O dinheiro que deveria ter sido pago aos mais de 30 mil credores de uma das maiores falências da história do Brasil serviu para engordar o patrimônio do Grupo Golin, grande conglomerado do agronegócio. Segundo investigação realizada por empresa contratada pela massa falida e supervisionada pelo Ministério Público (MP), parte dos R$ 6 bilhões (em valores atualizados) devidos aos investidores lesados virou terra. E das boas: dezenas de milhares de hectares na disputada região do Matopiba (sigla formada pelas iniciais dos estados Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), considerada pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) a última fronteira agrícola do país. Segundo a consultoria Informa Economics FNP, o preço médio da terra bruta por hectare na região é de R$ 12.625,00 (dados de fevereiro de 2018). Grilagens e especulação imobiliária no Matopiba são investigadas pela Pública desde o início deste ano.
Parte do portfólio de um dos maiores fundos de investimentos em terras do Brasil, o Vision Brazil Investments, foi formada por meio de empréstimos a pessoas ligadas ao Grupo Golin, inclusive por um suposto “fantasma”. A Vision teve papel decisivo no retorno do dinheiro desviado da falência, de acordo com uma investigação de dez anos feita pela empresa Offshore Asset Recovery (OAR), contratada pelo síndico da falência, o advogado Gustavo Sauer, sob supervisão do MP de São Paulo. Após ter lucros milionários em operações de empréstimo firmadas com a Vision, o Grupo Golin reinvestiu valores na compra de fazendas no cerrado de Matopiba, valorizado pelo agronegócio, em estados como Piauí, Bahia e Mato Grosso. A denúncia dos representantes dos credores já rendeu ao Grupo Golin uma condenação confirmada em segunda instância no Tribunal de Justiça de São Paulo. A Vision foi condenada em primeira instância pela mesma investigação, mas teve a sentença anulada porque um juiz de segunda instância aceitou o argumento de “cerceamento de defesa” sem avaliar o mérito. Os credores, porém, ainda não viram um tostão. O total de desvio de bens, em valores atualizados, é de cerca de R$ 612 milhões.
A falência em questão é a das Fazendas Reunidas Boi Gordo, um império da pecuária que veio abaixo em 2004, depois de ter vendido investimentos em cabeças de gado prometendo retornos muito acima do mercado: 40% de lucro em um ano e meio, em uma época em que o investimento em pecuária rendia cerca de 9% anuais. Acabou se revelando uma arapuca. Para o MP de São Paulo, o esquema ruiu por se tratar de uma pirâmide financeira.
Fundada em 1988, a Boi Gordo virou febre de investidores em meados dos anos 1990. O presidente da empresa, Paulo Roberto de Andrade, inspirou o autor Benedito Ruy Barbosa, da TV Globo, na composição do personagem Bruno Mezenga, protagonista da novela O rei do gado, imortalizado por Antônio Fagundes. As fazendas da Boi Gordo serviram de cenário para a novela global, inclusive para a abertura, que mostrava Fagundes montado em um cavalo girando entre a boiada ao som dos violinos do grupo Orquestra da Terra.
Fagundes e Ruy Barbosa também caíram no conto da Boi Gordo e hoje integram a massa falida da empresa. Outros globais deram com os burros (ou bois) n’água, como a atriz Marisa Orth e o designer Hans Donner, criador do logotipo da Globo, além de celebridades do mundo do futebol como os ex-jogadores Evair, Vampeta, César Sampaio e o técnico pentacampeão Luiz Felipe Scolari. Até o “Tremendão” Erasmo Carlos entrou na fria. Os mais prejudicados, porém, foram cidadãos de classe média: 70% dos credores da Boi Gordo fizeram aplicações inferiores a R$ 40 mil. Em termos geográficos, a gama de investidores é proveniente de todos os estados do país e de outros 18 países como Alemanha, Argentina, França, Inglaterra, Estados Unidos, Suíça e Portugal, por exemplo.
