Criou polêmica nas redes sociais no final de semana uma denúncia do colunista do Jornal O Dia, Cid Benjamin, de que o Bispo Marcelo Crivella, prefeito do Rio de Janeiro, teria pedido a demissão do colega de jornal, Caio Barbosa, por conta de uma reportagem sobre a situação de postos de saúde em meio ao medo da febre amarela. Crivella negou. “É falsa a informação divulgada”, disse em nota.
Bispo da Igreja Universal do Reino de Deus e senador pelo Partido Republicano Brasileiro (PRB), o agora prefeito Crivella foi um dos assuntos da primeira entrevista realizada na Casa Pública neste ano, que tratou da ascensão dos evangélicos ao poder.
A atual legislatura conta com 87 deputados federais e três senadores evangélicos. Os dados, que são parte de um levantamento do Núcleo de Mídia, Religião e Política da Universidade Metodista, também indicam que mais da metade dos 90 parlamentares pertencem a três igrejas: a Assembleia de Deus, a campeã; Igreja Universal do Reino de Deus, em segundo; e Igreja Batista, em terceiro. Os demais parlamentares estão distribuídos em 23 denominações diferentes.
Munida desses dados, a repórter especial da Pública, Andrea Dip, entrevistou o pastor Henrique Vieira, a pesquisadora Christina Vital, da Universidade Federal Fluminense (UFF), e o jornalista da CBN Fernando Molica. Os principais trechos você lê a seguir.
Andrea Dip – Henrique, como você enxerga essa bancada evangélica, a sua atuação, essa aproximação dos políticos evangélicos com a direita e se é possível ser evangélico e lutar por pautas progressistas.
Henrique Vieira – Como teólogo e pastor, e também militante de direitos humanos, entendo que a frente parlamentar evangélica é uma expressão do fundamentalismo religioso evangélico do Brasil. O fundamentalismo é um fenômeno crescente não só aqui como em todo mundo. Essa frente parlamentar evangélica se traduz em um projeto de poder que é extremamente conservador. Tentando sistematizar: é o fundamentalismo evangélico pautado numa leitura bíblica literalista, extremamente dogmática, que não se reconhece enquanto processo de interpretação, que ocupa cada vez mais espaços públicos e eletivos para pautar a coletividade a partir dessa visão doutrinária de Deus. Ela, hoje, é um risco à democracia, é um risco aos direitos humanos, é um obstáculo a diversas lutas, como a luta feminista, como a luta LGBT, como a luta quilombola, como a luta indígena, como a luta camponesa, e se associa sistematicamente à bancada da bala e à bancada do boi, ou seja, à indústria armamentista e o agronegócio.
Se é possível ser evangélico e militante das causas libertárias e progressistas, não tenho dúvida. Eu acho que o primeiro passo para furar esse bloqueio é não generalizar os evangélicos. Esse é um setor que tem poder político, econômico, midiático, televisivo, por isso ele tem muita força de expressão, de caracterização do que significa ser evangélico no Brasil. Algumas coisas têm que ser percebidas. Primeiro, desde o século 16, na origem do protestantismo, uma característica essencial é a diversidade. Existem diversas experiências evangélicas ao longo da história e do Brasil. Segundo, é que existem experiências evangélicas progressistas. Existe a MEP – Movimento Evangélico Progressista –, a Rede Vale, a ADU, expressões evangélicas progressistas, populares, que têm compromisso com a democracia, e setores que inclusive se sentem envergonhados dessa representação hegemônica e majoritária que tem o poder político econômico, midiático e televisivo. Precisamos entender que o campo evangélico é um campo em disputa, tem muitos símbolos, e para além dos movimentos organizados de perspectiva progressista.
Para concluir, tem uma contradição que a gente precisa entender e é de difícil compreensão: a religião evangélica, salvo engano, cresce especialmente nas camadas mais populares. Esse é um dado curioso. Então vou dar um exemplo. Acompanhei como parlamentar uma ocupação do MTST em Niterói, e a primeira noite de ocupação foi muito tensa, com risco de violência policial. O movimento conseguiu se manter. Eu acompanhei como membro da Comissão de Direitos Humanos todo o processo de negociação e voltei lá no outro dia de manhã para conversar com as pessoas, que estavam já se assentando e organizando o processo de assembleia. Enfim, porque estou contando essa história? Porque encontrei uma senhora e perguntei: “Vem cá, como terminou a noite?”. E ela me respondeu assim: “Glória a Deus, irmão, a gente conseguiu ficar”. Uma mulher que encontra na sua fé em Deus um elemento de empoderamento para fazer uma luta urbana por acesso a moradia. Isso não é um dado casuístico. Quando eu acompanhei o processo de ocupação, praticamente todas as assembleias tinham grande presença feminina, negra e evangélica. Aí você tem desde o protofascismo à luta por moradia. Tem que saber entender essa complexidade para furar os bloqueios e dialogar.
