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Reportagem

PL do infanticídio indígena traz falsa contradição entre cultura e vida

Aprovado pela Câmara dos Deputados, projeto de lei segue para apreciação do Senado. Pesquisadores ressaltam que a prática tem sido gradualmente abandonada pelos índios e que não existem dados confiáveis sobre o tema

Reportagem
16 de setembro de 2015
09:01
Este artigo tem mais de 9 ano

O Projeto de Lei 1.057, de 2007 – conhecido como “PL do infanticídio indígena” –, foi aprovado pelo plenário da Câmara dos Deputados, no último dia 26 de agosto, por 361 votos a favor e apenas 84 contra. A vitória folgada do projeto que pretende “combater práticas tradicionais nocivas”, como a morte de recém-nascidos em casos de gravidez indesejada, deficiência ou mesmo gestações de gêmeos, é fácil de entender. Para os pesquisadores do tema, porém, a contraposição entre cultura e vida, cerne da argumentação do projeto é falaciosa. E levanta pelo menos uma dúvida: por que, em tempos de turbulência no Congresso Nacional, a medida foi apreciada em regime de urgência?

O deputado Ivan Valente (Psol-SP), que questionou a urgência da matéria durante a votação no plenário, acha que a entrada do projeto na ordem do dia teve por objetivo esquentar a temática indígena. “É claramente uma medida que não tinha prioridade, até porque esses casos são hoje raríssimos, se é que existem, e têm que ser tratados com diálogo, não com a criminalização dos povos e dos agentes da Funai”, disse à Pública. “A colocação na pauta, pelos setores que capitanearam o processo, ligados ao fundamentalismo religioso e à bancada ruralista, tinha a função de esquentar a temática indígena e jogar a ideia da desumanidade, digamos, dos povos para preparar terreno para outras votações”, continuou, referindo-se a projetos como o PL 1.610/1996, que pretende liberar a mineração em terras indígenas e o PEC 215/2000, que busca transferir do Executivo para o Legislativo a prerrogativa da demarcação de terras indígenas. Outros parlamentares contrários ao projeto também argumentaram que o texto é inócuo, uma vez que o Código Penal já pune o infanticídio, o estupro e outros crimes previstos no projeto de lei como tortura e escravidão – e que carece de estimativas confiáveis sobre a ocorrência entre os povos indígenas.

“Esse dado, que todo mundo quer, não existe”, afirma a antropóloga Marianna Holanda sobre o número de crianças vitimadas pelo infanticídio indígena – tema do mestrado que defendeu em 2008. Ela explica que, além de não haver a “prescrição” ou obrigatoriedade da morte de bebês filhos de mãe solteira, gêmeos ou com problemas de saúde, como dá a entender o PL, o número de etnias em que isso ainda ocorreria é cada vez menor e de muito difícil contabilização. “Os índios não querem ter o direito de matar os próprios filhos. Isso não é uma demanda deles, além do que nenhum grupo humano está livre do infanticídio, e os indígenas também não, infelizmente.”

Professora de Antropologia da Universidade de Brasília e orientadora da dissertação defendida por Marianna, Rita Segato explica que o infanticídio pode ter sido mais presente em alguns períodos específicos da história dos povos indígenas, como durante a colonização da Amazônia pela ditadura militar (1964-1985) – quando, segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, pelo menos 8,3 mil índios foram mortos pela ação ou omissão do Estado. “Conforme as condições de vida melhoraram, isso foi sendo abandonado”, argumenta. Ela observa que é notória a preocupação e os cuidados dos índios com as crianças e com o crescimento demográfico, que leva algumas etnias a proibir o aborto.

A Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Ministério da Saúde confirmaram a não existência de estatísticas sobre o infanticídio indígena no Brasil. “No período neonatal, predominam as causas de óbitos relacionadas a problemas na gestação e no parto (causas perinatais e anomalias congênitas). Posteriormente, prevalecem as causas de morte relacionadas ao meio ambiente e às condições de vida e de acesso aos serviços de saúde (doenças infecciosas, pneumonias, diarreias)”, diz trecho da nota enviada pelo ministério.

Aprovada na Câmara, a matéria começará a tramitar no Senado pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, sob o número PLC 119 de 2015. Não há prazo para apreciação do texto.

