízo é maior ainda para os empresários que, como ele, utilizam o reservatório da usina para a criação de tilápias em tanques-rede. Com o lago abaixo de seu nível habitual, os tanques são constantemente deslocados e em alguns pontos, a produção ficou comprometida. “O setor aquícola emprega três mil pessoas diretamente e caiu 30% em 2014. Já tivemos desemprego, queda na produção, queremos nossos direitos e assegurar uma cota mínima para o reservatório”, explica Esteves, proprietário da piscicultura Peixe Vivo. Segundo o empresário, o lago é um dos mais importantes na criação de tilápias no Brasil.

Esteves conta que depois do prejuízo causado pela barragem, os moradores que conseguiram permanecer se adaptaram, extraindo seu sustento do lago. “Quando teve o represamento, o reservatório foi um problema porque acabou com áreas de produção de alimentos. Aqui era uma grande área produtora de arroz, feijão, algodão e café. Mas com o passar dos anos o reservatório foi uma riqueza, porque a gente aprendeu a explorá-lo para o lazer, o turismo, a agricultura irrigada, a própria piscicultura. A economia da região está baseada nesse reservatório também, o que seria dessa região sem ele? Eu não consigo nem imaginar”, afirma o criador de tilápias.

Batalha judicial

A estiagem de Ilha Solteira acabou se tornando centro de uma batalha judicial entre piscicultores, a CESP e o Operador Nacional do Sistema. Segundo os empresários, o funcionamento da usina abaixo da cota 323 metros tem prejudicado a produção de peixes porque enquanto a vazão do rio na barragem continua alta, para garantir a geração de energia, a montante (acima da usina) fica vazia, impedindo a criação dos peixes nos tanques. Por isso, o processo dos criadores acusa o CESP e ONS de má gestão da água.

“O que a gente pediu foi que parasse a geração de energia abaixo da cota 323 metros, que só gere energia com o que entra na usina”, explica Esteves, o principal interlocutor do movimento, que integra a ação contra o ONS e a CESP. Segundo ele, o processo foi impetrado “para garantir o múltiplo uso da água”. Desde 1997, a “Lei das Águas” (Lei nº 9.433/1997), que instituiu no País a “Política Nacional de Recursos Hídricos”, determina que a gestão da água garanta os usos múltiplos desse bem público (não pode ser privatizado). Ou seja, a água deve ser utilizada de forma a garantir ao mesmo tempo o abastecimento residencial e industrial, a energia e a irrigação, entre outros usos. O consumo humano e de animais, no entanto, é prioritário em situações de estiagem.

A ação proposta por diversas associações de piscicultores como a AB-Tilápia (Associação Brasileira da Indústria de Processamento de Tilápia), o Cimdespi (Consórcio Intermunicipal para o Desenvolvimento Sustentável da Piscicultura da região de Santa Fé do Sul) e a Apropesc (Associação de Piscicultores de Três Fronteiras e Região) obteve uma primeira vitória na Justiça Federal.

O juiz Rafael Andrade de Margalho, da 1ª Vara Federal de Jales, no interior de São Paulo, deferiu liminar exigindo da CESP o fechamento da usina até que se reestabelecesse a cota mínima para operação. Caso descumprisse a liminar, a companhia deveria arcar com uma multa de R$ 100 mil por dia de operação. “Os piscicultores têm uma concessão para explorar a margem da represa com gaiolas de peixe e estavam tendo um prejuízo muito sério com essas gaiolas, que precisavam ser deslocadas muito para o meio. A água baixou mais de 300 metros de onde era a antiga margem, você já consegue ver as cidades que foram inundadas. Além disso, havia prejuízo de turismo na região e a usina estava funcionando abaixo do nível legal”, justificou Margalho.