Andrea Dip – Cristina, gostaria que você contasse um pouco sobre a sua pesquisa para o livro Religião e política: medos sociais e extremismo religioso, eleições 2014. Entrevistei o Guilherme Boulos e também o pastor Ariovaldo Ramos. Ambos me disseram que a esquerda deixou de lado o trabalho político nas bases, nas comunidades pobres, e que quem ocupou esse vácuo foram as igrejas evangélicas, que se aproximam mais de um pensamento conservador.
Cristina Vital – Quando se fala dos evangélicos na sociedade, é de um grupo que está no poder, seja o poder eletivo, político ou midiático. Até 2014 era uma estratégia muito de ocupação dos Legislativos e, a partir de 2014, se torna uma estratégia bem direcionada de ocupação também dos Executivos. Isso ficou claro numa carta chamada “Antes pedintes, hoje negociadores”, do pastor Rodovalho, que é da igreja Sara Nossa Terra. Ali ele falava de uma passagem dos evangélicos na sociedade de ovelhas a players. Há uma distinção entre perfis evangélicos na sociedade. Houve uma pesquisa do Datafolha, em 2014, entrevistando evangélicos na sociedade em relação a determinadas pautas, que tinham a ver com LGBT, aborto, armas, redução da maioridade penal. Posteriormente se ouviu os deputados que compunham a frente parlamentar evangélica no Congresso sobre esses temas. É interessante ver os momentos de aproximação entre esses grupos, os que estavam no Congresso e os que estavam na sociedade, e era justamente nessas temáticas LGBT e das mulheres, digamos assim, que havia um encontro muito grande entre a base evangélica na sociedade e o que defendiam os parlamentares na Câmara. Em relação às armas, em relação à maioridade penal, tinha uma distinção: eles não estavam falando com a base. Mas tinha uma estratégia importante de articular as bases a partir dessas temáticas.
Andrea Dip – Fernando, você investigou o Crivella. Quem é o prefeito do Rio?
Fernando Molica – Crivella foi fundamental na implantação da Igreja Universal do Reino de Deus na África. Na sua estratégia de convencimento de ocupação de espaços, a Universal é muito agressiva. Depois de muito esforço, achei dois livros do Crivella, Evangelizando a África, em inglês, e outro que ele fala de cem pensamentos do bispo Edir Macedo. Eu tomei um susto quando li, porque é um negócio assustador o grau de reacionarismo, de preconceito, de exclusão que ele manifesta no livro, não somente em relação às religiões de matriz africana, que ele chama de “feitiço”, como também em relação à Igreja Católica, ao hinduísmo. É tudo muito barra-pesada dentro de uma lógica que é a lógica da Universal.
Agora, se você me pergunta quem é o Crivella, não sei. É uma boa pergunta. Agora, quando você lê o que ele escreveu… Depois o Crivella tentou se explicar, falou que era um jovem pastor, mas ele tinha 40 anos naquela época. Para mim, aquilo que li sintetiza a visão da Universal, que é uma disputa de mercado. Você vê claramente uma luta entre o bem e o mal. Não é uma visão de integração, é uma lógica de separação: ou você está aqui ou você está com os demônios, porque você não pode ter uma lógica ecumênica se está disputando o mercado.
Andrea Dip – Eles têm um exército.
Fernando Molica – Eles têm um exército, mas é sempre essa lógica do obreiro, então todo o resto é inimigo. A ideia da idolatria faz parte da mesma lógica infernal, da mesma lógica do mal. Numa reportagem que fiz eu conto de um pastor que disse. “Se o seu filho fuma maconha, se seu marido bebe; a culpa não é dele; a culpa é do demônio”. Então isso dá um alívio, dá uma solução. Agora, eu nem gosto muito de misturar a Universal com as demais, porque ela é muito liberal na questão dos costumes. O Edir Macedo já falou várias que é favorável à legalização do aborto, pelo pior motivo do mundo: ele diz que, se a mãe tem um filho indesejado, ele vai virar bandido.
Andrea Dip – Eu queria falar um pouco do Partido Republicano Brasileiro (PRB), que em 2004 nem existia oficialmente, em 2012 emplacou 78 prefeitos e 1.204 vereadores e em 2016 elegeu o prefeito do Rio e quase elegeu o Russomanno em São Paulo. Ele não é oficialmente um partido da Universal. O Edir Macedo não assume, mas todas as pessoas do topo do partido são pessoas ligadas à Universal, o próprio Marcos Pereira [atual Ministro da Indústria, Comércio Exterior e Serviços] é braço-direito do Edir Macedo, é um cara muito importante na história da Universal.