Aposentados como Wilma de Medeiros Gelesko, 84 anos, perderam as economias de uma vida. Viúva, ela trabalha até hoje numa papelaria no bairro do Tatuapé, zona leste de São Paulo. Com o sotaque paulistano carregado, conta que foi levada ao investimento pelas mãos do falecido marido, o contador Jorge Gelesko Júnior, e chegou a ter R$ 14 mil em investimento – além das aplicações do marido de R$ 60 mil – em valores da época. “Meu marido foi convencido por um colega de que aplicar na Boi Gordo seria um excelente negócio”, conta. “Ele me dizia que esse investimento seria a segurança da nossa velhice, eu já estava me aposentando na época que eu investi”, diz, lembrando que a aplicação foi feita pelo casal entre 1996 e 1997, época da primeira exibição de O rei do gado. “Eu me sinto esperançosa ainda. O meu filho sempre diz pra mim: ‘Você não vai receber esse dinheiro, quem vai receber são as suas netas’. Mas eu falo não, eu acho que vou receber sim”, afirma.
Wilma participa de uma das cinco associações de credores, a XV de Outubro, que tem 565 integrantes e foi fundada pelo radialista e ex-deputado estadual Afanásio Jazadji, outro lesado pela empresa. A maior delas é a Associação dos Lesados pela Fazenda Reunidas Boi Gordo S/A (ALBG) e Empresas Coligadas e Associadas, com cerca de 8.400 pessoas cadastradas e mais de R$ 500 milhões em créditos a receber. O diretor da ALBG, José Luiz Peres, é ex-corretor da empresa. “Eu vendia bois para a Boi Gordo, era corretor, trabalhei dois anos lá. Era um bom investimento. Meu pai vendeu a casa dele e colocou na Boi Gordo. Eu pago aluguel com a minha mãe até hoje”, relata Peres, que herdou os créditos do pai. Também há grupos de credores não reunidos em associações.
O misterioso sumiço dos bens
A Boi Gordo pediu concordata em outubro de 2001. Prevista em um decreto-lei de 1945 (já revogado), a concordata era uma forma de se evitar a falência e obter desconto nas dívidas da empresa. Em troca, as empresas beneficiadas por esse instrumento legal se comprometiam em pagar seus credores em dois anos. O pedido foi feito na cidade de Comodoro, município mato-grossense próximo à fronteira com a Bolívia, situado a mais de 600 quilômetros de Cuiabá, para onde o antigo dono do império da Boi Gordo, Paulo Roberto de Andrade, transferiu a sede da empresa dois meses antes. A mudança de sede foi contestada de imediato por grupos de advogados dos credores, que a viram como artimanha para fraudar as dívidas. Depois de uma longa discussão judicial sobre se a concordata deveria correr em São Paulo ou no Mato Grosso, em outubro de 2003 o STJ definiu que o processo deveria correr em terras paulistas.
Essa questão de competência ainda não havia sido decidida quando Paulo Roberto de Andrade vendeu o controle acionário da Boi Gordo para duas empresas ligadas a dois grupos do agronegócio: o Grupo Sperafico, um clã da soja oriundo do Paraná, com tentáculos no Congresso Nacional – o mais recente membro da família a ocupar cargo legislativo é o deputado federal Dilceu Sperafico (PP-PR), eleito em 2014 e atualmente chefe da Casa Civil no governo estadual paranaense; e o Grupo Golin, que iniciou suas atividades no Mato Grosso do Sul nos anos 1980 e se espalhou por nove estados brasileiros nas décadas seguintes. A venda foi feita em julho de 2003 para as empresas Cobrazem (Grupo Sperafico) e Satcar do Brasil (Grupo Golin). No acordo, sigiloso e não registrado na Junta Comercial do Estado de São Paulo (Jucesp), conforme estabelece a lei, ficou determinado que a Satcar indicaria futuramente os novos sócios.
De acordo com documentos obtidos pela Pública, ambas as empresas declararam que queriam “renegociar as dívidas [da Boi Gordo] com os credores e financiar novas operações, envolvendo basicamente a utilização das terras para plantio de gêneros para exportação”. A Cobrazem pulou fora do negócio em 2003 e a Satcar indicou outra empresa do Grupo Golin para assumir o controle acionário – a Forte Colonizadora e Empreendimentos Ltda., cujos sócios são Júlio Lourenço Golin e Jocenir Pedro Golin, que assumiram um passivo de R$ 930 milhões (R$ 2,1 bilhões em valores atuais).
