Tudo começou com uma iniciativa de pretensões modestas. O Projeto de Lei 215 de 2015 (PL 215/2015), do deputado Hildo Rocha (PMDB-MA), sugeria a alteração do Código Penal para aumentar em um terço a pena para crimes contra a honra praticados em redes sociais. Desde fevereiro, quando foi apresentado, entretanto, o texto englobou pontos contidos em outros projetos e chegou a propor a dispensa de ordem judicial para que a polícia, o Ministério Público ou outras autoridades tivessem acesso ao histórico e ao conteúdo de navegação dos internautas, inclusive em aplicativos de celular, para investigar supostos atos de calúnia, injúria e difamação – os tais crimes contra a honra.
A expansão dos objetivos do PL 215/2015, que inclusive passou a alterar itens do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965 de 2014), disparou um alerta para entidades e movimentos ligados à liberdade de expressão e aos direitos dos internautas. Em poucas semanas, quase 150 mil pessoas assinaram uma petição para que os deputados da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados rejeitassem o projeto – batizado não por acaso de PL Espião. Somada aos argumentos apresentados por especialistas em audiências públicas e à atuação de alguns parlamentares contrários à proposta, a pressão virtual conseguiu amenizar o texto. Mesmo assim, o projeto foi aprovado na forma de um substitutivo do deputado Juscelino Rezende Filho (PRP-MA) pela CCJ na terça-feira (6).
Embora o acesso ao conteúdo tenha sido retirado da versão final, manteve-se o acesso sem ordem judicial aos dados cadastrais dos usuários, que devem ser coletados e repassados pelos provedores. Segundo Frederico Ceroy, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Digital, a legislação brasileira já admite, nos campos do direito eleitoral, penal e civil, a possibilidade de requisição de certos tipos de conteúdo sem ordem judicial. “O próprio Marco Civil da Internet também já trazia isso, então a complementação com outros dados cadastrais não inovou em nada”, disse. O acesso ao conteúdo das mensagens dos usuários, entretanto, seria temerário. “Aí realmente há um problema. O mais adequado, entendemos, é que se mantenha a necessidade da ordem judicial, porque é realmente uma questão de privacidade.”
O sigilo de e-mail é equivalente ao bancário ou telefônico, por exemplo, que demandam autorização judicial para serem acessados por quem quer que seja, na opinião de Frederico Viegas, professor titular de Direito da Universidade de Brasília. “Talvez ainda não tenhamos absorvido no nosso imaginário coletivo essa questão quanto à internet, mas a intimidade e a privacidade também existem nela”, afirma. Ele alerta que a facilitação do acesso a dados sensíveis, como correspondências eletrônicas e textos de aplicativos de mensagem, não é compatível com os princípios constitucionais e pode-se imaginar que, caso aprovada, seja futuramente questionada no Supremo Tribunal Federal (STF).
A possibilidade de coleta dos dados cadastrais já estava prevista no Marco Civil da Internet, mas somente quanto à qualificação pessoal, filiação e endereço. Se aprovado o PL Espião, a lista será completada com CPF, telefone e conta de e-mail. A depender da forma que o texto for aprovado, pode ser possível ainda que quaisquer tipos de sites ou blogs sejam obrigados a manter cadastros dos usuários. Além de inviabilizar o cumprimento da lei, isso pode levar qualquer pessoa a ter de informar seus dados em cada página ou aplicativo que acessar.
Fora do ar
Outro ponto polêmico mantido no texto é a inclusão, no Marco Civil da Internet, da possibilidade de retirada do ar de conteúdos que associem alguém a fatos caluniosos, difamatórios ou injuriosos ou a crimes dos quais a pessoa tenha sido absolvida com trânsito em julgado (quando não cabem mais recursos). Apesar de já ser possível, a especificação legal poderia incentivar os juízes a decidirem favoravelmente na remoção das páginas. “Isso não necessariamente altera o resultado final do julgamento, mas cria um primeiro momento de maior força para a remoção do conteúdo”, acredita Paulo Rená, diretor do Instituto Beta para Internet e a Democracia (Ibidem) e integrante da articulação Marco Civil Já. “Facilita a retirada porque deixa mais explícito”, complementa Veridiana Alimonti, da coordenação-executiva do Coletivo Brasil de Comunicação Social – Intervozes. [relacionados]
Originalmente proposta no Projeto de Lei nº 1589 de 2015, da deputada Soraya Santos (PMDB-RJ), que foi apensado ao PL 215/2015 – isto é, passou a ser analisado em conjunto –, a retirada de conteúdos estaria baseada no “direito ao esquecimento”. Recentemente iniciado na Europa, o debate sobre a possibilidade de uma pessoa impedir a veiculação de notícias sobre fatos antigos e prejudiciais à sua imagem é um campo fértil de discussão, sobretudo quando contraposto à utilidade pública das informações. “O que se tem na Europa é a retirada de links dos sites de buscas, não propriamente do conteúdo, como propõe o PL 215”, critica Paulo Rená, do Ibidem.