Cristina Vital – Há uma disputa importante no Congresso Nacional entre o PSC e o PRB, e de algum modo uma disputa entre Assembleia de Deus e Igreja Universal do Reino de Deus, que têm projetos e inserções distintas em termos teológicos, doutrinários. A Igreja Universal do Reino de Deus tem um modelo episcopal que é mais centralizado e parecido até com a Igreja Católica. Vocês podem observar que o Crivella, no pronunciamento de posse, não faz uma fala típica de um pastor pentecostal ou neopentecostal cheio da força do espírito santo, de manifestações.
Eles tinham um plano em 2014 de ter um crescimento percentual da bancada deles do PRB, e o PSC pretendia dobrar a bancada, e a gente viu que o PSC em 2010 elegeu 17 deputados e em 2014 conseguiu eleger 12. O PRB, por conta da eleição do Russomanno, levou um número grande de parlamentares, o que fez com que a bancada do PRB no Congresso Nacional mais do que dobrasse. Então são 21 parlamentares. Segundo os dados do IBGE, a Assembleia de Deus tem, segundo os dados de 2010, quase 3 milhões de pessoas vinculadas à igreja. A Universal teve um decréscimo de 2000 para 2010, então são 1 milhão e 800 pessoas vinculadas à Universal do Reino de Deus. Então, o Crivella ganhar no Rio significa uma vitória da Universal? Significa a vitória de uma estratégia político-religiosa.
Fernando Molica – Apenas para fazer uma observação que o Brasil já teve um presidente evangélico. O Geisel, se eu não me engano, era luterano, e isso rendia, no máximo, uma piada de que o presidente do Brasil era um pastor alemão. Mas o Geisel não alardeava isso como valor, pois não representou para os evangélicos ou protestantes uma lógica de ocupação de espaços de poder.
Mariana Simões – Recebemos várias perguntas pelo streaming. O Israel Moretoni perguntou para o Henrique qual seria a melhor maneira de ser um chefe do Poder Executivo de fé evangélica. Como governar uma cidade sem deixar a sua fé interferir na forma de governar e nas políticas sociais?
Henrique Vieira – Ninguém vai atuar a partir do nada. A experiência da fé é uma experiência muito fundacional da formação de um indivíduo. O que é possível é ter um conteúdo de fé que dialoga com a vida plena para todas as pessoas com garantia dos direitos individuais e coletivos, com a celebração da diversidade, com a promoção da justiça e com o respeito ao outro tendo o outro não como diferente que sofre o estigma, mas que tem o seu direito de existir garantido. Então, é incompatível para quem tem uma fé de conteúdo fundamentalista e/ou extremista. Para quem tem a fé não como uma doutrina, mas como uma experiência que te abre ao mundo e te abre ao outro, é uma possibilidade muito genuína, singela e realmente factível. Acho que a incompatibilidade se dá quando você olha o Estado como uma extensão da igreja, quando você olha o Estado como uma extensão da doutrina. E essa é uma característica de fé de setores fundamentalistas e/ou extremistas. Então dá para governar uma cidade sendo cristão respeitando as diferenças, a diversidade, compreendendo a dinâmica da democracia, da República e dos direitos humanos, e por aí vai. Não há neutralidade dentro e fora da experiência religiosa. Todo mundo vai governar a partir de algum lugar.
Andrea Dip – “Ninguém, nenhum deputado evangélico vai ser a favor da descriminalização do aborto, ponto”, me disse a Clarissa Garotinho numa entrevista no ano passado. Por isso, quero saber de vocês o que pensam.
Henrique Vieira – Dentro do setor evangélico, nós também vamos encontrar teólogos, teólogas, frentes que vão defender a descriminalização, a regulamentação, a devida legalização do aborto. Então, é importante registrar isso para mais uma vez vencer o discurso de que todos vão ser contra. Concordo que é uma maioria, mas não é uma unanimidade. A criminalização do aborto é uma das principais causas de morte de mulheres no país, e com um recorte social e racial gravíssimo. Mulheres ricas vão abortar com algum grau de segurança. Mulheres pobres, majoritariamente pretas, vão morrer. Então eu quero olhar para a vida concreta e perceber que a operação de preservação da própria vida passa pela descriminalização para tratar isso pelo viés da assistência da saúde e do respeito. Então, dá para teologicamente reajustar a tradição porque a tradição não aprisiona a experiência de Deus. Porque a experiência de Deus se manifesta na vida concreta. E quem fez isso e foi crucificado por isso? Jesus Cristo de Nazaré.