Recuperar a Boi Gordo seria uma tarefa quase impossível. Indicado por um juiz de Comodoro (MT) quando foi feito o pedido de concordata, o perito Wanderley Ferreira Bendes avaliou ser inviável a reabilitação da Boi Gordo por falta de capital de giro e ausência de liquidez para sanar as dívidas e seguir as atividades. Em abril de 2004, sem honrar nenhum pagamento aos credores no período da concordata, a falência da empresa foi decretada. Só então se descobriu que os bens que seriam arrecadados e vendidos para ressarcir os credores haviam desaparecido. O patrimônio da Boi Gordo, que constava no balanço da empresa quando foi pedida a concordata, havia sido drasticamente reduzido – sobrando apenas algumas propriedades rurais imobilizadas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Maquinário e frota de veículos, material genético, banco de sêmen, propriedades rurais e urbanas, contratos de arrendamento desapareceram antes que fossem usados para ressarcir os credores.
“Houve um desvio brutal de bens da Boi Gordo. E nada dessa movimentação de bens entrou no caixa da Boi Gordo nem foi formalizado perante a Junta Comercial”, afirma o promotor de Falências do Ministério Público de São Paulo, Eronides Santos. Sob a supervisão do MP, a empresa especializada em investigação de falências OAR passou a buscar os responsáveis pelo desvio dos bens do antigo império do gado. A investigação levou uma década, entre 2004 e 2014, para desvendar a complicada trama financeira que havia surrupiado os bilhões da massa falida da Boi Gordo para engordar o patrimônio do Grupo Golin. O trabalho resultou em uma denúncia por parte do MP que culminou em uma condenação do Grupo Golin em junho de 2015, já confirmada em segunda instância.
Segundo a decisão de primeira instância do processo que analisa a denúncia de fraude à falência da Boi Gordo – estendida ao Grupo Golin e subsidiárias da Vision Brazil –, não houve por parte do Grupo Golin negociação com credores, aporte de capital de giro ou tentativa de dar continuidade aos negócios da Boi Gordo. Houve, sim, segundo a decisão do juiz Marcelo Barbosa Sacramone, um esforço de “apropriação de recursos sem pagamento à concordatária”. O total do patrimônio líquido à época da concordata era cerca de R$ 500 milhões.
Um exemplo de fraude, conforme a decisão judicial, foi o desaparecimento do gado da empresa – à época da derrocada, os balanços registravam um valor superior a R$ 85 milhões em animais, embriões e sêmen de gado. Só de gado puro de origem, eram cerca de 8 mil cabeças, segundo depoimento do próprio Paulo Roberto de Andrade no processo judicial.
A sentença apontou que boa parte do patrimônio em animais foi apropriada por outras empresas do Grupo Golin. O mesmo ocorreu com boa parte dos 300 mil hectares em nome da Boi Gordo. Meses depois de ter assumido o controle da falida, o grupo reabilitou a empresa Eldorado Agroindustrial, e a Forte arrendou à Eldorado uma série de fazendas sem nenhuma contrapartida ou repasse do valor arrecadado aos credores. Foi o caso dos imóveis rurais: Realeza I, II, III, IV e V; Sítio Atlas; Bairro do Porto I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII e IX e Guaporé I e II.
Um patriarca e um fantasma
Dois personagens são figuras-chave nessa história. Um deles é o patriarca do Grupo Golin, Joselito Golin, que, apesar do nome de batismo, sempre se apresenta como Paulo. O outro é uma figura nebulosa chamada Paulo Roberto da Rosa. Pairam dúvidas se Rosa realmente é uma pessoa de carne e osso, ou apenas uma pessoa de papel, um fantasma que movimentou quase R$ 1 bilhão em bens e dinheiro. Uma denúncia feita em 2015 pela procuradora da Fazenda Marina Tomaz Kalinic Dutra levantou fortes suspeitas quanto à existência de Rosa. “A Receita Federal do Brasil realizou fiscalização relativamente ao Imposto de Renda de PAULO ROBERTO DA ROSA […], quanto aos anos calendário 2008 e 2009 e acabou constatando tratar-se de ‘pessoa fictícia’”, relata Marina.