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Gerente de produção da CESP, Haruo Kuratanim participa de audiência pública em Santa Fé do Sul. Foto: Agência Pública/Greenpeace/Thais Aleixo

Emerson Esteves, porém, afirma que em nenhum momento a decisão judicial foi cumprida. “Nós ganhamos, mas em nenhum momento a CESP e o ONS cumpriram a decisão. A Agência Nacional de Águas (ANA) três, quatro dias depois, soltou uma nota informativa dizendo que poderia criar peixe até 314 metros. Baseado nisso o ONS conseguiu derrubar nossa liminar. Chegou à cota 319,23 metros. A topografia do nosso reservatório é plana e os piscicultores tiveram que parar”, conta o empresário. A denúncia do empresário foi respaldada pelo juiz. “O ONS se negou a cumprir, muito embora ainda estivesse dentro do prazo para recurso”, diz Margalho.

Por sua vez, o gerente de produção da CESP, Haruo Kuratani, afirma que a empresa apenas cumpre as determinações do ONS. “Não somos nós que definimos: vamos gerar 100 MW hoje e vamos fechar a 200 MW amanhã. Quem determina a produção de energia é o Operador Nacional do Sistema. É ele quem tem que ver onde é que está distribuindo energia, onde é que está a água, onde tem água para produzir energia”.

A liminar favorável aos piscicultores foi derrubada no Tribunal Federal, sob alegação do ONS de que “a manutenção da liminar poderia causar um apagão no País”, explica o juiz Margalho. Segundo ele, o Operador Nacional do Sistema alegou que “o impacto [de interromper a energia] seria nacional, enquanto o impacto ambiental seria apenas local. Não se discutia ali que exista dano ambiental, ele existe, mas seria mais importante a manutenção da energia”.

Saiba mais sobre o processo da Apropesc

Uso múltiplo da água

Ex-ministro da Pesca e Aquicultura no segundo mandato do governo Lula (2006 – 2011), Altemir Gregolin concorda que “o reservatório é para geração de energia”. Mas considera que o peso econômico que tem hoje a criação de tilápias tem que ser levado em conta. “O reservatório de Ilha Solteira tem mais de 20 mil toneladas de produção. Os órgãos que trabalham no sistema elétrico devem rever os critérios; aquilo que era atividade complementar, passou a ser importante para a região. O ONS, a ANA, a Aneel e o Ministério da Pesca precisam rever os usos múltiplos da água e a piscicultura”.

A baixa do reservatório também prejudica diretamente a fauna local residente no lago. “[Se continuar a gerar energia] vão secar mais ainda os reservatórios, diminuir a quantidade de água e prejudicar o habitat de animais que vivem na represa, mas também tem o prejuízo financeiro, de pessoas que se utilizam do reservatório para seu próprio sustento, como o turismo”, diz a urbanista Marussia Whately, especialista em recursos hídricos. Ela destaca que a seca “tem a ver com a estiagem, mas também, aliada a questão climática, está a questão da degradação das represas; as margens estão desmatadas, vulneráveis a eventos extremos como esse, não há proteção dos corpos de água. É um problema da gestão, que está olhando sempre para o modelo da oferta, aumentando a quantidade da energia que produz, sem olhar para o que é preciso preservar”, diz.

 

Depois de a liminar ser derrubada, abriu-se uma ação civil pública (em defesa de interesses coletivos) encabeçada pelo Ministério Público de Jales. Na opinião do procurador José Rubens Plates, responsável atual pelo processo, a decisão do Operador Nacional do Sistema viola a legislação vigente sobre o uso das águas.
“Do nosso ponto de vista e também do juiz federal que decidiu a liminar, isso contraria a legislação, que fala que em época de seca, de escassez de água, deve-se priorizar o consumo humano e a dessedentação animal, em detrimento de outros usos de água. Do nosso ponto de vista, a CESP e o ONS estariam priorizando somente a produção de energia. Então é uma ponderação de interesse, uma ponderação de valores utilizados nesse caso”, diz o procurador.

Em nota, a ONS afirma que o “gerenciamento para flexibilizar as restrições de uso múltiplo da água estocada nos reservatórios em decorrência da escassez de recursos hidroenergéticos tem sido realizado com a participação da ANA, do Ministério do Meio Ambiente, da Aneel, do Ministério de Minas e Energia e dos agentes proprietários das instalações envolvidas”. O Operador Nacional do Sistema declarou ainda que “face à escassez de recursos hídricos, tem sido necessário flexibilizar as restrições de uso múltiplo. Em condições normais, essas restrições sempre foram respeitadas pelo setor elétrico”.

