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Entrevista

Frei Betto: “Vejo paralelo entre o momento atual e a eleição de Hitler na Alemanha”

Em entrevista à Pública, o frade dominicano e escritor afirma que Bolsonaro é resultado da omissão do judiciário que permitiu a "lei esdrúxula da anistia recíproca" e que o PT "não cuidou de promover a alfabetização política do povo"

Entrevista
11 de outubro de 2018
11:58
Este artigo tem mais de 6 ano

Frei Betto, 73 anos, é frade dominicano e um dos responsáveis na propagação da teologia da libertação no Brasil, movimento apartidário que interpreta os ensinamentos de Jesus Cristo como libertadores de injustas condições sociais, políticas e econômicas.

Autor de mais de 60 livros, Frei Betto falou à Pública, por e-mail, sobre o atual momento político e social do país. “Se o Bolsonaro ganhar a eleição, teremos um governo autoritário, uma ditadura revestida de democracia, como o governo de Hitler no início dos anos 1930 na Alemanha”, argumenta o dominicano, que recentemente lançou duas obras: Sexo, orientação sexual e “ideologia de gênero” e Por uma educação crítica e participativa (Anfiteatro).

Por razões políticas, Frei Betto foi preso duas vezes durante a ditadura militar (1964 e de 1969 a 1973). Já no período democrático, logo após a eleição de Lula, ajudou na elaboração do programa Fome Zero e trabalhou como assessor especial do ex-presidente (2003 e 2004).

O religioso nunca poupou de críticas o Partido dos Trabalhadores ao longo dos anos. “O PT, embora tenha feito o melhor governo de nossa história republicana nos dois mandatos de Lula e no primeiro de Dilma, não cuidou de promover a alfabetização política de nosso povo. E buscou assegurar a governabilidade por alianças, muitas delas promíscuas”, avalia.

Para ele, se Haddad vencer, “teremos um governo voltado às questões sociais”, mas alerta: nenhum dos candidatos “livrará o Brasil de intensa turbulência nos próximos dez anos”.

“Bolsonaro soube surfar no vácuo da crise política, que levou ao descrédito das instituições, dos políticos e da política”

Qual avaliação política o senhor faz dessa disputa para presidente do ponto de vista dos discursos dos candidatos?

Até agora predominaram os discursos antipetista dos bolsonaristas e antibolsonaro dos haddadistas. Com o segundo turno parece que eles mudam de tom. Bolsonaro se apresenta como flor que se cheira, pleno de amor aos pobres, de defensor das mulheres, de respeitador dos homossexuais. E Haddad se foca em propostas efetivas de melhorias de vida do povo brasileiro, o que me parece acertado. Haddad se desloca do mero protesto para reais propostas.

Qual é, na sua opinião, a responsabilidade do PT nessa onda de direita? Por que o antipetismo é colocado à frente de questões que envolvem os direitos humanos?

Porque o PT, embora tenha feito o melhor governo de nossa história republicana nos dois mandatos de Lula e no primeiro de Dilma, não cuidou de promover a alfabetização política de nosso povo. E buscou assegurar a governabilidade por alianças, muitas delas promíscuas, com o que havia de mais retrógrado na política brasileira, quando deveria fazê-lo para mobilização de quem deu as vitórias do PT: os movimentos sociais.

Além disso, não criamos uma narrativa capaz de incluir o brasileiro como protagonista de um processo político. Acenamos com luz, casa, carro, escola etc., sem a contrapartida da densidade subjetiva, ou seja, uma cosmovisão que ajudasse o cidadão a se situar no conflito de classes.

O que o PT e Haddad precisam fazer para conter essa onda de direita?

Primeiro, ganhar a eleição dia 28 de outubro! Em seguida, fazer uma séria e profunda autocrítica dos equívocos cometidos ao longo de 13 anos de governo, como fiz nos livros A mosca azul e Calendário do poder, ambos editados pela Rocco, e apresentar um consistente programa de reformas estruturais.

Depois de se posicionar publicamente no primeiro turno das eleições gerais no país contra discursos de ódio e violência, agora a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) pede ao eleitor católico que, ao escolher seus candidatos, na votação de segundo turno, atente para aqueles que ajudem a preservar, e não a destruir, sistemas democráticos. Como o senhor avalia esse posicionamento da CNBB?

A CNBB deveria ter se posicionado já no primeiro turno. Mas ainda bem que o faz agora. Porém, sem a força de mobilização que têm as Igrejas evangélicas. Nestas o pastor falou, o fiel calou porque aceitou. Na Igreja Católica há, infelizmente, grande contingente de bolsonaristas.

Como Haddad pode se aproximar dos católicos e quais seriam as demandas da igreja que ele teria que atender?

É um pouco tarde para essa aproximação. O PT deveria ter mantido um canal de diálogo com todas as instituições que têm um mínimo de abertura às suas propostas. Ainda assim, Haddad deve focar seu discurso no drama social do povo brasileiro, e não na pauta moralista de alguns setores religiosos.