A Receita Federal constatou que não havia nenhum registro de nascimento com o nome e filiação correspondente a Paulo Roberto da Rosa no cartório da comarca de Canutama (AM), onde os documentos de Rosa atestam que sua certidão foi registrada. Rosa também não possui cadastro na Justiça Eleitoral, só foi ter CPF em 1999, aos 36 anos, e o assento de sua certidão de nascimento foi lavrado em 1995, ou seja, quando ele tinha 29 anos. Uma perícia em um cheque assinado por Rosa apontou indícios de a assinatura dele ser, na verdade, de um contador do Grupo Golin, Gerson Luiz Oliveira. Como era de esperar, ele nunca compareceu para prestar depoimento nas ações judiciais a que responde.
O tal Rosa desempenhou importante papel no desvio de bens da Boi Gordo, segundo as investigações. Alçado a diretor-presidente da empresa após Julio Lourenço Golin assumir a presidência do Conselho de Administração da Boi Gordo, Rosa assinou vários dos arrendamentos das fazendas pertencentes à massa falida. Do outro lado do balcão, como arrendador, Joselito assinava pela Eldorado Industrial, como comprovam documentos das fazendas Realeza, do sítio Atlas e do Bairro do Porto. “Eleito presidente das Fazendas Reunidas Boi Gordo, fora Paulo Roberto da Rosa que celebrou os contratos de arrendamento, sem qualquer pagamento, dos principais ativos da Boi Gordo com a Eldorado”, diz o juiz Sacramone em decisão judicial.
Segundo a denúncia, o valor equivalente aos bens desviados foi enviado ao exterior pelo Grupo Golin por meio de uma complexa trama financeira. Validada pelo MP, a denúncia entendeu que, para trazer os recursos de volta ao Brasil, entrou em cena um grande fundo de investimentos, o Vision Brazil Investments. O Vision foi criado por dois nomes relevantes do mercado financeiro nacional: Amaury Fonseca Júnior, ex-diretor e head trader de instituições como Bank of America e JP Morgan no Brasil, e Fábio Greco, ex-responsável pela área de derivativos do Bank of America no Brasil e do Banco Patrimônio (subsidiária brasileira do extinto banco de investimentos Salomon Brothers), com passagem de seis anos pelo Chase Manhattan Bank.
Uma série de operações suspeitas foi descoberta nos trabalhos de investigação. Nos contratos de mútuo – acordos de empréstimo firmados entre particulares em torno de bens móveis –, os polos eram sempre os mesmos: de um lado, representantes do Grupo Golin e, de outro, subsidiárias do fundo Vision Brazil Investments, como a ICGL Empreendimentos e Participações S.A., ICGL 2 Empreendimentos e Participações Ltda., AGK 4 Empreendimentos e Participações Ltda. e AGK5 Empreendimentos e Participações Ltda. Nos documentos da Jucesp, há uma série de transferências de recursos a essas empresas pelas companhias registradas em locais considerados paraísos fiscais, como, por exemplo, o estado de Delaware, nos Estados Unidos.
Esses contratos eram firmados pelas empresas do Grupo Vision, que ofertavam um valor em dinheiro aos representantes do Grupo Golin em troca do compromisso de pagamento por meio de propriedades rurais. Uma espécie de contrato de corretagem de imóveis para a Vision, que, fundada em 2006, queria investir em terras no cerrado brasileiro, seguindo as tendências do mercado financeiro mundial. Esses imóveis eram adquiridos por valores significativamente mais baixos do que os empréstimos oferecidos pelas subsidiárias do Grupo Vision, trazendo lucros astronômicos para o Grupo Golin, sempre próximos aos 1.000%. Foi também através dessas operações que as subsidiárias do Grupo Vision adquiriram terras no coração do Matopiba. Entre elas estão dois grandes imóveis rurais – fazendas Piauí e Terçado – formados pela Vision no cerrado piauiense, que reúne 1,5 milhão de hectares de terra arável nos platôs das muitas chapadas ao sul do estado. Juntos, os imóveis somam 47.247 hectares – área quase equivalente à cidade de Porto Alegre – em municípios como Manoel Emídio, Alvorada do Gurgueia, Palmeira do Piauí e Currais. Em seu site, a Vision afirma possuir 335 mil hectares no Matopiba e afirma ter criado uma empresa – a Tiba Agro – só para gerenciar projetos agrícolas no cerrado.