Andrea Dip – O que esperam os evangélicos da política?
Fernando Molica – Os evangélicos querem o poder, como qualquer ator político. Tem um livro do Edir Macedo, muito bem estruturado, que é o Plano de poder. Ele traça ali, se coloca, e isso está até na sua matéria que deixa claro que a Universal do Reino de Deus é a primeira a estruturar esse discurso político-partidário de uma forma organizada. Acho que a grande questão é discutir como é este poder. E em que medida a sociedade acha justo você entrar nessa briga levando Deus. Acho que a disputa política tem que ser no argumento político, inclusive defendendo teses conservadoras, contra a descriminalização das drogas, contra a legalização do aborto, mas que esse debate seja feito entre mulheres e homens, e não com Deus. Agora, por último, o Crivella é um prefeito que vai se adequar à lógica política, ele foi eleito com três vereadores do partido dele, são 51 vereadores no Rio. O PMDB não está ativamente no primeiro escalão de governo, não está representado. Passa que ele se preparou para ganhar a eleição e demonstra não ter se preparado para governar, a quantidade de bola fora que já deu é impressionante, de besteiras que secretários andaram falando, de pessoas que foram nomeadas e ele teve que desnomear por uma série de problemas na vida pregressa. A lógica da igreja serve para sustentar o discurso eleitoral, serve até para que tenha uma tolerância em relação a ele; em momentos maiores de crise, ele vai dizer “ah, isso é preconceito, porque eu sou evangélico, porque eu sou cristão”. Ele vai usar isso, mas isso tem um limite. Ele não pode ficar quatro anos só segurando na mão de Deus e indo. Ele vai ter que administrar, e acho que vai ter uma dificuldade maior do que o Eduardo Paes, que era do PMDB e tinha uma grande bancada na Câmara.
Cristina Vital – A gente tem um debate aí para enfrentar em torno da laicidade porque a laicidade virou o patamar da salvação nacional. A defesa da laicidade implica obstacularizar a presença do religioso no espaço público ou na política? Como se isso fosse salvar a nação do conservadorismo? A gente está falando aqui dos evangélicos, mas não sei se vocês viram a nota que a Associação de Magistrados Espíritas colocou contra a ação de juízes que estavam lutando na política de redução de danos na questão do aborto. A gente está falando de uma população majoritariamente cristã que tem uma leitura dessa questão da vida, e mesmo entre os kardecistas, católicos e evangélicos, os católicos sempre foram os maiores opositores nessa questão do aborto. A Frente pela Vida é uma frente comandada pelos parlamentares católicos.
Henrique Vieira – Acho que a expectativa é de um tempo de muitas lutas e tensões. Procurei aqui identificar a minha tristeza, a minha vergonha, o meu lamento, por conta dessa referência evangélica conservadora, que é contrária à democracia e aos direitos humanos. Mas eu também quero fazer um registro importante. Os tempos são difíceis não apenas por isso. Os gerentes do capital podem, inclusive, se utilizar disso para continuar promovendo um país injusto. Então, o Temer não é evangélico, e eu estou preocupadíssimo com a reforma da Previdência, com a flexibilização das leis trabalhistas. Continua no Brasil uma criminalização da pobreza terrível, extermínio da juventude pobre, preta, periférica, e favelada, extermínio da população quilombola, indígena, ribeirinha e camponesa, e tudo isso gerenciado por esse sistema, por esse modelo. O governo do Crivella não vai ser ruim só porque ele é um evangélico conservador, mas porque ele vai reproduzir um modelo de cidade relacionado ao interesse dos empresários de ônibus, da especulação imobiliária. Ele vai ser um gerente desse modelo de morte, o que é o Estado hoje na minha opinião. É importante combater o fundamentalismo religioso, mas também entender que, enquanto ele for convincente e interessante para esse modelo geral, inclusive outros agentes desse modelo vão continuar se alimentando dele. E o que os evangélicos querem? Essa pergunta eu vou refazer, porque tem evangélicos e evangélicos, têm Martin Luther King e Silas Malafaia. Eu sou evangélico e o meu projeto de sociedade tem muito a ver com o de Rosa Luxemburgo: um mundo onde sejamos socialmente iguais, nem ricos nem pobres, humanamente diferentes, respeitados nas nossas singularidades e, finalmente, totalmente livres para que possamos aproveitar esse dramático, frágil e potente espetáculo que é a vida.