Como a ascensão evangélica no Congresso está mudando as relações sociais e políticas no país?

Devo dizer que respeito todas as Igrejas evangélicas, mas discordo dos cristãos – sejam eles católicos ou evangélicos – que usam o nome de Deus para fortalecer a desigualdade social e o preconceito a gays, negros, quilombolas e movimentos sociais como o MST e o MTST.

No Congresso, infelizmente a bancada da Bíblia tem esse perfil conservador e se cumplicia com as outras bancadas do B: banco, bola, bala e boi. E essa gente demoniza tudo que foge a seus interesses corporativos, como promover a acumulação privada do capital e manter o abismo entre ricos e pobres no qual o Brasil afunda.

Na sua opinião, por que Bolsonaro conseguiu dialogar mais com essa parcela do eleitorado?

Porque soube surfar no vácuo da crise política, que levou ao descrédito das instituições, dos políticos e da política, e no moralismo suscitado pela partidarização da Lava Jato.

Aborto e questões de gênero são temas que racham tanto evangélicos quanto católicos. Qual sua avaliação sobre esses temas?

Acabo de publicar uma cartilha popular intitulada Sexo, orientação sexual e “ideologia de gênero”. Esses temas têm sido debatidos com mais ardor emocional que lógica racional. Os mesmos que não aceitam a descriminalização do aborto aplaudem quando a polícia atira antes de perguntar. E a diversidade de gênero é tão inquestionável como o fato de a Terra girar em redor do Sol. Mas há quem insista que é o Sol que gira em torno da Terra… Pobre Galileu!

O senhor foi um dos perseguidos pela ditadura militar de 1964 que Jair Bolsonaro (PSL) defende abertamente. Qual o seu sentimento em relação a essas declarações públicas?

Sentimento de que o Judiciário brasileiro falhou redondamente ao criar a lei esdrúxula da anistia recíproca e não punir os responsáveis por rasgarem a Constituição e impor ao Brasil um regime de terror que, impunemente, assassinou, estuprou, prendeu, torturou e exilou ao longo de 21 anos. Bolsonaro é resultado dessa grave omissão.

O senhor vê paralelo entre 1964 e nosso atual momento?

Não. Vejo paralelo entre o momento atual e a eleição de Hitler na Alemanha, pelo voto democrático, em 1933.

Pode, por favor, explicar um pouco mais esse paralelo?

Em 1964 houve um golpe militar que expulsou do poder o presidente da República e suspendeu todas as garantias constitucionais. Não se pode comparar uma eleição democrática, como a atual no Brasil, com o golpe de 1964. Mas sim com a eleição de Hitler na Alemanha, em 1933.

Veja: Ele nada entendia da situação real do país. Nem demonstrava interesse por ela, embora atuasse ativamente na política. Por isso não gostava de ser questionado, irritava-se diante das perguntas como se fossem armas apontadas em sua direção. Não queria que a sua ignorância se tornasse explícita.

Ser estranho, ele tinha olhos alucinados afundados nas órbitas, lábios espremidos, gestos cortantes. Todo o seu corpo era rígido, como se moldado em armadura. Ao ficar na defensiva, parecia uma fera acuada. Ao passar à ofensiva, a fera exibia garras afiadas e de suas mandíbulas pingava sangue.

Sua fala exalava ódio, rancor, preconceito. Aliás, não falava, gritava. Não sabia sorrir, tratar alguém com delicadeza, ter um gesto de cortesia ou humildade. Evitava ao máximo os repórteres. Julgava suas perguntas invasivas. E temia que a sua verdadeira face antidemocrática transparecesse em suas respostas.

Educado em fileiras militares, aprendera apenas a dar e cumprir ordens, enquadrar quem o cercava e ultrajar quem se opunha às suas opiniões. Jamais aceitava o contraditório ou praticava um mínimo de tolerância. Considerava-se o senhor da razão.

A nação estava em frangalhos, mergulhada em crise ética, política e econômica, e o horizonte da esperança espelhado em trevas. Pelo país afora havia milhares de desempregados, criminalidade generalizada, corrupção em todas as instâncias de poder. O câmbio disparara, a moeda nacional perdia valor, o descontentamento era geral. O governo carecia de credibilidade e se via cada vez mais fragilizado. O povo clamava por um salvador da pátria.

Jovens desesperançados viam nele um avatar capaz de inaugurar a idade de ouro. Era ele o cara, surfando na descrença generalizada na política e nos políticos. O Executivo se debilitara por corrupção e incompetência, o Legislativo mais parecia um ninho de ratos, o Judiciário se partidarizara submisso a interesses escusos.