Braço do reservatório de Ilha Solteira, onde piscicultores posicionam os tanques-rede. Foto: Agência Pública/Greenpeace/José Eduardo Bernardes
Braço do reservatório de Ilha Solteira, onde piscicultores posicionam os tanques-rede. Foto: Agência Pública/Greenpeace/José Eduardo Bernardes

Artificial como o lago

O município de Ilha Solteira foi fundado em 1991, quando alcançou a independência de Pereira Barreto – a cidade integrava o Aglomerado Rural do Distrito de Bela Floresta. Nos anos 2000, ganhou o status de Estância Turística do Estado de São Paulo. A cidade ocupa o 18º lugar no ranking de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de municípios do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Segundo dados divulgados em 2013 pelo órgão, os moradores dispõem de 74 leitos do SUS (Sistema Único de Saúde) e 8 Unidades Básicas de Saúde. São, ao todo, 47 médicos registrados no município pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, uma média de 1,86 médicos para cada mil habitantes.

A cidade foi planejada em detalhes para servir à usina. Ao contrário da Usina Hidrelétrica de Jupiá, onde os trabalhadores se instalaram em uma vila conhecida como Vila Piloto, transformada em bairro após a construção da usina, em Ilha Solteira, o projeto previa a edificação de unidades habitacionais permanentes. A ideia dos administradores da vila, a estatal CESP, era estimular atividades industriais e agrícolas na região, perpetuando sua existência.

A partir de 1968 a vila recebeu de engenheiros a operários. À época, não existia policiamento na região e a segurança era feita por funcionários da CESP. Relatos dão conta de que agentes da ditadura militar perambulavam pela região prendendo profissionais que descumprissem regras, como ingerir álcool. Para “manter a ordem”, a cidade foi dividida em níveis “sócio-profissionais”: 1 e 2 (operários não especializados, ajudantes, serventes, vigias, zeladores, carpinteiros, encanadores, pedreiros); 3 e 4 (auxiliares administrativos, chefes de turma, encarregados, mestres de obra, fiscais, desenhistas, projetistas e professores de ensino primário); 5 e 6 (técnico-administrativo, cargos de chefia, professores de ensino técnico e ensino médio, encarregados de nível universitário, médicos, engenheiros, arquitetos, economistas e assistentes sociais).

O barrageiro João Félix da Cruz e sua esposa Gildete Adelina. Foto: Agência Pública/Greenpeace/José Eduardo Bernardes
O barrageiro João Félix da Cruz e sua esposa Gildete Adelina. Foto: Agência Pública/Greenpeace/José Eduardo Bernardes

Os níveis dividiam geograficamente os trabalhadores (na zona sul, os funcionários de hierarquia superior, no norte da cidade os menos abastados). Cada segmento social tinha seu próprio clube, com atividades culturais específicas, e nas escolas só estudavam filhos de trabalhadores de níveis semelhantes. Shows de grandes artistas nacionais (Wilson Simonal, Raul Seixas, entre outros), bancados pelos administradores da cidade, eram realizados nos clubes de nível 5 e 6. Exigências de vestimenta e altos preços vetavam a entrada de famílias residentes das áreas 1 e 2 nestes clubes.

“Os que eram mais fracos tinham muito pouca assistência deles [CESP], sofriam muito. Agora os engenheiros, encarregados, as casas deles davam umas cinco dessas. Quando terminou a barragem, a CESP botou as casas à venda, mas quem já estava aqui não ia deixar de comprar”, lembra Gildete Adelina, esposa do barrageiro – como se definem os trabalhadores das barragens – João Félix da Cruz, que ingressou na companhia como funcionário de nível 1, posteriormente alçado ao nível 3.