Um exemplo das operações de mútuo está na aquisição das fazendas Brejo da Onça II e Olho D’Água, localizadas em Alvorada do Gurgueia (PI). Segundo a denúncia da OAR, os imóveis rurais, oficialmente comprados por R$ 100 mil cada um, foram dados em pagamento a dois contratos de mútuo firmados pelo suposto fantasma Paulo Roberto da Rosa com a ICGL, subsidiária do Grupo Vision, que, somados valiam R$ 7,6 milhões. Um lucro gigantesco sobre o valor original das terras que nem sequer foram pagas à vendedora.
As áreas foram compradas pelo Grupo Golin, em março de 2008, da advogada Josyane Rocha da Silva. “Eu tinha essas terras aqui no sul do estado, estava passando por um momento muito difícil e tinha o interesse em vendê-las. O Grupo Golin mostrou interesse em comprar. Eu tive pessoalmente com o Joselito Golin, que é conhecido como Paulo Golin, e ele me transmitiu uma confiança, mas na verdade eu caí numa teia de aranha”, conta Josyane. Ela conta que fez um acordo com Golin pelas áreas que, juntas, ultrapassam 4.700 hectares, mas recebeu apenas um pagamento como sinal. Confiando no negócio, ela conta que assinou a escritura transferindo as terras para um técnico em contabilidade ligado ao Grupo Golin chamado Ronaldo Lisboa de Freitas. Este transferiu as áreas a Paulo Roberto da Rosa, que, por meio de seu procurador, Joselito Golin, repassou-as à ICGL, conforme as cadeias dominiais dos imóveis obtidas pela Pública. Como os pagamentos não vieram, a advogada Josyane devolveu o sinal e obteve a reintegração de posse das duas fazendas por meio de uma decisão liminar da Justiça piauiense. “Durante a negociação, o Paulo Golin falou que ia telefonar para a Tiba Agro [do fundo de investimentos Vision] para receber o dinheiro da transação. Eles pareciam ser parte do mesmo grupo”, relata a advogada, revelando a proximidade entre o grupo de agronegócio e o fundo de investimento. O Instituto de Terras do Piauí (Interpi) move uma ação de reintegração de posse na Justiça do estado por entender que a área comprada pela Vision é pública – o processo corre na Justiça desde 2012 e ainda não há conclusão.
Segundo a denúncia, o mesmo estratagema foi usado nos acordos de mútuo envolvendo várias outras fazendas. Só em 2007, por exemplo, Paulo Rosa adquiriu nove fazendas (Chapadão, Cabeceira, Engano, Terçado, Última Fronteira II, Alto da Serra, Alto da Curriola, Ipanema e Serra), todas no Piauí. Os imóveis foram dados como pagamento a mútuos que, somados, chegam a R$ 60 milhões, recebidos por Rosa em um período de cinco meses. Em muitos desses imóveis, Rosa – sempre representado por Joselito Golin – teve lucros próximos a 1.000%. A fazenda Cabeceira, por exemplo, formada a partir da compra de seis matrículas imobiliárias por R$ 437.400,00, foi dada como pagamento a um mútuo de R$ 4,62 milhões. Ou seja, descontados os pouco mais de R$ 430 mil que pagou pelas matrículas, Rosa ficou com um lucro de R$ 4,18 milhões – cerca de 9,6 vezes o que investiu. A fazenda Engano foi comprada por R$ 250.000,00 e dada como pagamento a um mútuo de R$ 2,6 milhões – lucro de 957% no mesmo período de sete meses. Também a fazenda Pirajazinho II, comprada em setembro de 2007 por R$ 900.000,00, foi dada em pagamento a um mútuo de R$ 9.520.070,39 em abril de 2008 – lucro de 958% nos mesmos sete meses. Todos esses mútuos foram ofertados por duas subsidiárias da Vision Brazil: ICGL e ICGL 2.