Ele se dizia cristão e se considerava ungido por Deus para livrar o país de todos os males. Advogava soluções militares para problemas políticos. Movido pela ambição desmedida, se apresentou como candidato à eleição democrática para ocupar o mais alto posto da República, embora ostentasse a patente de simples oficial de baixo escalão do Exército.

De sua oratória raivosa ressoava o discurso agressivo, bélico, insano. Haveria de modificar todas as leis para implantar uma ordem marcial que poria fim a todas as mazelas do país. Eleito, seria ele o comandante em chefe, e todos os cidadãos passariam a ser tratados como meros recrutas obrigados a cumprir estritamente as suas ordens.

Prometia fortalecer o aparato policial e as forças armadas. Sua noção de justiça se resumia a uma bala de revólver ou a um tiro de fuzil. Eleito, excluiria da vida social um enorme contingente de pessoas consideradas por ele sub-humanos e indesejáveis, mulheres, homossexuais, trabalhadores em luta por seus direitos e comunistas. Todos que se opunham às suas opiniões eram por ele apontados como bodes expiatórios da desgraça nacional.

Seu mandato presidencial haveria de trazer a era de fartura e prosperidade. Reergueria a economia e asseguraria oportunidades de trabalho a todos. Exaltaria os privilégios do capital sobre os direitos dos trabalhadores. Aqueles que o seguissem seriam felizes, e livres para sobrepor a lógica das armas ao espírito das leis. Os demais, excluídos sumariamente do convívio social.

Enfim, após uma série de manobras políticas e forte repressão às forças adversárias, ele foi eleito chefe de Estado. A nação entrou um júbilo. O salvador havia descido dos céus! Ou melhor, brotado das urnas.

Tudo isso aconteceu há 85 anos, em 1933. Na Alemanha alquebrada pela derrota na Primeira Grande Guerra. O nome dele era Adolf Hitler.

As comunidades de base da Igreja Católica tiveram um grande papel na politização popular nos anos 1960 e na resistência à ditadura nas décadas seguintes. Qual a diferença que o senhor vê entre essa atuação e a que é feita pelas igrejas neopentecostais neste momento?

As CEBs [comunidades eclesiais de base] sofreram desvalorização sob os pontificados de João Paulo II e Bento XVI. Então muitos fiéis pobres migraram para igrejas neopentecostais. Agora, com o papa Francisco, as CEBs voltam a ter espaço na Igreja, mas infelizmente foram debilitadas. As CEBs são a fonte da teologia da libertação. E as igrejas neopentecostais adotam a teologia da prosperidade, ou seja, do próprio umbigo, sem nenhuma dimensão social da mensagem do Evangelho.

Em uma entrevista para o El País Brasil, o senhor diz que “a igreja evangélica está cometendo o mesmo erro que a Igreja Católica cometeu na Idade Média”. O que isso significa?

No período medieval, a Igreja conquistou a hegemonia sobre a sociedade, a ponto de o papa coroar reis e nomear príncipes. Hoje algumas igrejas evangélicas procuram confessionalizar a política e anular a laicização da sociedade civil.

Por meio do poder, em cujas estruturas há cada vez mais pastores, se empenham em fazer coincidir os preceitos religiosos com as leis civis, como a demonização dos homossexuais e a condenação do Carnaval.

Amanhã um pastor na Presidência da República ou no STF pode insistir em estabelecer, em todo o país, a Lei Seca, proibindo a fabricação, a venda e o consumo de bebidas alcoólicas, como se tentou nos anos de 1930 nos EUA.

A Igreja se afastou do povo? Por que esse trabalho com as comunidades de base perdeu força?

Porque não teve apoio da hierarquia, ou seja, de bispos e padres. Como adverte o papa Francisco, enquanto a Igreja Católica não se desclerizar, isto é, abandonar o clericalismo que a domina, ele não será em “Igreja em saída”, como frisa o papa.

A esquerda se afastou da Igreja Católica ou foi a Igreja Católica que se afastou da esquerda?

Sempre houve setores da esquerda na Igreja Católica, e eu me identifico com eles. Mas hoje é raro encontrar um cardeal de esquerda, como dom Paulo Evaristo Arns; um arcebispo de esquerda, como dom Helder Câmara; um bispo de esquerda, como dom Pedro Casaldáliga. Por isso a esquerda laica não tem muito interesse em manter vínculos com a Igreja Católica.

Se Bolsonaro ganhar, o senhor vê riscos à democracia? E quais seriam os riscos de uma vitória de Haddad?

Se o Bolsonaro ganhar a eleição, teremos um governo autoritário, uma ditadura revestida de democracia, como o governo de Hitler no início dos anos 1930 na Alemanha. Se Haddad vencer, teremos um governo voltado às questões sociais, ampliando nosso espaço democrático. Mas nenhum dos dois livrará o Brasil de intensa turbulência nos próximos dez anos. Contudo, insisto em meu axioma: guardemos o pessimismo para dias melhores!

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