“O conflito social, queira ou não queira, existia”, conta o engenheiro aposentado da CESP, Rubens Dobre, que hoje trabalha na associação de aposentados da companhia. “No começo era muito difícil porque existiam níveis diferentes e graças a Deus isso foi acabando. Além das diferenças das pessoas, a cidade era um grande acampamento e nós só tínhamos segurança própria. Hoje Ilha Solteira é uma cidade normal, comum, como todas as outras”, diz.

Mas essa história acabou determinando o futuro da vila, hoje uma cidade com contornos de violão e casas distribuídas em ruas que carregam nomes de municípios brasileiros agrupadas por Estado para facilitar a orientação de quem circula por ali. Não que os seus 25.400 habitantes não conheçam cada “lombofaixa” (lombada com faixa de pedestres, respeitada rigorosamente por veículos) e cada esquina de cor e salteado. Sua população está majoritariamente instalada na parte urbana da cidade. Apenas 1.565 ilhenses residem na área rural.

Em seu livro sobre a história da emancipação ilhense (“Ilha Solteira – um Sonho, uma História”), o jornalista Fernando Sávio, observa: “a diferença de padrão de vida entre os moradores das casas tipos 1 e 6 é acentuada […]. O problema é que os tipos foram concentrados geograficamente, estabelecendo um sistema que parece responder a uma estrutura estamental, na medida em que uma família cujo chefe pertence a determinado nível funcional não pode morar numa casa atribuída a outro nível, mais alto. A estrutura estabelecida […], contribuiu para o florescimento de preconceitos de vários tipos entre os habitantes”.

Barrageiro aposentado João Alves de Souza_Thaís Aleixo
Barrageiro aposentado João Alves de Souza. Foto: Agência Pública/Greenpeace/Thaís Aleixo

A usina foi construída com o sacrifício dos barrageiros, que trabalhavam em turnos dobrados sujeitos a acidentes – a construção não utilizava procedimentos estipulados pela CIPA (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes). Profissionais que participaram das obras relatam um número expressivo de mortos e desaparecidos. “Hoje tem a CIPA, que é uma grande garantia para o trabalhador. No nosso tempo não tinha, era na foice mesmo, tinha que fazer e não tinha segurança nenhuma. E nem podia ter, porque se tivesse, não saía nada. Quantas pessoas morreram? Aqui até foi pouco, em Jupiá foi mais”, lembra João Alves de Souza, barrageiro aposentado que ajudou na parte elétrica da Usina de Ilha Solteira.

“Teve muita morte, vinha uma turma do Norte, que não tinha parente. Aqueles que morriam, que não tinham parentes, eles enterravam, descartavam e ficavam as malas, as coisas. Quando foi o término das obras, que eles estavam fazendo a limpeza, dizem que saíram dois caminhões de malas do povo que morreu”, afirma Gildete Adelina, que já lavou roupas para os barrageiros e depois improvisou, em sua casa, um restaurante para os trabalhadores.

Agora a prosperidade construída à custa de repressão e sofrimento dos trabalhadores está novamente em risco. Se Ilha Solteira pode sobreviver sem a arrecadação de ICMS com a energia vendida, a perspectiva da falta de água na cidade criada em função de uma barragem surge como um pesadelo para os seus moradores.

Assista o vídeo e saiba mais sobre a história de Ilha Solteira

Entre a água, a energia e o efeito estufa

“Se continuar essa seca, e as indicações são de que a seca vai continuar, vão se acentuar esses conflitos de geração de energia e usos múltiplos. Quando há pouca água, a geração de energia conflita com a navegação, a recreação, a produção de peixe, a pesca, a aquicultura”, afirma o presidente do Instituto Internacional de Ecologia de São Carlos, professor José Galizia Tundisi, que participou de estudos sobre mais de 50 reservatórios brasileiros nos anos de 1970, inclusive o reservatório de Ilha Solteira. “A qualidade da água sofre muito com a diminuição do volume. Isso pode matar peixes, pode comprometer a produção de tanques rede e a pesca artesanal, por diminuir a quantidade de oxigênio”, explica.