Omissão de socorro

“O projeto de lei carece de reparos, de mudanças profundas e de uma reflexão mais detida sobre uma lei que pune e afeta tradicionalidades milenares de povos legítimos que compõem a sociedade brasileira”, argumentou a Funai, em nota, manifestando preocupação com a redação final do PL. A fundação prometeu “acompanhar e entrar no debate da lei” durante a tramitação no Senado e afirmou “discordar profundamente da proposta que tenta penalizar” os seus servidores.

Segundo o relator da matéria em plenário, o deputado Marcos Rogério (PDT-RO), os servidores que não agirem após identificar risco de condutas como o infanticídio poderão ser responsabilizados por omissão de socorro, crime previsto no Código Penal e passível de um a seis meses de detenção, que pode ser triplicada em caso de morte.

“Permitir que os agentes do Estado continuem se omitindo, em nome da preservação da cultura, é continuar afrontando a Constituição Federal”, justifica o deputado. Ele lembra que as leis “já garantem ao indígena que não compreende nosso regramento a inimputabilidade” – isto é, a impossibilidade de ser punido –, mas que o “indígena aculturado pode ser responsabilizado, como já acontece hoje”.

Marcos Rogério atribui a urgência na apreciação da matéria a um interesse manifestado a alguns parlamentares pelos próprios índios. “Recebemos em nossos gabinetes pais com crianças de um, dois, três anos de idade, relatando suas histórias de como lutaram para salvar seus filhos. Impossível conhecer aquelas crianças, pegá-las no colo e não se emocionar”, conta. Quanto à tortura e à escravidão, o deputado alega que, ao longo da tramitação do PL 1.057 de 2007, muito índios “tiveram a coragem de quebrar o silêncio” e trazer fatos e informações que levaram à ampliação do “rol de práticas ditas culturais que colocam em risco a vida e a integridade física das crianças, idosos e pessoas com deficiência”.

Propaganda contra os índios

Para a antropóloga Rita Segato, o PL é anacrônico e uma propaganda contra os índios, que estariam sendo retratados como bárbaros e selvagens. “O que há é uma aliança estreita entre os ruralistas e a bancada evangélica – que de forma alguma representa os evangélicos do Brasil. Quem está lá são aliados do agronegócio, que querem destruir projetos e reivindicações históricas dos povos indígenas”, critica. Curiosamente, a apreciação do PL 1.057 se deu poucos dias antes da tentativa de votação da Proposta de Emenda à Constituição 215, de 2000, que transfere os processos demarcatórios do Poder Executivo para o Legislativo e já foi alvo de manifestações contrárias dos índios, como a ocupação do plenário da Câmara, em abril de 2013.

Defensora do PL 1.057/07, a advogada Maíra Barreto discorda da análise de Segato. “Foi uma ampla maioria, de 361 votos, dos defensores dos direitos humanos e da vida. Não tem isso de bancada conservadora”, repudia. Ela integra a ONG Atini – Voz pela Vida, iniciativa criada em 2007 por missionários evangélicos para dar apoio a genitores indígenas que se recusariam a praticar o infanticídio. “Não temos por que esconder a nossa história e, além disso, se apegar a essa questão é algo preconceituoso. Se o projeto fosse defendido por outros setores, ninguém falaria nada”, queixa-se.

Por mais que não seja possível cravar a relação entre os interesses dos ruralistas e a aprovação do PL 1.057/2007, a ligação entre a bancada evangélica e o projeto não é fruto da imaginação dos antropólogos. O requerimento de urgência para a votação, aprovado em 15 de julho, foi proposto, em novembro de 2014, em papel timbrado do então líder do PMDB, o deputado federal Eduardo Cunha. Apoiador da PEC 215/2000, o parlamentar carioca teve apoio declarado das bancadas evangélica e ruralista para se alçar à Presidência da Câmara, onde está desde fevereiro. O “guerreiro contra o aborto”, como definiu a página oficial de Cunha, teria apresentado o pedido após uma reunião com Paulo Freire (PR-SP) e João Campos (PSDB-SP) – respectivamente o antigo e o atual presidente da Frente Parlamentar Evangélica – e com o Fórum Evangélico de Ação Social e Política (Fenasp).

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