“Nós identificamos esse dinheiro desviado da Boi Gordo voltando do exterior para o Brasil, na forma de empréstimos, através de fundos de investimento por meio de um laranja, o Paulo Roberto da Rosa, sempre por meio de um procurador, o Paulo Golin, cujo nome de batismo na verdade é Joselito”, descreve o promotor Eronides Santos. “Esse Paulo Roberto da Rosa movimentou R$ 1 bilhão, sempre através do Golin como procurador”, resume. Em juízo, a Vision Brazil reconheceu que firmou os contratos de mútuo que visavam investimentos no setor agropecuário. A Vision alegou ter sido apresentada a Paulo Golin e a Paulo Roberto da Rosa, “empresário bem-sucedido na aquisição, exploração e venda de grandes propriedades rurais”. O valor dos empréstimos, segundo a empresa, era definido por avaliações de mercado preestabelecidas e que não tinham controle sobre o valor que os mutuários – na maioria das vezes, Rosa e o contador Gerson Luiz Oliveira – pagavam pelas fazendas dadas posteriormente em pagamento.
O juiz Marcelo Sacramone recusou os argumentos da Vision. “Os documentos juntados aos autos demonstram que as operações não foram regulares. O montante emprestado não é condizente com a situação financeira de Paulo Roberto da Rosa, não é condizente à prática do mercado, a operação não é lógica economicamente e implica risco exacerbado ao agente, a menos que haja interesses outros”, decidiu o juiz. “Ainda que a parte ré sustente que o lucro obtido com a compra e venda dos imóveis era algo que cabia ao mutuário Paulo Roberto da Rosa e que ela não tinha interferência, a alegação não é crível. Como agente econômico, que procurava maximizar seu lucro, a parte ré não continuaria a deixar de auferir 90% de lucro pelas aquisições das terras, ou seja, não deixaria de comprar diretamente os bens no mercado para não ter que pagar estratosférico percentual de lucro”, argumenta Sacramone.
Para o magistrado, a única explicação lógica para o fato de a Vision oferecer contratos de mútuo tão generosos a Paulo Roberto da Rosa e outras pessoas do Grupo Golin é “conceber-se que o capital emprestado não é do mutuante [Vision], mas do próprio mutuário [Golin] e a operação fora realizada simplesmente para legalizar os recursos obtidos mediante desvio dos bens da anterior concordatária”. A Vision negou a afirmação dizendo que o dinheiro era da própria empresa e teve origem em fundos geridos pela empresa nas Ilhas Cayman. “Essa alegação, contudo, é insuficiente. Cumpria à parte ré demonstrar efetivamente a origem do capital e que, no caso, não tinha origem no Grupo Golin. Referida demonstração não fora realizada a contento nos autos e sem quaisquer justificativas, o que indica a participação na operação de desvio dos recursos em benefício do Grupo Golin e em benefício próprio, já que conservou consigo a propriedade das fazendas dadas em pagamento”, decidiu Sacramone.
Em segunda instância, contudo, a Vision obteve decisão favorável a uma alegação de cerceamento da defesa e conseguiu anular os efeitos da decisão do juiz Sacramone em relação às subsidiárias da Vision. O processo retornou à primeira instância para que a empresa possa produzir provas de que o dinheiro dos mútuos não tinha relação com o Grupo Golin e, consequentemente, com a fraude à falência da Boi Gordo. A empresa alega que o dinheiro dos mútuos veio de investidores internacionais reunidos nos fundos geridos por ela.
Na esfera federal, a Receita também viu irregularidades nos negócios entre as subsidiárias da Vision e Paulo Roberto da Rosa, classificados como “evidente fraude para o não pagamento de impostos” por Golin. “Conclui-se, portanto, estar claramente comprovado que JOSELITO GOLIN, com a ajuda de empresas a ele ligadas, utilizou-se de personagem fictício para celebrar negócios e fraudar o fisco”, diz denúncia do MPF. Em dezembro de 2015, a juíza federal Carolina Viegas determinou a indisponibilidade dos bens de Golin e das subsidiárias da Vision envolvidas nos mútuos.