Na época em que o sistema elétrico brasileiro foi implantado, as exigências ambientais não eram tão rigorosas e o uso múltiplo das águas não era a prioridade dos projetos. Segundo o presidente da ANA (Agência Nacional de Águas), Vicente Andreu Guillo, “há uma preponderância natural histórica do uso energético, sem levar em consideração as atividades que foram incorporadas ao reservatório”. “Muitas vezes há uma ausência de regras claras, porque confrontamos o novo e o antigo praticamente ao mesmo tempo”, diz ele. “O antigo é a instalação do sistema elétrico brasileiro. Os reservatórios de usinas como Ilha Solteira foram construídos em um período onde as condições gerais de funcionamento não eram tão exigentes como agora. Nós não temos uma outorga para a usina de Ilha Solteira, como a maioria das usinas não têm. E com o passar dos anos, foram sendo constituídas novas atividades econômicas, que não foram incorporadas no funcionamento do sistema elétrico brasileiro, compatíveis com o uso múltiplo das águas”, explica.

Para o ex-secretário de Energia do Estado, Marco Antônio Mroz, não há dúvida que a operação da usina abaixo de seu volume útil “oferece riscos ambientais”. Para ele, o que tem prejudicado o uso eficiente das águas é a falta de comunicação e planejamento de todas as esferas governamentais. “Acho que a gente tem que avaliar o uso múltiplo da água em todas as suas faces. Como a Constituição diz, a água é predominantemente para o consumo humano, a primeira coisa que deve ser preservada. A ANA já deveria ter arbitrado essa questão, não é possível que os entes, o Estado e a Federação não conversem a esse respeito. Há que se ter uma determinação, todos os usos têm que ser respeitados para a indústria, para a agricultura, para o consumo humano”, diz o ex-secretário.

Apesar de não ter se manifestado durante as negociações, o governador Geraldo Alckmin afirma ter alertado o ONS sobre os riscos de continuar a gerar energia em Ilha Solteira. “Nós tínhamos pedido para manter o nível de Ilha Solteira mais elevado. Se tivesse mantido mais elevado, prejudicaria menos a piscicultura e manteria o Canal de Pereira Barreto, a Hidrovia Tietê-Paraná. Mas infelizmente o Operador Nacional do Sistema não concordou e é ele que controla a questão dos reservatórios das hidrelétricas”, afirmou Alckmin em entrevista à reportagem.

O governador, porém, não apontou alternativas para substituir a energia de Ilha Solteira. De acordo com o gerente da CESP, Haruo Kuratani, a falta de energia gerada na usina afetaria todo o sistema elétrico brasileiro. “Acho que não é prejudicial para a usina, é para a sociedade. Nesse primeiro momento, se eu diminuir a geração desta bacia, eu vou gerar menos energia. Se eu gerar menos energia, alguém vai ter que gerar, de alguma outra forma, ou então vai faltar”, diz Kuratani.

Parte interna da Usina de Ilha Solteira. Foto: Agência Pública/Greenpeace/José Eduardo Bernardes
Parte interna da Usina de Ilha Solteira. Foto: Agência Pública/Greenpeace/José Eduardo Bernardes

Por enquanto a insuficiência da energia hidrelétrica tem sido suprida pelas usinas termelétricas, que funcionam a partir da queima de combustíveis fósseis, onerando as contas de energia e contribuindo para a emissão de gás carbônico na atmosfera. No primeiro mês de 2015, 123 termelétricas instaladas nas regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste, Norte e Nordeste funcionaram de maneira ininterrupta e em sua capacidade máxima, de acordo com os dados do “Programa Mensal de Operação Eletroenergética” do ONS. As termelétricas representam cerca de 23% da capacidade energética do país.

Saiba mais sobre a crise hídrica

Fim da concessão da CESP?

Nesse mês de fevereiro, uma audiência pública reuniu órgãos federais como o Ibama, a ANA, a ONS, o CESP, entre outros, para discutir junto às autoridades locais e os empresários a situação do reservatório e o uso múltiplo das águas.