Para Frederico Ceroy, do Instituto Brasileiro de Direito Digital, o efeito prático da legislação europeia sobre o direito ao esquecimento é muito limitado. “Isso funciona muito bem no mundo offline, mas não no online. O que existe na Europa é um direito à desindexação, ou seja, em vez de tirar uma matéria do ar, exige-se que ela seja desindexada do Google, o que resolve o problema da pessoa que se sente ofendida”, explica.
Crime inafiançável
O PL 215/2015 apresenta ainda outra polêmica. O projeto dobra a pena e torna inafiançável o crime contra a honra que resultar em uma morte. Pelo Código de Processo Penal, isso só é aplicável a casos de racismo, terrorismo, tortura, tráfico de drogas, crimes hediondos e aqueles praticados por grupos armados contra o Estado. Paulo Rená, do Ibidem, alerta que vincular diretamente o autor de um crime contra a honra a um óbito cuja ocorrência ele tenha influenciado – mesmo que ele não tenha participado diretamente dos atos que levaram à morte da vítima – é um problema do ponto de vista teórico do Direito, mas pode ser ainda mais grave na prática. “Caso uma pessoa se suicide por causa de uma imagem nas redes sociais, por exemplo, todos que de alguma forma a difundiram poderiam ser presos, sem fiança, e serem condenados com punição dobrada”, diz.
As discussões na CCJ – que avalia, sobretudo, a constitucionalidade de um projeto de lei – poderiam ter sido precedidas por outras comissões ligadas a temas relacionados à matéria, como costuma acontecer com a maior parte das propostas legislativas. A distribuição dos textos para a análise desses colegiados, entretanto, é feita pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, comandada pelo deputado Eduardo Cunha (RJ) – em 2014, quando atuava como líder do PMDB, o parlamentar era um opositor do Marco Civil da Internet, que acabou aprovado pelo Congresso. Agora presidente da Casa, Cunha determinou que, antes de chegar ao plenário, o PL 215/2015 passasse somente pela CCJ, ignorando requerimentos para que os debates incluíssem a Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado e a Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática.
Para Rená, a celeridade na tramitação da proposta tem ligação direta com a regulamentação do Marco Civil da Internet, que será feita por decreto presidencial e está em debate no Ministério da Justiça – que também prepara um anteprojeto de lei sobre dados pessoais. A pasta não respondeu à Agência Pública sobre possíveis pareceres ou notas técnicas que eventualmente tenha elaborado sobre o PL 215/2015. Pela assessoria, disse apenas ter trabalhado diretamente com os congressistas para que a redação do projeto não impactasse os pilares do Marco Civil: a privacidade na rede e a guarda de registros, além da neutralidade (a garantia de que todas as informações trafeguem da mesma forma e na mesma velocidade).
O diretor do Ibidem alerta que a mobilização dos internautas deve continuar, apesar dos avanços no texto, já que pode haver retrocessos no plenário da Câmara ou, mais à frente, quando o projeto chegar ao Senado Federal. Ceroy, do Instituto Brasileiro de Direito Digital, por sua vez, observa que, apesar de a pressão ser legítima e fazer parte do jogo democrático, a discussão sobre o aumento de pena dos crimes contra a honra é uma prerrogativa do poder Legislativo – o que naturalmente não quer dizer que eles possam aprovar qualquer coisa. “Se isso se configurar de uma forma que afronte à Constituição, se for aprovado pelo Congresso e sancionado pela presidente da República, existem remédios, como uma Ação Direta de Inconstitucionalidade”, pondera.