Em contato com a Pública, a Vision Brazil Investments declarou que “as suspeitas levantadas pelo síndico da Massa Falida das Fazendas Reunidas Boi Gordo em relação aos negócios realizados pelas Empresas foram todas afastadas, no incidente, por provas robustas que demonstram terem sido os imóveis adquiridos de forma idônea pelas Empresas, mediante operações comerciais lícitas, todas assistidas por prestigioso escritório de advocacia, auditadas por empresas de renome e devidamente escrituradas”. Alegou também que em segunda instância viu “nítida separação entre os negócios dessas Empresas e os atos praticados pelas pessoas que administraram a massa falida (denominado ‘grupo Golin’). Logo, o acórdão do Tribunal de Justiça evidenciou que não havia fundamento que sustentasse qualquer envolvimento dessas empresas com eventuais atos e desvios alegadamente praticados pelo grupo Golin no âmbito da falência das Fazendas Reunidas Boi Gordo”. A empresa destacou o fato de o processo ter sido remetido à primeira instância para melhor apreciação das provas sobre a participação da Vision no desvio de recursos da Boi Gordo. E declarou “que a idoneidade das operações por elas empreendidas foi atestada pela [empresa de auditoria] PwC em substancioso laudo pericial, produzido ao longo de mais de 1 (um) ano de diligências, já apresentado judicialmente e a ser considerado pelo juízo de primeiro grau por determinação do Tribunal de Justiça de São Paulo”. As empresas do grupo são representadas pelo ex-presidente do STF Cezar Peluso.
A Vision permanece com muitas das fazendas adquiridas nas cobiçadas áreas de cerrado com a lucrativa corretagem do suposto fantasma Paulo Roberto da Rosa e o contador dos Golin, o também condenado Gerson Luiz Oliveira. Em seus investimentos em terras, a Vision é especializada em adquirir terra bruta e transformá-la para revender a produtores e especuladores interessados. Segundo uma apresentação de um dos sócios da Vision Brazil produzida para investidores em 2016, a empresa adquiriu, no fim de 2007, um imóvel rural de 25 mil hectares por R$ 41,4 milhões e o revendeu por R$ 87,9 milhões.
Apesar de anular os efeitos da sentença em relação à Vision Brazil por cerceamento de defesa (sem análise do mérito), a participação do Grupo Golin foi completamente confirmada em segunda instância pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
Lucro dos mútuos estacionou na compra de fazendas, diz MP
Os beneficiários dos mútuos realizados pela Vision Brazil usaram os lucros dos contratos para integralizar capital de outras empresas. Uma delas foi a Bom Jardim Empreendimentos Rurais Ltda. A empresa teve seu capital consideravelmente ampliado em menos de 40 dias em 2009: saiu de R$ 100 mil para R$ 3,6 milhões com o lucro dos mútuos obtidos por Paulo Roberto da Rosa, segundo documentos da Jucesp. Em seguida, a Bom Jardim adquiriu uma fazenda rebatizada com o mesmo nome da empresa, um imóvel de 14 mil hectares na cobiçada serra do Quilombo, área rural disputada a tapa por gigantes do agronegócio, situada entre os municípios de Bom Jesus, Gilbués e Monte Alegre do Piauí. O imóvel encontra-se com a matrícula bloqueada após denúncia do MP do Piauí por inconformidades das matrículas dos imóveis com a Lei de Registros Públicos (6.015/1973). Na decisão de bloqueio, o juiz da vara agrária de Bom Jesus (PI), Heliomar Rios Ferreira, afirmou que as matrículas dos imóveis foram hipotecadas em uma transação de R$ 2,6 bilhões proveniente de uma das maiores companhias financeiras do mundo, a Metlife, sediada em Nova York. Parte do empréstimo se destina à compra de novas fazendas.
Segundo o promotor Eronides Santos, do MP de São Paulo, a maior parte dos lucros dos mútuos realizados pelo Grupo Golin virou fazendas. “Nós começamos a monitorar e a verificar onde esse dinheiro foi estacionado. E foi na aquisição de propriedades rurais. Inúmeras propriedades rurais em nome de empresas e membros da família Golin”, descreve Santos. Outra fazenda adquirida com o capital proveniente dos mútuos, a fazenda Chapadão do São Domingos, localizada em Uruçuí (PI), foi adquirida em setembro de 2009 por R$ 5 milhões pela empresa JAP Empreendimentos e Participações. A JAP pertence a duas filhas de Joselito Golin: Judiliane e Ana Paula Golin. Dois meses depois da aquisição, a fazenda foi vendida à Empresa Brasileira de Terras 2 Ltda., representada pelos dois administradores da Vision, Fábio Greco e Amaury Fonseca Jr., por cerca de R$ 44 milhões.