“Evidentemente provocou impacto negativo na piscicultura, um potencial até de agravamento se a seca se acentua. Precisamos procurar medidas que compensem ou reduzam o impacto da seca para os outros usuários também preocupados com a geração energética, e buscar num futuro breve que a gente tenha regras muito claras, para adequar o funcionamento de todos os usos importantes”, explica Vicente Andreu, presidente da ANA.
Vicente Andreu anunciou que a agência apoiará mudanças nas regras de concessão de operação das usinas e a recuperação do reservatório. “As usinas, quando vencerem a concessão, precisarão de uma nova outorga que incorpore os usos que a água passou a adquirir ao longo dos anos. Um outro ponto é de um acordo de operação imediato, que já está praticamente definido, para elevar o reservatório de Ilha Solteira”, revela o presidente da ANA.

Em julho de 2015, a concessão da CESP para administrar a Usina de Ilha Solteira se encerrará. Um possível agravamento da crise poderá ser decisivo para a renovar o controle da Companhia Energética à frente da terceira maior hidrelétrica do Brasil. Segundo o governador Geraldo Alckmin, “a CESP vai avaliar se ela participará ou não da nova licitação”.

Alternativas

Segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), órgão vinculado ao Ministério de Minas e Energia, o consumo de energia elétrica no Brasil em 2014 cresceu apenas 2,2%, a menor taxa de crescimento desde 2009. Um dia após a pane energética, o Brasil precisou importar energia da Argentina. O ONS revelou que cerca de 998 MW, ao longo do dia, foram entregues ao país nos horários de maior pico: das 10h23 às 12h e das 13h às 17h02, para suprir demandas nas regiões Sudeste e Centro-Oeste.

A solução seria procurar alternativas para a geração de energia em outras fontes, principalmente renováveis, como defende o ex-Ministro da Pesca, Altemir Gregolin: “[A crise] faz pensar o sistema. Essa seca mostrou que nós temos que investir em fontes alternativas como eólica, solar, mas tem que investir para não ficar na dependência. A gente sabe o impacto de grandes usinas. Teve investimento público pesado para usar termelétricas. Eu defendo o uso da energia eólica, energia solar. É preciso reduzir custos para ser competitivo”, afirma. As unidades capazes de produzir “energia limpa”, como as usinas eólicas e solares, representam, respectivamente, apenas 3,65% e 0,01% da capacidade instalada brasileira. Muitas destas usinas eólicas ainda não conseguem integrar o sistema pelo atraso na entrega de linhas de transmissão.

Segundo o Operador Nacional do Sistema, a geração de energia eólica no país no último dia 30 de janeiro foi de 1.633 MW, apenas 2,28% de toda a energia gerada. No mesmo dia, as hidrelétricas geraram 63,26% da produção diária (45.280 MW). Grande parte da energia eólica é advinda da região Nordeste, com 1.474 MW. A região Sul produz apenas 159 MW.

A EPE informa que estas novas matrizes serão mais exploradas nos próximos anos, mais precisamente entre janeiro de 2016 e junho de 2017. A EPE cadastrou 570 projetos, ou 14.962 MW, para o Leilão de Fontes Alternativas (LFA) de 2015, marcado para o dia 27 de abril deste ano. Destes, 530 são usinas eólicas, com capacidade para gerar 12.895 MW, e 40 usinas termelétricas movidas a biomassa (bagaço de cana, lenha, casca de arroz, resíduos de madeira, entre outros materiais). As usinas de biomassa poderão gerar até 2.067 MW.

“Cada vez mais a humanidade tem produzido formas eficientes de geração de energia. No passado, os outros países optaram por matrizes que utilizam combustíveis fósseis, altamente poluentes. O Brasil fez uma opção por matriz hidrelétrica, que é uma matriz limpa, porque é renovável, evidentemente com impactos”, reconhece o presidente da ANA. Para ele, é hora de procurar alternativas à energia hidrelétrica: “A energia eólica, a solar, maremotriz, geotérmica vão acabar se colocando para que cada vez mais às necessidades de energia no futuro sejam feitas através de matriz limpa”.

 

Essa matéria é resultado do concurso de microbolsas para reportagens investigativas sobre Energia promovido pela  Agência Pública em parceria com o Greenpeace.

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