No Piauí, membros do Grupo Golin enfrentam uma série de acusações de serem beneficiários de grilagem de terras e autores de episódios de violência. Em 2016, Jocenir Pedro Golin foi denunciado pelo MP do Piauí por constar na cadeia dominial de uma matrícula grilada por um servidor do cartório da cidade de Gilbués (PI). O servidor em questão, por meio de manobras no cartório do município piauiense, transformou uma área de 6 mil braças, que seria equivalente a pouco mais de 8 mil hectares, em uma área de 51.315 hectares. A área foi posteriormente clonada no cartório de Barreiras do Piauí (PI), chegando a mais de 100 mil hectares criados na caneta.
“Antes pensava que somente Jesus Cristo fosse capaz de multiplicar os pães, mas aqui no Piauí nós temos uma figura que tem o poder divino de multiplicar terras. Não há poder maior do que esse!!! Jesus Cristo deve estar com muita inveja ou, pelo menos, lamentando não ter vivido para ver tal proeza, pois, em sendo na sua época, teria resolvido o problema dos hebreus e Moisés não ficaria vagando anos pelo deserto à procura de um mísero pedaço de chão para alocar seu povo!!!”, escreveu o juiz Heliomar Rios Ferreira na inflamada decisão que determinou o bloqueio das matrículas decorrentes da manobra. Jocenir Pedro Golin era um dos sócios da Forte Colonizadora, apontada como responsável direta pelo desvio de bens da Boi Gordo. O outro sócio da Forte, Júlio Lourenço Golin, também aparece como beneficiário da manobra do cartorário como sócio da empresa Vale Verde S/A. Esta e Jocenir Golin receberam cerca de 19 mil hectares da área criada em cartório e a venderam posteriormente a outro comprador. Golin foi denunciado pelo MPF por ter conseguido crédito bancário com a terra de mentira. O cartório de Gilbués, assim como muitos outros do sul piauiense, encontra-se sob intervenção judicial.
Outro lado
O advogado Leandro Tilkian, que representa três empresas do Grupo Golin citadas na reportagem (Eldorado Agroindustrial, Bom Jardim Empreendimentos Rurais e JAP Empreendimentos e Participações), assim como o patriarca Joselito Golin, suas filhas Ana Paula, Rafaela e Judiliane, disse não querer se manifestar até o julgamento dos embargos de declaração da decisão de segunda instância, que ocorrerá no próximo dia 26 de junho. A advogada Tânia Maiuri, que representa Paulo Roberto da Rosa, disse não ter sido autorizada por seu cliente a prestar esclarecimentos à reportagem. O advogado Isidoro Mazzotini, que representa o contador Gerson Luís Oliveira, não respondeu às questões enviadas até o fechamento da reportagem.
Roberto Iser Júnior, que representa Júlio Lourenço Golin e a empresa Forte Colonizadora, enviou à reportagem um laudo pericial feito pela empresa de auditoria Concept nas contas da Boi Gordo. O laudo afirma que o valor apontado como desviado na sentença de primeira instância “não possui respaldo técnico formal e material, posto que, conforme demonstrado e fundamentado neste trabalho, a quase totalidade dos ativos foi vendida e transferida antes da data de aquisição pela Forte Colonizadora Ltda. (30/set./03) ou foi arrecadada pelo síndico da massa falida”. “Não existe uma prova de algum bem que estivesse em nome da Boi Gordo que tenha sido transferido para Júlio Golin, para a Forte Colonizadora ou para qualquer um dos outros réus arrolados como integrantes do Grupo Golin. O acórdão fala que está comprovado, mas não mostra onde. Isso que nós vamos argumentar no julgamento dos embargos”, afirma Roberto Iser Júnior. Ele refuta também a caracterização das empresas e familiares de Joselito Golin como grupo econômico.
A reportagem não conseguiu contato com a defesa de Paulo Roberto de Andrade.